Artigo de Fernando Gabeira
Trabalhando ao ar livre, em lugares de pobre conexão, nem
sempre sigo os detalhes da patética cena política brasileira. Mas quando tento
recuperar tudo no fim de semana, saio com uma sensação de que não perdi muito.
No caso da sobrevivência de Temer, triunfou a tese da
estabilidade. Eu já a havia combatido, em nome de um equilíbrio dinâmico que
soubesse combinar a retomada econômica com a luta contra a corrupção. Minha
tese foi derrotada. Mas parcialmente, porque ela afirmava também que a
estabilidade sem luta contra a corrupção se transformaria no seu contrário, era
mais inquietante ainda.
A sobrevivência de Temer significou um golpe num dos pilares
da luta contra a corrupção: a transparência. Não poderemos saber o que
aconteceu de fato. Mas estimulou a distribuição de verbas e cargos. Ela põe em
risco a própria aspiração dos defensores da estabilidade, a redução dos gastos
públicos. Temer tornou-se refém do Congresso.
E a conta não será alta apenas pelas emendas ou pelos
cargos. Em todas as frentes os recursos do Estado serão disputados como um
butim.
O projeto de Refis, que reescalona dívidas públicas, ganhou
uma versão no Congresso que não só perdoa às vezes 99% do valor a ser pago,
como representa uma perda de R$ 252 bilhões para os cofres públicos. Os
sindicatos querem muito mais do que perderam com o fim do imposto sindical. Os
partidos, um modesto fundo de R$ 6 bilhões para disputarem as eleições sem
buscar apoio nos eleitores ou sequer usar a imaginação para se financiarem.
Quanto mais denúncias surgirem contra Temer, mais alta será
a conta. As bocas estão abertas à espera de novas chances, na verdade,
antecipando-se a elas. Temer quer o cargo, eles querem os recursos, estão
unidos nessa sinistra versão de estabilidade.
Fixando-me apenas na esfera política: a sobrevivência de
Temer pode representar também um golpe no futuro, bloqueando a renovação.
Embora sejam governantes diferentes em contextos diferentes, a salvação de
Temer e a constituinte de Maduro partilham um perigo comum: desmoralizar as
eleições. No caso do ditador venezuelano, o objetivo é afastar a oposição,
caminhar para um sistema de partido único e eleições quase unânimes, como em
Cuba. No caso brasileiro, o objetivo é manter um sistema partidário falido, em
que é possível escolher apenas entre visões políticas fracassadas.
A sobrevivência de Temer foi o passo dado com os olhos na
relativa quietude das ruas. A indiferença é relativa, porque a opinião
manifestou-se em pesquisas, estimulou o Congresso a desafiá-las, a impor sua
própria agenda.
Concessões à bancada dos ruralistas, redução de áreas de
proteção ambiental na Amazônia, discursos, ombros tatuados com a palavra Temer,
caímos num parlamentismo do horror. Mas isso também é a armadilha que tecem para
que as pessoas se afastem enojadas da política, concluam que aquilo é um
universo paralelo, o melhor é ignorá-lo.
Veio o aumento da gasolina. Vem aí mais imposto. As pessoas
não vão ignorar facilmente a máquina que devora o seu dinheiro.
A tentativa de criar um mundo tão repulsivo que a maioria se
afaste dele é um dado na mesa. As eleições desta semana no Estado do Amazonas
fazem pensar: uma forte abstenção e a disputa entre duas figuras do sistema
falido.
Por outro lado, a existência desse mundo repulsivo pode
estimular a vontade de mudança. São duas ideias em constante tensão: virar as
costas ou tentar mudar. Ainda que leves no momento, ventos de mudança começam a
soprar. Grupos em fusão discutem como participar, propondo candidaturas
independentes. Muitos viveram no exterior, acham que precisam contribuir para o
País, estão sintonizados com a revolução digital e rejeitam todos os métodos
que arruinaram o sistema político brasileiro.
Por dever de ofício, continuarei acompanhando a cena
brasileira, aos trancos no meio da semana, em detalhes no fim. Mas na
conjuntura que se abre, o investimento maior é na possibilidade de renovação.
Olhar apenas para o que está aí é deprimente. É preciso um
horizonte, conhecer o que se move, apontar possíveis conexões e até ajudar com
a experiência vivida de erros e acertos. Todos os países nessas circunstâncias
tendem a achar seu caminho de renovação. O Brasil seria um caso inédito de país
que não se mexe com vigor quando é explorado por sistema partidário voraz
pilotando dispendiosa máquina estatal.
Não se trata de algo solene do tipo ou ficar a pátria livre
ou morrer pelo Brasil. Mas para muitos o dilema pode ser no futuro próximo: ou
acabar com essa pilhagem ou se despedir do Brasil.
Apesar de partilharmos uma cultura, uma História nacional,
não dá para nos sentirmos num país de verdade quando as quadrilhas pilham os
seus recursos. Nem acreditar em justiça quando se anula, em nome da privacidade
empresarial, um processo de Mariana, que trata de 19 mortes, centenas de pessoas
expulsas de casa e um rio envenenado.
Ao aceitar a permanência de Temer em nome da estabilidade,
mercado, empresários e até mesmo uma parte da imprensa não percebem a mensagem
que enviam aos políticos inescrupulosos que reinam em Brasília. Eles são espertos
o bastante para avançarem sempre que, por meio de atos repulsivos, conseguem a
indiferença enojada da sociedade. Mas são mais espertos ainda para entenderem
que mercado e empresários estão dispostos a pagar tudo pelo que consideram,
erroneamente, a estabilidade.
Sem pressão da sociedade e com o beneplácito de um mercado
imediatista, compreenderam muito rapidamente que o momento é do banquete das
hienas. Todo esse desastre por causa da estabilidade, do medo de caminhar,
paralisia com o mito de que sem Temer acabaria a reconstrução econômica e um PT
na lona é o bicho-papão que voltaria ao poder.
Artigo publicado no Estadão em 11/08/2017
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