A morte de Marielle Franco e 60 mil mortes estúpidas
registradas anualmente no Brasil deveriam unir-nos. Ou, pelo menos, nos
aproximar. Mas não é isso que acontece no momento. Prevalecem discursos de ódio
e a exploração política mais descarada.
Até autoridades engrossam o coro dos que tentam reescrever a
história da vereadora, atribuindo-lhe um passado inexistente. O PT afirma que a
morte de Marielle e a pena de Lula são faces de uma mesma moeda. Dilma a
considera uma parte do golpe.
A sensação de emergência com que vejo o problema da
segurança pública no Rio às vezes me faz sonhar romanticamente com uma solução
parecida com a que demos ao surto de febre amarela. Havia um problema,
definiu-se a saída – vacinação – e as pessoas foram aos postos saúde. Nas
filas, ninguém gritando “fora Temer”.
Era um tipo de problema que precisava ser enfrentado, não
importa quem estivesse lá em cima. Restou apenas uma pequena minoria contra
vacinas que defendeu suas ideias na rede, democraticamente, sem agressividade.
É impossível transplantar esse comportamento para a
segurança pública. As saídas são mais complexas. E há um pesado clima
político-ideológico em torno delas.
No entanto, não creio que o Brasil se resuma ao debate
ensandecido, com tanta gente zangada e os robôs incendiando a discussão. Existe
um espaço racional de conversa, sobretudo para um tema tão atacado pela
esquerda e pela própria Marielle: a intervenção federal na segurança do Rio.
O primeiro desafio é desvendar o crime. Houve um debate
inicial sobre federalizar ou não as investigações. Temo que isso nos leve aos
impasses de quando surgiu a dengue: estadual ou federal?
A hipótese indicada, creio, é reunir o que há de melhor
tanto na polícia do Rio quanto nos quadros federais. Mesmo porque a polícia do
Rio tem experiência no campo.
Todavia é razoável desconfiar da possibilidade de um
trabalho isolado. Mas não deixa de ser uma contradição aparente: combater a
intervenção federal e duvidar da capacidade da polícia. Os que o fazem
desprezam a desconfiança que grande parte dos cariocas tem na capacidade da
polícia de deter sozinha o avanço da ocupação armada.
Usei a expressão aparente contradição porque cabe argumentar
que uma coisa é a investigação técnico-científica e outra, a crítica à presença
do Exército nas favelas do Rio.
O argumento dos defensores dos pobres, às vezes sem
consultar realmente os pobres, é de que a presença do Exército traz ameaças aos
direitos humanos. Mas a presença de um Exército que cumpre as leis, que tem
regras de engajamento transparentes, não pode ser comparada à presença de
traficantes com fuzis ou milicianos armados.
Entre um Exército ostentando a bandeira do Brasil e outro
exército, de boné e sandálias, mas com modernos fuzis, parece existir uma
hesitação. Como explicar isso?
De um lado, a dificuldade de compreender que os anos
passaram e o Exército Brasileiro está comprometido com a democracia. De outro
está a romantização dos bandidos. Não me refiro apenas às conversas em torno do
chope nos botequins da vida. Nem à simples interpretação vulgar do marxismo.
Essa romantização está presente em textos de eruditos de esquerda, como o
historiador Eric Hobsbawn. Ele via o banditismo como reação a certas condições
sociais. Apesar de brilhante, interpretava o mundo apenas com os olhos do
marxismo.
No cenário cultural brasileiro, discutiu-se muito a frase de
Hélio Oiticica “seja marginal, seja herói”, como um exemplo disso. Nesse caso
específico, entretanto, creio que Oiticica falava do criador e sua relação com
o mercado de artes plásticas.
O argumento dos opositores da presença militar é o de que os
favelados são incomodados pelo Exército. A verdade é que, às vezes, são
estuprados por traficantes, achacados pelas milícias, que vendem de tudo, do
gás ao acesso à televisão fechada. E não há espaço para a sociedade
monitorá-los amplamente, como o faz com o Exercito.
Um dos argumentos do PSOL é que a intervenção não é
necessária. Talvez ele se apoie nos índices de homicídios mais altos, como os
do Ceará e de outros Estados do Nordeste, por exemplo. Mas não enfrenta a
questão específica do Rio: a ocupação armada. Como resolvê-la?
A resposta, nesse caso, costuma estar na ponta da língua:
educação, saúde, saneamento, cultura. Mas como chegar lá com isso tudo?
A presença dos militares em si também não resolve o problema
de fundo. Mas abre caminho para que a polícia estadual se recupere e tente
reduzir a mancha territorial ocupada.
Alguns traficantes toleram o trabalho político em suas
áreas. No caso da Vila Cruzeiro, do Complexo do Alemão, liberavam algumas ruas
para o corpo a corpo eleitoral. Mas isso são concessões, migalhas de liberdade,
pois não só o governo, como todos os candidatos devem ter acesso irrestrito a
todos os pontos da cidade.
Às vezes, alguns mais exaltados nos dão a impressão de que,
se a favela de repente tivesse segurança e todos os serviços básicos
assegurados, seu discurso cairia no vazio, não saberiam mais para onde apontar
a luta. Quando Temer decretou a intervenção na segurança, Bolsonaro disse que
estava roubando sua bandeira.
Todos sabemos que Temer não se preocupa senão com a própria
sorte e a do seu bando, já dizimado pela Lava Jato. Se a intervenção conseguir
equilibrar as forças no Rio e contribuir para o longo processo de libertação de
parte do território, muitas bandeiras podem ser roubadas também.
Não há nada a temer. Outras virão. Uma delas, congelada há
algum tempo, são os escritórios de arquitetura destinados a orientar
construções e reformas. Beleza, funcionalidade e conforto, de alguma forma,
podem ser acrescentados aos morros pacificados.
Artigo publicado no Estadão em 23/03/2018
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