Poucas coisas me parecem tão brasileiras como esse coração
cor-de-rosa numa parede azul que encontraram na prisão de Benfica.
Era como se estivesse numa das centenas de pequenos hotéis,
de casas do interior, enfim, em todos esses lugares por onde ando com
frequência.
Lembrei-me até do “Cabaré Mineiro”, de Carlos Drummond: “A
dançarina espanhola de Montes Claros/dança e redança na sala mestiça./Cem olhos
morenos estão despindo/seu corpo gordo picado de mosquito./Tem um sinal de bala
na coxa direita,/o riso postiço de um dente de ouro,/mas é linda, linda, gorda
e satisfeita.”
Dentro de mim condeno esses luxos do presídio de Benfica
porque acompanhei as madrugadas dos familiares dos presos comuns esperando o
momento de visitar seus entes queridos. Como sofrem para desfrutar tão poucos
momentos de união.
Mas a história dos queijos franceses importados por Cabral não
me indignou tanto.
Primeiro, por causa do foco: acho que essas peripécias de
cadeia, essas pequenas transgressões podem nos distrair do tema principal: onde
está o dinheiro que roubaram?
Certamente não se esvaiu nos queijos nem nos beijos das
garotas de programa. Há fortunas nas contas dos presos de Benfica. Precisam ser
encontradas e devolvidas.
Depois disso, será mais fácil encarar suas pequenas
transgressões: o coração cor-de-rosa, um bolero, o piso porcelanato.
Aliás, nem sabia bem o que é isso. Para mim basta um piso
firme e limpo. E não escorregadio. Há algum tempo, percebi que o limo das
pedras do Arquipélago de Alcatrazes não me deixava ficar em pé.
O governo que ainda detém a máquina no Rio é simplesmente
uma parte da quadrilha. Sua tarefa essencial era manter regalias que os presos
comuns não têm.
Os procuradores afirmam que o número de suítes para
encontros amorosos era grande para o total dos presos de Benfica. O parâmetro é
a média do sistema.
Ainda assim acho que não devem ser desmontadas. Como não foi
desmontado o chuveiro de água quente em Curitiba. Tudo deve ser usado para
transformar o presídio em algo menos tenso.
Conheço os dois problemas: a perda da liberdade e a escassez
material. A primeira é a que bate fundo. Muita gente diz: com tudo isso que
tiveram lá dentro, até eu gostaria de ser preso.
É engano típico de quem valoriza as coisas diante da
liberdade. O grande castigo é a prisão. Muitos só a suportam porque esconderam
a grana e esperam um dia desfrutá-la.
Isso não seria justo. O dinheiro tem de voltar. Se depois
disso partilharem o coração cor-de-rosa, a luz vermelha e o piso percolado com
os outros, não será um desastre.
Muitos leitores vão zangar comigo, pois acham que as
condições de prisão devem ser as mais duras possíveis.
Neste momento, estou no Ceará, num trabalho sobre violência
urbana e facções criminosas. Três das maiores do Brasil instalaram-se aqui. E
surgiu uma local, chamada Grupo de Defensores do Estado, exatamente para
rivalizar com as forasteiras.
A impressão que tenho é a de que, quanto mais miseráveis e
desprotegidos são os presos, mais facilmente são recrutados pelas facções
criminosas, hoje um dos grandes problemas de segurança pública no Brasil.
Que os milionários de Benfica dividam seus leitos e
chuveiros, mas parem de esconder o dinheiro roubado.
Está fazendo falta aos verdadeiros donos.
Artigo publicado no Globo em 10/03/2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário