terça-feira, 10 de outubro de 2017

TRÊS DIAS DE VERGONHA

José Nêumanne, O Estado de S.Paulo
De quarta-feira 4 a sexta-feira 6 de outubro de 2017. Anote em sua agenda com o próprio sangue esses três dias nos quais os congressistas –que se proclamam seus representantes na Câmara dos Deputados e no Senado da República – bateram sua carteira esvaziada pela crise e perdoaram as próprias dívidas à União. Tudo foi “rápido como se furta” e “discreto como se foge”. Houve tumulto, mas tudo saiu como manda o figurino do cinismo mais deslavado: Suas Excrescências insolentíssimas não precisaram sequer votar pessoalmente, comprometendo seus nomes nada limpos na falcatrua. A votação foi simbólica, ou seja, os líderes votaram pelas bancadas e o resto da manada escondeu-se debaixo da saia ampla e generosa da República, essa prostituta sem lingerie nem pudor.
Tudo começou com uma mentira. Sob a égide de um cartola mal afamado e sempre disposto a dar a própria cara para assumir o furto coletivo – Vicente (imagine!) Cândido –, proclamado relator de uma reforma política que, há algum tempo, seu grupo, o dito, mas sempre incapaz de honrar a própria denominação, Partido dos Trabalhadores (PT), vem pregando. A arenga foi usada na tentativa de aplacar o povo que se reuniu, empunhou faixas e bandeiras e protestou nas ruas das cidades brasileiras com população significativa, contra os governos delinquentes e o Estado complacente. O papo de Dilma Rousseff, a porta-voz do socialismo cínico, era convocar uma Constituinte exclusiva para fazer uma reforma política que abrigasse propostas caras a seus militantes e milicianos, como financiamento público de campanha e censura à imprensa rebelde e aos institutos de pesquisa que não fizessem o jogo dos que se dizem progressistas, mas são apenas pró eles mesmos.
Deposta madame, assumiu em seu lugar o vice, que não apenas foi eleito com ela, mas na prática a elegeu com os votos da máquina partidária fundada para derrubar a ditadura e, depois, afundada no lamaçal dos novos sócios; Estes, o PT e a cambada de ladrões que a ele se associaram na depena completa dos cofres da viúva, aplicaram o golpe da venda do bonde. Sob o pretexto, avalizado por Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que a proibição do financiamento de campanhas por empresas, que não votam, impede que seja pago o alto custo da democracia, assumiram a defesa do financiamento publico para a farra privada. Ou seja: eles gastam e nós, os tontos da patuleia, pagamos.
Assim foi feito. Após intensas e acaloradas tentativas derrotadas de impor um saque de R$ 3,7 bilhões para garantir campanhas à tripa forra com champanhota, votações simbólicas garantiram a criação de um Fundo para Financiamento de Campanha, extirpando a falseta do uso abusivo e amoral da palavra Democracia na denominação. A toque de caixa, senadores e deputados aprovaram a punga. O mostrengo nasceu sem teto, mas com piso. E, segundo notícia desta semana publicada neste Estadão, com um rombo inicial de R$ 300 milhões. Olhe-se no espelho mais próximo e perceba quem vai tapar esse rombo.
No mesmo tríduo e sob a égide do mesmo bezerro de ouro, Senado e Câmara, revezando-se no furto, providenciaram escândalo de dimensões similares ao aprovarem um chamado Refis no qual tentaram perdoar as dívidas com o Fisco de parlamentares suspeitos de corrupção. A pressão popular impediu que se fizesse a ignomínia. Mas, como ninguém é de ferro, aproveitaram a iniciativa do governo esmoler no comando da União para perdoar sonegadores que não acrescentavam à denominação degradante a de corrupto, que, aliás, cada vez mais se beneficia da complacência de políticos antes tidos como dignos e juízes assumidos como chicaneiros.
