Ernesto Tenembaum, El País
Nestes dias, na América Latina, houve uma mudança
substancial que só pode gerar tristeza e preocupação em quem defende a
democracia e os direitos humanos. Em qualquer outro momento da história do
continente havia uma só maneira de interpretar as imagens de tanques militares
que passavam por cima de civis desarmados ou as de gorilas uniformizados e
armados até os dentes que disparavam suas metralhadoras contra jovens envoltos
em bandeiras. Tudo era muito claro: os algozes provinham, sempre, de ditaduras
alinhadas com os Estados Unidos e as vítimas eram militantes populares. A resistência
a essa barbárie desenvolveu na esquerda do continente, a partir da década de
oitenta, um consenso anti-repressivo, de respeito aos direitos humanos e de
respaldo ao regime democrático.
Em poucos meses, esse consenso foi destruído.
É uma das vítimas da escalada repressiva que entrou em
espiral na Venezuela desde abril.
Agora quem dispara são os militares do regime de Nicolás
Maduro e quem recebe as balas são os que o denunciam. E a maioria da esquerda
cala ou apoia os repressores.
As vítimas de outros tempos se solidarizam agora com os
algozes do presente: o ser humano é uma espécie muito cruel.
Na última reunião da OEA, um grupo de países liderados pela
Bolívia e o Equador bloqueou uma sanção contra o regime de Maduro. Desde que a
repressão começou, o PT brasileiro só deu demonstrações de solidariedade, mais
ou menos vergonhosas, ao Governo venezuelano. Em seu último Congresso, por
exemplo, recebeu uma delegação da embaixada venezuelana. Luiz Inácio Lula da
Silva não falou do assunto, algo que lhe caberia fazer, dado que na última
campanha eleitoral gravou um spot pedindo o voto em Maduro. As principais
mostras de solidariedade a Maduro em Buenos Aires se deram no Instituto Pátria,
bunker da força política liderada por Cristina Kirchner, que, além do mais, em
sua recente turnê pela Europa, só concedeu uma entrevista ao canal estatal
venezuelano, a Telesur, que justifica a repressão. O kirchnerismo tem uma
grande influência nos órgãos de defesa dos direitos humanos da Argentina, que
em sua maior parte também se calam. E assim vão as coisas.
Um dos mecanismos mais habituais para justificar essa
cumplicidade é a negação: como em outros tempos acontecia com a informação
procedente da ex-União Soviética, cada denúncia contra o regime é interpretada
como parte de uma campanha da CIA ou da maldita imprensa ocidental.
É um recurso desonesto.
Os principais denunciantes do que ocorre na Venezuela são os
órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, que amparam a esquerda
latino-americana quando era perseguida. Erika Rivas, diretora da Anistia
Internacional para as Américas, declarou: “Na Venezuela toda a gama de direitos
humanos é violentada. Direitos econômicos, sociais, culturais. As liberdades
fundamentais, o direito à associação, a liberdade de expressão. Está havendo um
contexto repressivo e militarizado diante das demonstrações de descontentamento
social, no qual, além disso, são feitas detenções arbitrárias como ferramenta
de controle, de calar as vozes da dissidência”.
Nos anos setenta, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA foi um instrumento-chave para denunciar os desaparecimentos na
Argentina. No início do mês, a CIDH emitiu um comunicado em que “condena
energicamente as operações realizadas pelas forças de segurança do Estado, principalmente
corporações militares, nos últimos dias na Venezuela, ante uma escalada na
situação de violência (...), que deixaram dezenas de pessoas mortas, centenas
de pessoas feridas e milhares de pessoas presas”. A Comissão Interamericana
denuncia que, como método de intimidação, as forças militares e policiais
cercam bairros inteiros, disparam gás lacrimogêneo e depois funcionários
públicos entram nas casas de modo violento e as saqueiam. A CIDH calcula em seu
comunicado que nos presídios venezuelanos haja 3.500 presos políticos.
O sofrimento que, nos anos setenta, as ditaduras de direita
causaram na América Latina deu lugar, depois, ao aparecimento de regimes
democráticos estáveis. O Cone Sul, pelo menos, viveu a época de liberdade
política mais longa de sua história. Nesse processo, houve altos e baixos,
interrupções, momentos difíceis. Mas nunca, até aqui – talvez a única exceção
tenha sido o Peru de Alberto Fujimori –, em nenhum país havia ocorrido, ao
mesmo tempo, a suspensão de eleições, o fechamento de meios de comunicação, a
detenção de milhares de dissidentes, a repressão aberta a manifestantes.
No momento de terminar este artigo, a France Presse
informava: “Dezenas de pessoas, algumas encapuzadas, com paus e canos, e
vestidas de vermelho, entraram nos jardins do Palácio Legislativo e detonaram
foguetes de fogos de artifício, desencadeando o caos. Os deputados Américo de
Grazia, Nora Bracho e Armando Armas foram espancados fortemente na cabeça”.
Maduro, no final das contas, é fiel a si mesmo, não dissimula.
“O que não conquistaremos com os votos, conseguiremos com as balas”, disse. O
que mais falta para entender alguém que, na realidade, é tão claro?
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