O texto abaixo é de março de 2015, porém se faz necessário uma
leitura nos dias atuais em que somos bombardeados na mídia e, principalmente nas
redes sociais com discursos ultrajantes, retrógrados de defensores da volta da
ditadura militar como sinônimo de lisura diante desse mar de lama de corrupção
que o país vive.
Os argumentos são consistentes como bolha de sabão, partindo
de todos os lados; de cantor sertanejo que fugiu da aula de história e se apega
ao eufemismo do “militarismo vigiado” a general que camufla a história
tenebrosa da ditadura militar, defendendo-a em seu templo maçônico a intervenção
militar como salvação da pátria.
Marcelo Freire, UOL
Os protestos de 15 de março, direcionados principalmente
contra o governo federal e a presidente Dilma Rousseff, indicaram a
insatisfação de parte da população com os casos de corrupção envolvendo
partidos políticos, empresas públicas e empresas privadas. Algumas pessoas, inclusive,
chegaram a pedir uma intervenção militar, alegando que essa seria a solução
para o fim da corrupção.
Mas será que nesse período a corrupção realmente não fazia
parte da esfera política? Apesar da blindagem proporcionada pelas restrições ao
Legislativo, Judiciário e imprensa, ainda assim a ditadura não passou imune a
diversas denúncias de corrupção.
O UOL listou dez delas, tendo como fonte a série de quatro
livros de Elio Gaspari sobre o período (“A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura
Escancarada”, “A Ditadura Derrotada” e “A Ditadura Encurralada”) e reportagens
da época. O primeiro item que envolve Delfim Netto contém uma resposta do
ex-ministro sobre os casos. Veja:
1 – Contrabando na Polícia do Exército
A partir de 1970, dentro da 1ª Companhia do 2º Batalhão da
Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, sargentos, capitães e cabos começaram a
se relacionar com o contrabando carioca. O capitão Aílton Guimarães Jorge, que
já havia recebido a honra da Medalha do Pacificador pelo combate à guerrilha,
era um dos integrantes da quadrilha que comercializava ilegalmente caixas de
uísques, perfumes e roupas de luxo, inclusive roubando a carga de outros
contrabandistas. Os militares escoltavam e intermediavam negócios dos
contraventores. Foram presos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações) e
torturados, mas acabaram inocentados porque os depoimentos foram colhidos com
uso de violência – direito de que os civis não dispunham em seus processos na
época. O capitão Guimarães, posteriormente, deixaria o Exército para virar um
dos principais nomes do jogo do bicho no Rio, ganhando fama também no meio do
samba carioca. Foi patrono da Vila Isabel e presidente da Liesa (Liga
Independente das Escolas de Samba).
2 – A vida dupla do delegado Fleury
Um dos nomes mais conhecidos da repressão, atuando na
captura, na tortura e no assassinato de presos políticos, o delegado paulista
Sérgio Fernandes Paranhos Fleury foi acusado pelo Ministério Público de
associação ao tráfico de drogas e extermínios. Apontado como líder do Esquadrão
da Morte, um grupo paramilitar que cometia execuções, Fleury também era ligado
a criminosos comuns, segundo o MP, fornecendo serviço de proteção ao traficante
José Iglesias, o “Juca”, na guerra de quadrilhas paulistanas. No fim de 1968,
ele teria metralhado o traficante rival Domiciano Antunes Filho, o
“Luciano”, com outro comparsa, e
capturado, na companhia de outros policiais associados ao crime, uma caderneta
que detalhava as propinas pagas a detetives, comissários e delegados pelos
traficantes. O caso chegou a ser divulgado à imprensa por um alcaguete, Odilon
Marcheronide Queiróz (“Carioca”), que acabou preso por Fleury e,
posteriormente, desmentiu a história a jornais de São Paulo. Carioca seria
morto pelo investigador Adhemar Augusto de Oliveira, segundo o próprio
revelaria a um jornalista, tempos depois.
Os atos do delegado na repressão, no entanto, lhe renderam
uma Medalha do Pacificador e muita blindagem dentro do Exército, que deixou de
investigar as denúncias. Promotores do MP foram alertados para interromper as
investigações contra Fleury. De acordo com o relato publicado em “A Ditadura
Escancarada”, o procurador-geral da Justiça, Oscar Xavier de Freitas, avisou
dois promotores em 1973: “Eu não recebo solicitações, apenas ordens. (…)
Esqueçam tudo, não se metam em mais nada. Existem olheiros em toda parte, nos
fiscalizando. Nossos telefones estão censurados”.
