Artigo de Fernando Gabeira
Quando menino, vi as luzes do Rio e me apaixonei. A escola
nos trouxe para uma excursão a Petrópolis. A professora, generosamente,
permitiu que o ônibus avançasse um pouco para nos maravilhar com a visão. Mais
tarde, li no romance “Judas, o obscuro”, de Thomas Hardy, uma experiência
semelhante: o personagem também admirava a cidade grande longe, fixado em suas
luzes.
Assim que minha segurança profissional permitiu, ainda quase
adolescente, mudei-me para o Rio, apenas com a mala de roupas, decidido a nunca
mais sair. Ao voltar do exílio, apesar do avanço cultural em São Paulo, decidi,
ou algo decidiu dentro de mim, ficar. Sei apenas que moro aqui, tive filhas e
neto no Rio e não pretendo sair.
Mas a crise que o Rio vive é a mais grave que presenciei. Às
vezes, repito aqui a pergunta de Vargas Llosa sobre o Peru, nas primeiras
linhas de seu romance “A cidade e os cachorros”: quando é que o Rio se
estrepou? É um reflexão que pode começar com a mudança da capital, passar pelas
várias experiências de populismo de esquerda para acabar se fixando no encontro
do PT com Cabral e toda a sua quadrilha. Entre eles, um coadjuvante de peso: o
petróleo.
Às vezes, pergunto se fiz tudo o que poderia para evitar
esse desastre. Confesso que, apesar de denunciá-los em várias campanhas, não
tinha a verdadeira dimensão da rapina que iriam promover no Rio. Lembro-me que,
em 2010, a “Folha de S.Paulo” publicou uma fala em que eu tentava descrever o
projeto de Cabral. Comparava-o à tática das milícias que dão segurança a uma
determinada área e são livres para cometer crimes. Disse que o instrumento
dessa barganha eram as UPPs. A opinião pública ficaria satisfeita e Cabral
teria as mãos livres para a pilhagem.
Questionei Cabral em vários debates de TV, sobre corrupção
na saúde, politicas sociais etc. Não poderia imaginar que o arrogante
adversário gastava R$ 4 milhões mensais com suas despesas particulares. O
esquema monstruoso que contou com generosas verbas federais, royalties do
petróleo e uma desvairada política de isenção de impostos corrompeu todas as
dimensões do governo e talvez mesmo da vida cultural do Rio, entendida num
sentido mais amplo.
Cabral caiu com seus asseclas. Em seguida, tombaram os
conselheiros do Tribunal de Contas. Começa a cair agora a base de sustentação
parlamentar de Cabral, Picciani à frente. O círculo da corrupção estava
fechado. Não havia brechas. Era uma trama criminosa perfeita, com todos os seus
anéis de legitimação. Nada ficou de pé, exceto sombras do passado, como Pezão e
uma Assembleia, com raras exceções, totalmente desmoralizados.
A performance de Pezão como morto-vivo é patética. Ele
indicou um deputado para o TCE. O procurador recusou-se a defender essa
escolha: era inconstitucional. O procurador foi demitido por defender a
Constituição. Felizmente, o deputado indicado por Pezão está para ser preso.
Foi indicado ao TCE porque é cúmplice do assalto. A lógica da quadrilha ainda
domina o estado. Em outras palavras, o Rio foi arruinado pela maior quadrilha
da História, e coube aos remanescentes do grupo reconstruí-lo. Eles não sabem
nem querem fazer isto. Seu único objetivo é escapar da Justiça.
No livro “Sobre a tirania”, de Timothy Snyder, o autor
mostra 20 lições do século XX. Uma delas pode ser adaptada para o Rio: mantenha
a calma quando o impensável chegar. Snyder fala do terrorismo nessa lição. O
impensável chegou ao Rio não na forma do terrorismo, mas na ruína profunda de
suas instituições. Ele explode na violência cotidiana, crise econômica,
desemprego e miséria.
Em outras circunstâncias, a única saída seria uma
intervenção federal. Mas o governo de Brasília é também um remanescente do
esquema gigantesco que arruinou o país. Não tem força nem legitimidade. A
última esperança está na própria sociedade. Uma ilusão a enfraquece: esperar
2018 para realizar a mudança.
Em outros estados, isso pode fazer sentido. Não consigo
imaginar como o Rio resistirá a mais um ano de bandidos no poder e a todas as
consequências da presença da quadrilha no governo. De que adianta prender
deputados como Picciani se a Assembleia está pronta para soltá-los?
No espírito de manter a calma quando o impensável chegar, a
sociedade precisa discutir logo não apenas as grandes saídas, mas também a
solução emergencial. O problema central é este: o que fazer com as grandes
quadrilhas que dominam o estado? Como tomar iniciativas imediatas, para não ter
de mudar daqui no futuro próximo? Não tenho resposta pronta. Sei apenas que é
preciso enfrentá-los, derrubá-los e substituí-los. Isso precisa ser feito
agora.
Já disse no alto de um caminhão de som, em debates e
palestras: é insuportável viver num país onde os bandidos fazem a lei. O Rio é
o núcleo dramático dessa desgraça nacional.
______
PS: No artigo anterior, errei o nome de Mario Tricano,
prefeito de Teresópolis. Imperdoável, pois o conheço pessoalmente e o
entrevistei no seu hotel.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 19/11/2017
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