Artigo de Fernando Gabeira
Há coisas que não entendo no Brasil. Ou melhor, coisas que
me esforço para entender. O STF, por exemplo, negou a liberdade a uma
prisioneira que roubou xampu e chicletes. Mas decidiu soltar Rodrigo Rocha
Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa pizzaria. Sou leigo e
fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque era reincidente.
Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e, como essas pessoas
são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.
Leio no belo livro “Triste visionário”, de Lilia Moritz
Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o médico Nina Rodrigues, expoente
da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim do século XIX que negros e
brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil precisava ter dois códigos
penais. Felizmente, as ideias racistas de Nina, que conheci pelo seu trabalho
pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas. Existe apenas um código penal.
Suspeito, no entanto, que existam diferentes estados de
direito. A mais generosa versão desse conceito surgiu no país quando começou a
ser desmontado o gigantesco esquema de corrupção.
A Lava-Jato é responsável apenas por um terço das conduções
coercitivas no país. Nunca houve problemas até que, depois da centésima
experiência, a operação trouxe Lula para depor. Resultado: um grande debate
nacional sobre condução coercitiva. Em 2013, o Congresso aprovou o instrumento
da delação premiada. Era destinado a desarticular o crime organizado. Ninguém
protestou. Ao ressurgir na Lava-Jato, a delação premiada precisou se revalidar
no contexto do novo e delicado estado de direito.
Marcelo Odebrecht disse que ensinava aos seus filhos que era
feio delatar. No Congresso, a delação premiada foi definida como a tortura do
século XXI. E Dilma Rousseff comparou os delatores a Joaquim Silvério dos Reis,
nivelando a Inconfidência Mineira ao assalto à Petrobras.
Mostrei num curto documentário como as famílias dos presos
sofrem para visitar os parentes no Complexo de Bangu, às vezes, passando a
noite ao relento, à espera de uma senha.
A televisão revela agora como Sérgio Cabral recebe visitas à
vontade, inclusive como chegam encomendas da rua no setor onde está preso
agora. Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta para cuidar dos filhos, e a
polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta joias escondidas por ela.
Leio nos jornais que numa excursão da Escola Britânica ao exterior, o filho de
Cabral foi o único a viajar na classe executiva.
Se a mulher de Cabral ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1
bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios por conceder aumento da passagem
de ônibus, creio que, pela leitura da lógica do STF, irá para a cadeia. Dura
lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho anúncio. A mulher que roubou o
xampu deve ser jovem, desconhece slogans publicitários do passado.
Há algum tempo, desisti de esperar uma reação previsível do
Supremo. Carmem Lúcia, de vez em quando, me consola prometendo que o clamor das
ruas será ouvido.
De vez em quando, sim, o clamor das ruas será ouvido. Mas o
sistema politico partidário brasileiro envolve com seus tentáculos os próprios
ministros do Supremo. O ubíquo Gilmar Mendes articula leis no Congresso,
encontra-se com investigados, discute o preço do boi com Joesley Batista e foi
padrinho da casamento de Dona Baratinha, herdeira do clã que enriqueceu
cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos seus ônibus vagabundos.
A Lava-Jato lançou a ideia de que a lei vale igualmente para
todos. É uma ideia tão antiga que pronunciá-la parece apenas repetir um lugar
comum. Vencemos a etapa em que o racismo teorizava um código penal para brancos
e outro para negros.
Mas a realidade mostra como existe ainda um grande caminho a
trilhar. A lei não é igual para todos. Ela afirma que os portadores de diploma
universitário têm direito à prisão especial.
E cria uma dessas situações que talvez só possa se resolver
numa peça de ficção. Nas cadeias do Rio, em condições tão distintas, os
cariocas que Sérgio Cabral arruinou e o novo rico que a corrupção alimentou.
Na realidade concreta do cotidiano, é um conflito insolúvel.
A lei vale para todos, contudo, entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil,
um país que, definitivamente, não tolera roubo de chicletes. Como dizem os
defensores do estado de direito, vivemos o perigo de um estado policial. Hoje o
chiclete, amanhã um quilo de açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar
pelo simples desvio de um milhão de dólares.
No tempo da corrupção, éramos felizes e não sabíamos.
Ninguém tinha feito delação premiada. Era possível comprar eleições em nove países
do continente e, sobretudo, comprar uma Olimpíada. O complexo de vira-lata foi
jogado no lixo; do pingue-pongue ao polo aquático, gritávamos: Brasil, com
muito orgulho e muito amor.
Aí, chegou a polícia.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 09/07/2017
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