No fim daquele ano de 1973, o delegado chegou a ter a prisão
preventiva decretada pelo assassinato de um traficante, mas o Código Penal foi
reescrito para que réus primários com “bons antecedentes” tivessem direito à
liberdade durante a tramitação dos recursos. Em uma conversa com Heitor
Ferreira, secretário do presidente Ernesto Geisel (1974-1979), o general
Golbery do Couto e Silva – então ministro do Gabinete Civil e um dos principais
articuladores da ditadura militar – classificou assim o delegado Fleury, quando
pensava em afastá-lo: “Esse é um bandido. Agora, prestou serviços e sabe muita
coisa”. Fleury morreu em 1979, quando ainda estava sob investigação da Justiça.
3 – Governadores biônicos e sob suspeita
Em 1970, uma avaliação feita pelo SNI ajudou a determinar
quais seriam os governadores do Estado indicados pelo presidente Médici
(1969-1974). No Paraná, Haroldo Leon Peres foi escolhido após ser elogiado pela
postura favorável ao regime; um ano depois, foi pego extorquindo um empreiteiro
em US$ 1 milhão e obrigado a renunciar. Segundo o general João Baptista
Figueiredo, chefe do SNI no governo Geisel, os agentes teriam descoberto que
Peres “era ladrão em Maringá” se o tivessem investigado adequadamente. Na
Bahia, Antônio Carlos Magalhães, em seu primeiro mandato no Estado, foi acusado
em 1972 de beneficiar a Magnesita, da qual seria acionista, abatendo em 50% as
dívidas da empresa.
4 – O caso Lutfalla
Outro governador envolvido em denúncias foi o paulista Paulo
Maluf. Dois anos antes de assumir o Estado, em 1979, ele foi acusado de
corrupção no caso conhecido como Lutfalla – empresa têxtil de sua mulher,
Sylvia, que recebeu empréstimos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento)
quando estava em processo de falência. As denúncias envolviam também o ministro
do Planejamento Reis Velloso, que negou as irregularidades, e terminou sem
punições.
5 – As mordomias do regime
Em 1976, as Redações de jornal já tinham maior liberdade,
apesar de ainda estarem sob censura. O jornalista Ricardo Kotscho publicou no
“Estado de São Paulo” reportagens expondo as mordomias de que ministros e
servidores, financiados por dinheiro público, dispunham em Brasília. Uma
piscina térmica banhava a casa do ministro de Minas e Energia, enquanto o
ministro do Trabalho contava com 28 empregados. Na casa do governador de
Brasília, frascos de laquê e alimentos eram comprados em quantidades desmedidas
– 6.800 pãezinhos teriam sido adquiridos num mesmo dia. Filmes proibidos pela
censura, como o erótico “Emmanuelle”, eram permitidos na casa dos servidores
que os requisitavam. Na época, os ministros não viajavam em voos de carreira, e
sim em jatos da Força Aérea.
Antes disso, no governo Médici já se observavam outras
regalias: o ministro do Exército, cuja pasta ficava em Brasília, tinha uma casa
de veraneio na serra fluminense, com direito a mordomo. Os generais de exército
(quatro estrelas) possuíam dois carros, três empregados e casa decorada; os
generais de brigada (duas estrelas) que iam para Brasília contavam com US$ 27
mil para comprar mobília. Cabos e sargentos prestavam serviços domésticos às
autoridades, e o Planalto também pagou transporte e hospedagem a aspirantes
para um churrasco na capital federal.
