Gaudêncio Torquato, Blog do Noblat
Por que a corrupção tanto se expandiu no Brasil, nos últimos
tempos, se os órgãos de controle do Estado ganharam sólidas estruturas e
melhoraram seu desempenho? A questão é instigante e merece reflexão.
Certamente, há múltiplas causas para a extensão da criminalidade que age à
sombra do Estado.
Por mais que a hipótese possa parecer absurda, uma das
fontes do poder oculto é a própria Constituição de 88. Nossa Lei Maior é grande
responsável por mazelas, distorções e ilegalidades.
Vamos explicar. Ao abrir o leque de direitos sociais e
individuais, a Constituição Cidadã construiu vigas com a argamassa da
autonomia, das liberdades e das competências funcionais.
Sistemas e aparelhos se robusteceram para exercer com
independência suas tarefas. Estado liberal e Estado social tiveram de convergir
na direção do Estado Democrático de Direito. Sob sua égide, o Poder Judiciário
assumiu posição de relevo. Hoje, exerce papel preponderante na construção de
nossa via democrática.
Como já tivemos oportunidade de mostrar, em razão dos
buracos abertos na Constituição – não preenchidos por legislação
infraconstitucional – o Poder Judiciário passou a realizar tarefas que caberiam
ao Poder Legislativo.
Urge reconhecer: o corpo parlamentar deixou espaços vazios,
ao não dar respostas à questões transcendentais. Como não ocupou os imensos
vácuos abertos na CF, outro Poder teria de fazê-lo. É o que ocorreu e vem
ocorrendo. (A propósito, compete ao Supremo afastar um senador ou autorizar sua
prisão?).
Portanto, o teor crítico à judicialização da política deve
levar em consideração a ausência de legislação infraconstitucional. Razoável
parcela de tensões entre os Poderes pode ser creditada a essa situação.
Disputas e tensões
Mas outras instituições do Estado, voltadas para a defesa do
regime democrático, da ordem jurídica e de defesa da sociedade também ganharam
impulso. O Ministério Público, alçado à condição de instituição essencial à
função jurisdicional do Estado e com acrescida bagagem normativa, incorporou de
maneira plena a missão de ser o guardião mor da sociedade. Sua atuação ganhou o
respeito dos cidadãos.
Nos últimos tempos, porém, sua atuação passou a ser
questionada. Razões: o excesso de exposição pública, o açodamento e pressa em
suas ações, certo toque de brilho e vaidade que parece motivar a farta
expressão de procuradores na mídia e mesmo uma dose de arrogância. Ou seja, discrição e comedimento são deixados
de lado.
A par de decisões polêmicas como essa do Procurador Geral da
República, que aceita um acordo de delação premiada por parte de um personagem
que confessa uma infinidade de crimes, mas ganha o perdão por delatar a figura
do presidente da República. O fato causa estranheza.
Já a Polícia Federal ganhou força como órgão encarregado de
exercer a segurança pública para preservar a ordem e a incolumidade das
pessoas e do patrimônio. Passou a agir em parceria com o Judiciário, mas abriu
arestas com o MP, com quem parece disputar funções, particularmente no campo da
investigação. Sua extensa folha de serviços, alargada por maior
profissionalismo, penetra nos cantos obscuros da vida criminosa e nos porões
incrustados nas malhas da administração pública. Mas também é criticada por
imprimir certa camada de espetacularização nas ações que ganham nomes
simbólicos – prisões, condução coercitiva, apreensão de documentos etc. Os
papéis foram bem definidos pela CF, que propiciou ao aparelho do Estado a
competência para organizar estruturas e métodos capazes de garantir a sua
segurança e alcançar o equilíbrio social.
Invasão de competências
Outros aparelhos também fazem apurações e controles, como a
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Tribunal de Contas da União (TCU),
a Corregedoria-Geral da União, além dos instrumentos do Parlamento, como a
Comissão Mista de Controle sobre Atividades de Inteligência e Comissões
Parlamentares de Inquérito. Em suma, o Estado possui máquina mais que
suficiente para monitorar as retas e curvas das pessoas físicas e jurídicas.
Mas há muitas curvas nessas trilhas.
A pletora de órgãos de controle abre imensos espaços,
propiciando a interpenetração de funções e competências. Não raro, os membros
de cada setor divergem, alguns se queimando no fogo das vaidades. No
Estado-Espetáculo, os atores tentam, cada qual a seu modo, chamar a atenção.
E assim, o bem-estar coletivo fica sob a égide do
personalismo que caracteriza a atuação dos aparelhos do Estado. Fulanos e
sicranos têm seus nomes criticados ou elevados ao Panteão da Pátria. A crise
que solapa a base da política afunda os participantes da esfera congressual e
dá impulso a membros de outros Poderes.
O juiz Sérgio Moro e o procurador Delton Dellagnol ganham
loas da sociedade. Alas e grupos se formam no interior de estruturas disputando
posições. Basta ver os nomes – oito – que disputam de maneira aguerrida o cargo
de Procurador Geral da República na vaga de Rodrigo Janot.
A desarmonia se expande na esteira das disputas. Os círculos
de negócios avançam sobre as estruturas do Estado, formando teias de interesse,
cooptando integrantes da burocracia e procurando apoio na esfera política.
A tríade descrita por Roger-Gérard Schwartzenberg mostra-se
ativa: esse triângulo liga o poder político,
alta administração e os grupos de negócios. Diz ele: “esses três
universos cruzam-se cada vez mais, recortam-se, penetram-se”. Desenvolve-se uma
simbiose. E a corrupção acaba se aproveitando desse estado de coisas.
Em paralelo, assiste-se ao declínio dos mecanismos clássicos
da política: partidos sem doutrina, parlamento sem força, oposições sem
projetos, aderentes/eleitores sem motivação para vida partidária.
A luz no fim do túnel deixa ver o despertar da democracia
participativa, alimentada por novos polos de poder: grupos e movimentos
organizados, entidades que passam a fazer pressão sobre os Poderes
tradicionais. Sob essa radiografia, distinguem-se sinais, mesmo opacos, de
esperança.
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