Artigo de Fernando Gabeira
A crise brasileira é tão brava que, às vezes, nos esquecemos
de que existe uma outra mais ampla nos envolvendo: a decadência dos valores
ocidentais. Alguns escritores franceses teorizam sobre a decadência da
civilização judaico-cristã e chegam a prever a futura dominação muçulmana.
Michel Onfray acha que os muçulmanos tendem a predominar, entre outras coisas,
porque estão dispostos a morrer por sua crença.
Não tenho a mesma certeza da força da fé, sobretudo no
universo político. Sem conhecimentos tecnológico e científico, tática e
estratégia adequadas, a disposição de morrer por uma causa pode representar um
autoextermínio em grande escala.
O que me atrai nisso tudo é estabelecer um nexo entre a
crise ocidental e a brasileira; a mesma realidade, só que em dimensões
diferentes.
No final do século, a European Science Foundation realizou
uma ampla pesquisa e publicou cinco livros sobre ela. Um deles tem o título “O
impacto dos valores”. A tese dos sociólogos e pesquisadores envolvidos no
trabalho era que estava havendo uma mudança de valores. Esta mudança não era
compreendida pelos governos que insistiam apenas em falar de melhorias
materiais e mais riquezas, quando despontavam aspirações novas: desejos não
materiais e emancipatórios. Isso acontece no Brasil em alguma escala, quando se
defende qualidade de vida ou se constata o crescimento da espiritualidade.
Mas a crise ocidental, pelo menos no meu estudo ainda precário,
acabou sendo atropelada, no Brasil, pelo colapso material e pela vulgaridade
com que os valores são negados. A crise de valores no Ocidente refere–se à
ausência de um sentido numa vida confortável e relativamente bem administrada.
No Brasil vivem-se a escassez e a roubalheira, o que nos dá
a impressão de estarmos em outro compartimento; e só alcançaremos as angústias
ocidentais quando sairmos do singular sufoco.
No Brasil, deputados se articulam para criar um esquema de
sobrevivência eleitoral que inclui um fundo milionário. Juízes como Gilmar
Mendes desandam a soltar corruptos, apesar de seus visíveis laços de amizade
com eles. Basta ver um pouco de televisão para observar como o caos se
espalhou: assaltam até velhos em cadeira de rodas.
Discordo quando se fala em ausência total de valores no
Ocidente e insinua-se a possibilidade de uma supremacia muçulmana. Quando
acontecem atentados terroristas, governos e sociedade são unânimes em defender
um valor essencial: a liberdade. Para ser mais preciso, as vítimas do
terrorismo morreram porque vivem num mundo em que a democracia e a liberdade
prevalecem.
Essa ideia de morrer por uma causa, que Onfray destaca nos
muçulmanos, é romântica e já a adotei na juventude. Mas é inferior à ideia de
viver humildemente por uma causa. Valores não materiais e emancipatórios
combinam com a democracia e podem significar um avanço na sua inacabada
trajetória. É uma aposta no futuro.
Por enquanto, no Brasil, vivemos ainda o que pode ser
chamado de fase selvagem da decadência. A lei não vale para todos. Políticos
nos assaltam de cara limpa. A elite nacional se recusa, por preconceito, a
examinar o grave problema da violência urbana.
Os valores cambiantes na Europa já se anunciavam nos anos 60
e alguns acabaram se materializando na diversidade de lutas e no politicamente
correto. Tudo isso tem um impacto bem grande no Novo Mundo. Nos Estados Unidos,
a vitória de Trump representou uma espécie de antídoto ao politicamente
correto. No Brasil, Bolsonaro encarna esta corrente conservadora, assustada com
as ameaças voluntaristas à estabilidade da família.
Na verdade, a família hoje já está bem distante do modelo
que os conservadores têm na cabeça. Mas ela existe e não pode ser ignorada,
como querem alguns, impondo cartilhas de cima para baixo, avançando, sem
diálogos num campo da educação que era exclusivo dela.
Creio que levarei muito tempo ainda para estabelecer todas
as conexões entre a crise singular do Brasil e a crise envolvente dos valores
ocidentais. O grande problema das duas, tanto aqui como lá, é que tornam
atraentes as soluções autoritárias. Soluções externas, como o avanço muçulmano,
ou de dentro, sofisticados sistemas de dominação tecnológica.
Um jovem executivo do Facebook já abandonou o trabalho e foi
para um bunker se defender de um apocalipse que ele supõe ser o destino do
avanço do mundo digital.
O fato de termos problemas anteriores a toda essa agitação
crepuscular nos dá um fôlego para vivermos como no Velho Oeste, desejando que
os xerifes expulsem os bandidos em todas as esferas em que atuam.
Mas será preciso fazer um esforço adicional para compreender
o Brasil dentro do Ocidente. Sair da decadência galopante para a decadência
elegante é uma rima, mas, como dizia o poeta Drummond, não é uma solução.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 27/08/2017
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