José Nêumanne, O Estado de S.Paulo
De quarta-feira 4 a sexta-feira 6 de outubro de 2017. Anote em
sua agenda com o próprio sangue esses três dias nos quais os congressistas –que
se proclamam seus representantes na Câmara dos Deputados e no Senado da
República – bateram sua carteira esvaziada pela crise e perdoaram as próprias
dívidas à União. Tudo foi “rápido como se furta” e “discreto como se foge”.
Houve tumulto, mas tudo saiu como manda o figurino do cinismo mais deslavado:
Suas Excrescências insolentíssimas não precisaram sequer votar pessoalmente,
comprometendo seus nomes nada limpos na falcatrua. A votação foi simbólica, ou
seja, os líderes votaram pelas bancadas e o resto da manada escondeu-se debaixo
da saia ampla e generosa da República, essa prostituta sem lingerie nem pudor.
Tudo começou com uma mentira. Sob a égide de um cartola mal
afamado e sempre disposto a dar a própria cara para assumir o furto coletivo –
Vicente (imagine!) Cândido –, proclamado relator de uma reforma política que,
há algum tempo, seu grupo, o dito, mas sempre incapaz de honrar a própria
denominação, Partido dos Trabalhadores (PT), vem pregando. A arenga foi usada
na tentativa de aplacar o povo que se reuniu, empunhou faixas e bandeiras e
protestou nas ruas das cidades brasileiras com população significativa, contra
os governos delinquentes e o Estado complacente. O papo de Dilma Rousseff, a
porta-voz do socialismo cínico, era convocar uma Constituinte exclusiva para
fazer uma reforma política que abrigasse propostas caras a seus militantes e
milicianos, como financiamento público de campanha e censura à imprensa rebelde
e aos institutos de pesquisa que não fizessem o jogo dos que se dizem
progressistas, mas são apenas pró eles mesmos.
Deposta madame, assumiu em seu lugar o vice, que não apenas
foi eleito com ela, mas na prática a elegeu com os votos da máquina partidária
fundada para derrubar a ditadura e, depois, afundada no lamaçal dos novos
sócios; Estes, o PT e a cambada de ladrões que a ele se associaram na depena
completa dos cofres da viúva, aplicaram o golpe da venda do bonde. Sob o
pretexto, avalizado por Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), de que a proibição do financiamento de campanhas por empresas,
que não votam, impede que seja pago o alto custo da democracia, assumiram a
defesa do financiamento publico para a farra privada. Ou seja: eles gastam e
nós, os tontos da patuleia, pagamos.
Assim foi feito. Após intensas e acaloradas tentativas
derrotadas de impor um saque de R$ 3,7 bilhões para garantir campanhas à tripa
forra com champanhota, votações simbólicas garantiram a criação de um Fundo
para Financiamento de Campanha, extirpando a falseta do uso abusivo e amoral da
palavra Democracia na denominação. A toque de caixa, senadores e deputados
aprovaram a punga. O mostrengo nasceu sem teto, mas com piso. E, segundo
notícia desta semana publicada neste Estadão, com um rombo inicial de R$ 300
milhões. Olhe-se no espelho mais próximo e perceba quem vai tapar esse rombo.
No mesmo tríduo e sob a égide do mesmo bezerro de ouro,
Senado e Câmara, revezando-se no furto, providenciaram escândalo de dimensões
similares ao aprovarem um chamado Refis no qual tentaram perdoar as dívidas com
o Fisco de parlamentares suspeitos de corrupção. A pressão popular impediu que
se fizesse a ignomínia. Mas, como ninguém é de ferro, aproveitaram a iniciativa
do governo esmoler no comando da União para perdoar sonegadores que não
acrescentavam à denominação degradante a de corrupto, que, aliás, cada vez mais
se beneficia da complacência de políticos antes tidos como dignos e juízes
assumidos como chicaneiros.
