Artigo de Fernando Gabeira
Andei por Salvador visitando mosteiros, templos e terreiros
para um programa de tevê. Encontrei o carnaval duas vezes, em Ondina e no Rio
Vermelho. Entrei na multidão para documentá-lo, mas não podia deixar de
refletir. Não sou especialista em carnaval, nem mesmo fui um observador atento
da festa nos últimos anos. Meditei um pouco sobre ele não no sentido que os
budistas dão à meditação: um processo que esvazia a mente. Aliás, tenho
dificuldade de alcançar esse estado de concentração e o mais perto que consigo
chegar dele é quando estou boiando de costas. Meditação no meu caso é dar
voltas sobre o tema.
Os entendidos dizem que o carnaval libera sentimentos
reprimidos durante o ano de trabalho. Pensei: mas o que falta mais ser
liberado? Na medida em que os costumes tornam-se mais ousados, o que restará
aos foliões nos dias de festa?
Homem vestido de mulher, por exemplo, pode ser considerado
um tipo de liberação num tempo em que isto é feito com profissionalismo e
sucesso pelos artistas? Já vi poucos homens vestidos de mulher, mas prevejo uma
certa decadência dessa fantasia de carnaval. Com o feminismo em ofensiva, as
mulheres podem duvidar se certo modo de travestir é mais uma zombaria do que
propriamente imitação.
No que me parecia um bem policiado carnaval, com PMs e
guardas municipais em movimento entre os foliões, pensei no carnaval do Rio. Um
motorista de táxi me disse: um estrangeiro deve achar estranho que num país em
crise e o Rio em guerra civil, tanta gente saia para o carnaval. Mas um
estrangeiro não sabe da força que impulsiona as pessoas, uma alegria que
precisa sobreviver nas mais duras circunstâncias.
Mas há algo que me preocupa no carnaval em nosso esforço de
fazer uma grande festa, apesar de tudo. No meio da semana, três vias
importantes foram interditadas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela.
De repente, minha reação foi pensar que alternativas teria caso tivesse de
entrar ou sair da cidade. É assim que a gente começa a se acostumar.
Muitos já consultam o aplicativo Onde tem Tiroteio antes de
se deslocar. Certos lugares, certas horas tornam-se proibidos. E a gente se
adaptando.
Com o tempo, descobrimos que a vida está mudada e nosso
comportamento é o mais ou menos clássico das populações que vivem em longos
conflitos: tocar a vida com alguma normalidade apesar do caos em torno.
Há uma sabedoria nisso, mas também uma certa resignação. E
se for a única opção, continuamos com o carnaval apesar de tudo, com nossa vida
“normal” apesar de tudo, e as coisas podem piorar.
Claro que a situação e os movimentos do governo, o principal
responsável pela segurança pública, são desalentadores. Falou-se num plano de
segurança no ano passado e até agora não só saiu do papel como sequer o próprio
papel saiu. O governador Pezão disse que o recebeu no meio da semana e não teve
tempo de lê-lo. É de se esperar pelo menos que o leia nesse feriado de quatro
dias.
Tecnicamente, com um método adequado, suponho que seja um
tempo suficiente até para se aprender a ler, quanto mais folhear algumas
páginas. Apenas uma fração dessa exuberante energia popular no carnaval seria
suficiente para forçar os governos a buscar algo menos reativo, a parar de
enxugar gelo.
No momento, as autoridades estão meditando em público sobre
a crise. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirma, com razão, que o sistema
de segurança está falido. O governador, por sua vez, diz que na Rocinha os
policiais são mortos como se mata galinha. O problema é que estão na linha de
frente. Quem mói no aspro não fantaseia, dizia Riobaldo, personagem de
Guimarães Rosa.
Comentários a gente ouve no rádio, lê nos jornais e na rede.
O que se espera deles é ação. O sistema está falido, os policiais são
assassinados, e daí? O que vão fazer, o que podemos fazer para ajudá-los?, esse
é foco. A lentidão com que o plano de segurança para o Rio andou é um sintoma
de que há algo errado. O governo não pode ficar chorando, embora a situação
seja mesmo de chorar, sobretudo com a morte de crianças.
Muitas coisas, espero, serão resolvidas nas eleições de
2018. Mas há algumas que não podem esperar. A crise de segurança pública é uma
delas. Por favor, um plano, articulação entre as forças de segurança, foco,
aliança com a sociedade — essa é a forma um pouco mais elaborada que tenho para
escrever SOS.
A situação das Forças Armadas é diferente da do governo do
Rio, composto por um partido que arruinou o estado e cujos líderes estão na
cadeia.É dela que pode vir um nível de organização maior, aproveitando o que
ainda há de combativo na polícia local.
É um abacaxi para quem se preparou para guerras entre
países? Talvez. Mas é de onde pode surgir a capacidade de reação. Não se trata
nem de achar a solução para o problema, mas trazê-lo apenas a um nível
suportável, para que outras dimensões, como a política social, o crescimento
econômico e a própria educação entrem com sua parte.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 11/02/2018
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