Da ÉPOCA
Entre maio de 2009 e março de 2010, a conta-corrente do
coronel do Exército Odilson Riquelme, no Banco do Brasil, recebeu dois cheques
no valor total de R$ 37.373. Os depósitos se repetiram nos meses seguintes. Os
cheques foram emitidos pela empresa Sequipe, prestadora de serviços de
quimioterapia ao Hospital Militar de Área de Recife (HMAR), onde Riquelme
cuidava dos contratos. Os valores equivaliam a 10% dos pagamentos feitos à
Sequipe pelos contratos com o hospital. Os investigadores do Ministério Público
Militar (MPM) descobriram o esquema após denúncia de um ex-funcionário.
Confirmou-se que o dinheiro – R$ 205 mil no total – havia sido pedido à empresa
pelo então diretor do HMAR, coronel Francisco Monteiro. Ele alegou que seriam
“doações” para o hospital. Mas cheques obtidos pelos investigadores mostraram
que o dinheiro acabou em contas-correntes dos militares e de pessoas ligadas a
eles, não no caixa do hospital.
O caso do coronel Riquelme está longe de ser uma exceção nas
Forças Armadas Brasileiras. Embora persista o mito de que os militares são mais
honestos do que os civis no trato com a coisa pública, não há evidência
empírica disso. Tanto militares quanto civis desviam recursos públicos, fraudam
licitações, pedem e recebem propina. Não há estudos que indiquem qualquer
distinção entre a escala de corrupção nos mundos civil e militar. Pelas teorias
mais recentes na literatura sobre corrupção, duas coisas, em especial, tendem a
aumentar as chances de tunga aos cofres públicos: oportunidades para roubar e a
percepção de que não haverá punição. Ambas existem, no Brasil, entre militares
e civis. Estes não são especialmente desonestos. Aqueles não são especialmente
probos.
Registros da Procuradoria-Geral de Justiça Militar, obtidos
com exclusividade por ÉPOCA, expõem os abusos com dinheiro público nas Forças
Armadas. São 255 processos pelo crime de peculato (desvio de dinheiro público
em proveito próprio) e 60 por corrupção ativa ou passiva – todos abertos nos
últimos cinco anos. Sim, também há corrupção no Exército, na Marinha e na
Aeronáutica. O material foi remetido ao Tribunal de Contas da União (TCU);
investigadores da Corte estão destrinchando irregularidades encontradas nas
três Forças, com prejuízos milionários aos cofres públicos. Os casos
restringem-se a danos ao Erário superiores a R$ 100 mil. ÉPOCA teve acesso à
documentação do processo sigiloso do TCU e traça nesta reportagem um panorama
de casos detalhados envolvendo militares.
O valor estimado de prejuízo aos cofres públicos nesses
principais casos é de R$ 30 milhões, mas, a depender do avançar das
investigações, pode se revelar maior. O levantamento não inclui processos
contra militares ajuizados na Justiça comum – os casos da Justiça Militar são
de crimes que provocam prejuízo apenas às Forças Armadas. Num país acostumado a
flagrantes de malas de dinheiro rodando com políticos e desvios na casa de bilhões
na Petrobras, parece mixaria. Esses R$ 30 milhões são pouco mais que a metade
da fortuna encontrada no apartamento associado ao ex-ministro Geddel Vieira
Lima, apenas um entre mais de uma centena de investigados pela Operação Lava
Jato. São valores bem mais modestos ainda que os registrados no sistema de
propina da Odebrecht, como os R$ 300 milhões que a empresa afirma ter destinado
ao PT para ajudar os planos do ex-presidente Lula. Mas é uma questão de escala.
Os militares administram um orçamento anual de R$ 86 bilhões, quase tudo
atrelado a salários e pensões; apenas R$ 7 bilhões são gastos ou investimentos
e estão, portanto, sujeitos a desvios como esses investigados. Militares não
têm acesso aos maiores cofres do governo federal, não fazem campanha eleitoral
e não têm conexões no Congresso para aprovar leis. Ou seja, têm menos
oportunidades de fazer negociatas.
Embora os casos não apontem um cenário de corrupção
institucionalizada e generalizada, os processos trincam o argumento
recentemente vociferado por apoiadores de uma estapafúrdia intervenção militar
como solução para a crise atual, como defendido recentemente pelo general do
Exército Antonio Hamilton Martins Mourão. Confortável, usando um uniforme
repleto de medalhas no peito diante de uma plateia dócil em uma loja maçônica
de Brasília, em 15 de setembro o general acenou com a possibilidade de
intervenção militar para extirpar os corruptos da vida pública. “Ou as
instituições solucionam o problema político, ou pela ação do Judiciário, retirando
da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós
teremos de impor isso”, disse Mourão. Seu discurso foi defendido pelo deputado
federal, ex-militar e presidenciável Jair Bolsonaro, do PSC do Rio de Janeiro.
O deputado Cabo Daciolo, do Avante-RJ, gravou um vídeo afirmando viver uma
“falsa democracia”. “Não estamos pedindo uma ditadura militar, estamos falando
de um governo provisório: tira os corruptos, os bandidos.”
Ouvidas as palavras do general Mourão na maçonaria e de seus
apoiadores, soa irônico que até a Lava Jato tenha pilhado militares em casos de
corrupção. O vice-almirante da Marinha Othon Pinheiro da Silva, que comandou a
estatal Eletronuclear, foi condenado a 43 anos de prisão por corrupção, lavagem
de dinheiro, evasão de divisas e organização criminosa nas obras da usina
nuclear de Angra 3, acusado de receber R$ 4,5 milhões de propina. Sua defesa
diz que os pagamentos eram por uma consultoria feita às empreiteiras antes de
assumir a Eletronuclear. Segundo o TCU, existem indícios de que as Forças
Armadas não tomam as providências necessárias para recompor o prejuízo aos
cofres públicos causados pela corrupção em suas fileiras. “Foi constatado que
havia casos em que o Exército deveria ter instaurado a tomada de contas especial
para apurar os fatos, e não o fez”, afirma o tribunal. Em março deste ano, o
TCU abriu um processo para apurar “possíveis irregularidades relacionadas com a
não instauração de tomadas de contas especiais para apurar dano ao Erário” e
deu prazo de 180 dias para que o Comando do Exército apure o prejuízo causado
pelos problemas na gestão do Hospital Militar de Área de Recife e em possíveis
irregularidades em obras do Instituto Militar de Engenharia.
Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana. Leia a
reportagem completa na edição de ÉPOCA que já está nas bancas.
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