O Refis é uma excrescência assumida como norma há vários
governos e sob vários regimes nesta nossa República, que não respeita quem paga
em dia nem incentiva quem se dispõe a honrar noturna e diuturnamente, como
diria a Rainha do Não Sabe, Dilma Rousseff. Ou seja, a grande maioria da
população brasileira, que não se humilha ao ser tratada como otária, só para
não ter o desprazer de ser perseguida pelos publicanos de plantão em qualquer
gestão ou indigestão. “Devo, não nego, não preciso pagar” – este é o lema
sempre renovado da cambada que segue o rastro do deputado Newton Cardoso
Júnior, que, ao palmilhar a trilha do pápi, o ex-governador Newtão Cardoso,
reformula de vez o velho “deitado” que assegurava: “quem sai aos seus não
degenera”. Para não comprometer a herança familiar, o bom Newtinho exercita o
“quem sai aos seus não regenera”. Os degenerados ocupam o Éden dos que se
endividam não pagando os impostos de praxe, porque sabem que sempre serão
indultados.
O Refis é uma vergonha que se renova sempre que o Estado
gasta demais, o que é uma rotina, e precisa socorrer-se de instrumentos como a
repatriação de recursos exportados sem a devida autorização das autoridades
monetárias, o que já constitui uma efeméride. Cada vez que isso acontece o
governo faz uma campanha subliminar que pode ser traduzida como um alerta: “Não
seja tolo, não pague imposto”. Mas à tradição desavergonhada implantada por
seus antecessores, inclusive sua ex-parça dona Dilma, o dr. Michel Miguel,
jurisconsulto renomado e especialista respeitável em Direito Constitucional,
extrapolou ao permitir que os associados ao clube dos que se endividam porque
passaram a ter poder de não pagar mesmo não se incomodem mais com a pecha de
sonegadores. O dr. Meirelles inspirou o Refis para reduzir o rombo do déficit
público do ano em R$ 12 bilhões, contentou-se com meros R$ 9 bilhões até
descobrir, tadinho, que, se pegar R$ 4 milhões, deve dar graças a Deus e a
Santo Expedito, o padroeiro das causas impossíveis. Newtinho, o rebento de quem
pápi Newtão deve orgulhar-se muito, permitiu a radicalização do slogan
sub-reptício dos sonegadores empoderados: “Só um completo idiota paga imposto.
Sai dessa, imbecil!”
Mas, por incrível que pareça, o episódio do Congresso
punguista ainda é mais grave, pois desmoraliza o Estado de Direito no que tem
de mais sagrado: a soberania popular por meio do voto. As campanhas bilionárias
– a última das quais teve as duas chapas concorrentes comprometidas e maculadas
com o financiamento majoritariamente feito por dois tipos de crime, ambos
abomináveis, a caixa 2 e a propina – interferem na sagrada vontade política do
eleitor. Os democratas de verdade, aqueles que têm vergonha na cara, condição
de brasilidade na Constituição de
Capistrano de Abreu, o colega de seminário de padre Cícero Romão Batista, não
procuram fórmulas de atender ao gasto excessivo de partidos e candidatos.
Esforçam-se, ao contrário, para reduzir drasticamente os custos absurdos,
abusivos e amorais do reino de marafonas dos marqueteiros políticos. O
financiamento público é tão escuso – talvez até mais – do que a submissão dos
palanques à propina e ao caixa 2. Pois transfere o custo pesado do furto e do
marketing para o bolso de quem arca com todas as despesas do Estado estroina. O
cidadão financia a farra dos candidatos nos quais não pretende votar e também a
de quem sufragará. Em ambos os casos é um vilipêndio, que não merece
misericórdia nem passiva aceitação.
O mais grave de tudo é que quem faz da Constituição uma
Bíblia Sagrada não atenta para o óbvio: mudanças no sistema eleitoral não podem
ser feitas por maiorias simples no Congresso. Nem sequer por maiorias de três
quintos ou dois terços do total dos que só fingem representar o povo. Na
verdade, só o próprio povo, em plebiscito, pode reformar graves assuntos como o
sistema proporcional e os métodos de financiamento de campanha. Ao não dar um
sinal de que vai exigir isso dos congressistas, com os quais vive arengando à
toa por motivos insignificantes, o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal
(STF) dá mostras inequívocas e permanentes de que não é um poder popular, mas
discricionário. Ou seja, serve não aos cidadãos, aos quais não deve a indicação
de cada membro, mas aos grupos que comandam o Executivo, cujo chefe indica, e
do Legislativo, cuja casta sempre aprova cada um, transformando-se na única
Corte do amém na história da democracia em qualquer canto do planeta em que ela
funcione, seja bem, seja precariamente.
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