6 – Delfim e a Camargo Corrêa
Delfim Netto – ministro da Fazenda durante os governos Costa
e Silva (1967-1969) e Médici, embaixador brasileiro na França no governo Geisel
e ministro da Agricultura (depois Planejamento) no governo Figueiredo – sofreu
algumas acusações de corrupção. Na primeira delas, em 1974, foi acusado pelo
próprio Figueiredo (ainda chefe do SNI), em conversas reservadas com Geisel e
Heitor Ferreira. Delfim teria beneficiado a empreiteira Camargo Corrêa a ganhar
a concorrência da construção da hidrelétrica de Água Vermelha (MG). Anos
depois, como embaixador, foi acusado pelo francês Jacques de la Broissia de ter
prejudicado seu banco, o Crédit Commercial de France, que teria se recusado a
fornecer US$ 60 milhões para a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí,
obra também executada pela Camargo Corrêa. Em citação reproduzida pela “Folha
de S.Paulo” em 2006, Delfim falou sobre as denúncias, que foram publicadas nos
livros de Elio Gaspari: “Ele [Gaspari] retrata o conjunto de intrigas armado
dentro do staff de Geisel pelo temor que o general tinha de que eu fosse eleito
governador de São Paulo”, afirmou o ex-ministro.
Outro lado: Em relação às denúncias que envolvem seu nome
nesse texto, o ex-ministro Delfim Netto respondeu ao UOL: “Trata-se de velhas
intrigas que sempre foram esclarecidas. Nunca tive participação nos eventos
relatados”.
7 – As comissões da General Electric
Durante um processo no Cade (Conselho Administrativo de
Defesa Econômica) em 1976, o presidente da General Electric no Brasil, Gerald
Thomas Smilley, admitiu que a empresa pagou comissão a alguns funcionários no
país para vender locomotivas à estatal Rede Ferroviária Federal, segundo
noticiou a “Folha de S.Paulo” na época. Em 1969, a Junta Militar que sucedeu
Costa e Silva e precedeu Médici havia aprovado um decreto-lei que destinava
“fundos especiais” para a compra de 180 locomotivas da GE. Na época, um dos
diretores da empresa no Brasil na época era Alcio Costa e Silva, irmão do
ex-presidente, morto naquele mesmo ano de 1969. Na investigação de 1976, o Cade
apurava a formação de um cartel de multinacionais no Brasil e o pagamento de
subornos e comissões a autoridades para a obtenção de contratos.
8 – Newton Cruz, caso Capemi e o dossiê Baumgarten
O jornalista Alexandre von Baumgarten, colaborador do SNI,
foi assassinado em 1982, pouco depois de publicar um dossiê acusando o general
Newton Cruz de planejar sua morte – segundo o ex-delegado do Dops Cláudio
Guerra, em declaração de 2012, a ordem partiu do próprio SNI. A morte do
jornalista teria ligação com seu conhecimento sobre as denúncias envolvendo
Cruz e outros agentes do Serviço no escândalo da Agropecuária Capemi, empresa
dirigida por militares, contratada para comercializar a madeira da região do
futuro lago de Tucuruí. Pelo menos US$ 10 milhões teriam sido desviados para
beneficiar agentes do SNI no início da década de 1980. O general foi inocentado
pela morte do jornalista.
9 – Caso Coroa-Brastel
Delfim Netto sofreria uma terceira acusação direta de
corrupção, dessa vez como ministro do Planejamento, ao lado de Ernane Galvêas,
ministro da Fazenda, durante o governo Figueiredo. Segundo a acusação
apresentada em 1985 pelo procurador-geral da República José Paulo Sepúlveda
Pertence, os dois teriam desviado irregularmente recursos públicos por meio de
um empréstimo da Caixa Econômica Federal ao empresário Assis Paim, dono do
grupo Coroa-Brastel, em 1981. Galvêas foi absolvido em 1994, e a acusação
contra Delfim – que disse na época que a denúncia era de “iniciativa política”
– não chegou a ser examinada.
10 – Grupo Delfin
Denúncia feita pela “Folha de S.Paulo” de dezembro de 1982
apontou que o Grupo Delfin, empresa privada de crédito imobiliário, foi
beneficiado pelo governo por meio do Banco Nacional da Habitação ao obter Cr$
70 bilhões para abater parte dos Cr$ 82 bilhões devidos ao banco. Segundo a
reportagem, o valor total dos terrenos usados para a quitação era de apenas Cr$
9 bilhões. Assustados com a notícia, clientes do grupo retiraram seus fundos, o
que levou a empresa à falência pouco depois. A denúncia envolveu os nomes dos
ministros Mário Andreazza (Interior), Delfim Netto (Planejamento) e Ernane
Galvêas (Fazenda), que chegaram a ser acusados judicialmente por causa do
acordo.
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