O Refis é uma excrescência assumida como norma há vários governos e sob vários regimes nesta nossa República, que não respeita quem paga em dia nem incentiva quem se dispõe a honrar noturna e diuturnamente, como diria a Rainha do Não Sabe, Dilma Rousseff. Ou seja, a grande maioria da população brasileira, que não se humilha ao ser tratada como otária, só para não ter o desprazer de ser perseguida pelos publicanos de plantão em qualquer gestão ou indigestão. “Devo, não nego, não preciso pagar” – este é o lema sempre renovado da cambada que segue o rastro do deputado Newton Cardoso Júnior, que, ao palmilhar a trilha do pápi, o ex-governador Newtão Cardoso, reformula de vez o velho “deitado” que assegurava: “quem sai aos seus não degenera”. Para não comprometer a herança familiar, o bom Newtinho exercita o “quem sai aos seus não regenera”. Os degenerados ocupam o Éden dos que se endividam não pagando os impostos de praxe, porque sabem que sempre serão indultados.
O Refis é uma vergonha que se renova sempre que o Estado gasta demais, o que é uma rotina, e precisa socorrer-se de instrumentos como a repatriação de recursos exportados sem a devida autorização das autoridades monetárias, o que já constitui uma efeméride. Cada vez que isso acontece o governo faz uma campanha subliminar que pode ser traduzida como um alerta: “Não seja tolo, não pague imposto”. Mas à tradição desavergonhada implantada por seus antecessores, inclusive sua ex-parça dona Dilma, o dr. Michel Miguel, jurisconsulto renomado e especialista respeitável em Direito Constitucional, extrapolou ao permitir que os associados ao clube dos que se endividam porque passaram a ter poder de não pagar mesmo não se incomodem mais com a pecha de sonegadores. O dr. Meirelles inspirou o Refis para reduzir o rombo do déficit público do ano em R$ 12 bilhões, contentou-se com meros R$ 9 bilhões até descobrir, tadinho, que, se pegar R$ 4 milhões, deve dar graças a Deus e a Santo Expedito, o padroeiro das causas impossíveis. Newtinho, o rebento de quem pápi Newtão deve orgulhar-se muito, permitiu a radicalização do slogan sub-reptício dos sonegadores empoderados: “Só um completo idiota paga imposto. Sai dessa, imbecil!”
Mas, por incrível que pareça, o episódio do Congresso punguista ainda é mais grave, pois desmoraliza o Estado de Direito no que tem de mais sagrado: a soberania popular por meio do voto. As campanhas bilionárias – a última das quais teve as duas chapas concorrentes comprometidas e maculadas com o financiamento majoritariamente feito por dois tipos de crime, ambos abomináveis, a caixa 2 e a propina – interferem na sagrada vontade política do eleitor. Os democratas de verdade, aqueles que têm vergonha na cara, condição de brasilidade na Constituição  de Capistrano de Abreu, o colega de seminário de padre Cícero Romão Batista, não procuram fórmulas de atender ao gasto excessivo de partidos e candidatos. Esforçam-se, ao contrário, para reduzir drasticamente os custos absurdos, abusivos e amorais do reino de marafonas dos marqueteiros políticos. O financiamento público é tão escuso – talvez até mais – do que a submissão dos palanques à propina e ao caixa 2. Pois transfere o custo pesado do furto e do marketing para o bolso de quem arca com todas as despesas do Estado estroina. O cidadão financia a farra dos candidatos nos quais não pretende votar e também a de quem sufragará. Em ambos os casos é um vilipêndio, que não merece misericórdia nem passiva aceitação.
O mais grave de tudo é que quem faz da Constituição uma Bíblia Sagrada não atenta para o óbvio: mudanças no sistema eleitoral não podem ser feitas por maiorias simples no Congresso. Nem sequer por maiorias de três quintos ou dois terços do total dos que só fingem representar o povo. Na verdade, só o próprio povo, em plebiscito, pode reformar graves assuntos como o sistema proporcional e os métodos de financiamento de campanha. Ao não dar um sinal de que vai exigir isso dos congressistas, com os quais vive arengando à toa por motivos insignificantes, o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) dá mostras inequívocas e permanentes de que não é um poder popular, mas discricionário. Ou seja, serve não aos cidadãos, aos quais não deve a indicação de cada membro, mas aos grupos que comandam o Executivo, cujo chefe indica, e do Legislativo, cuja casta sempre aprova cada um, transformando-se na única Corte do amém na história da democracia em qualquer canto do planeta em que ela funcione, seja bem, seja precariamente.
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