A destruição do Museu Nacional aconteceu no auge da campanha
política. Talvez sirva, ao menos, para que os candidatos despertem para a
importância de uma política cultural e de preservação do patrimônio histórico.
Talvez porque, às vezes, a crise é tão aguda e prolongada que o corpo não
responde mesmo a estímulos cavalares como a perda parcial da memória do País.
Nas viagens semanais pelo País, convivo com inúmeras
experiências locais de preservação da memória. Museus pequenos, às vezes
improvisados, surgem em vários pontos do Brasil. A razão de sua existência é
muitas vezes também econômica. São pequenas cidades com belezas naturais que
querem, de certa forma, encontrar sua identidade e agregar valor às suas
atrações turísticas.
Dias logo antes de o Museu Nacional desaparecer numa noite
de domingo, tinha feito uma viagem entre Rio e Minas. O objetivo era percorrer
nove cidades ligadas por um trem comprado em Três Rios, sem nenhuma ajuda do
governo. O final da linha desse trem será Cataguases. E precisamente em
Cataguases conversei com as autoridades sobre a possibilidade de um museu que
pudesse abarcar a presença da cidade no movimento modernista. Poucos sabem que
ali foi lançada a Revista Verde, que era defensora do modernismo nascente. E
que a cidade tinha um poeta e escritor chamado Rosário Fusco, que merecia ser
lembrado.
Na verdade, escritores e artistas são bons temas para
pequenos museus. Na Copa do Mundo, fiquei impressionado como existem museus
cultuando escritores na Rússia. Existe uma diferença de idade entre os dois
países e também de importância de duas literaturas, sobretudo no século 19.
Em Volta Grande, colada a Cataguases, visitei a casa onde
funcionava o estúdio de Humberto Mauro, o primeiro grande cineasta brasileiro.
A casa estava fechada e meio abandonada, a piscina vazia vigiada por um imenso
sapo ornamental. É evidente que com um pouco de esforço, até exibindo filmes de
Humberto Mauro, aquilo poderia funcionar bem. Como funciona e é atraente o
Museu Mazzaropi, em Taubaté.
Talvez esteja aí também uma diferença de peso. Museus
dirigidos por fundações privadas têm mais chance no universo da decadente
política brasileira.
Um dos melhores do País, entre todos, é o Instituto Ricardo
Brennand, no Recife, construído por um empresário pernambucano. Quem quiser
conhecer, por exemplo, os quadros do pintor holandês Frans Post, que
imortalizou cenas do Brasil colonial, encontra por lá alternativas que perdem
apenas para a coleção da própria Holanda.
O que quero dizer é isto: o processo de decadência que
envolve a política nacional não é um dado absoluto. É possível resistir. E um
dos elementos da resistência é a própria ideia de uma economia criativa, que
estimule as pequenas cidades a encontrar sua vocação cultural e a cultuar sua
memória. É uma forma de resistir até mesmo às dificuldades materiais do
momento.
Será preciso, também, uma abertura para a parceria com a
iniciativa privada. Esse bloqueio ideológico contribuiu para a destruição do
Museu Nacional.
No passado, o Banco Mundial ofereceu um generoso empréstimo,
exigindo que a instituição se transformasse numa fundação privada. Proposta
recusada – imaginem, a memória nacional nas mãos da iniciativa privada, e não
do Estado brasileiro…
Pois agora vimos como instalações elétricas precárias eram
usadas até para instalar frigobar no quarto de dom Pedro; como o prédio, nas
mãos do Estado, estava se tornando um perigoso pardieiro.
Não se pode apenas crucificar o Estado e estigmatizar uma
classe política que está nas cordas. Há limitações mais amplas na sociedade
brasileira. Nossos ricos são menos empenhados do que, por exemplo, os
norte-americanos em contribuir para essas tarefas de preservação de nossa
identidade cultural.
Além disso, de um modo mais amplo, vivemos no novo mundo,
numa ânsia por novidades constantes e um certo desprezo pelo que passou. Tudo o
que é sólido desmancha no ar, a frase de Marx, como mostra o livro de Marshall
Berman, tem um grande poder de descrição do que se passa nas Américas.
Luzia, um fóssil com 12 mil anos, não resistiu à crise
brasileira. Os afrescos que sobreviveram aos últimos dias de Pompeia
desapareceram.
É um momento adequado para compreendermos a gravidade da
nossa situação e, sem desespero, tentar uma saída, aliás nem tentar uma saída,
mas apenas prosseguir na resistência cotidiana à entropia.
Independentemente até dos políticos, os dois horizontes que
ainda nos restam para animar a cultura e cultuar a memória são o poder local e
a possibilidade de parceria com a iniciativa privada, entendida aqui não apenas
como ricos, mas também grupos de amigos das instituições.
O projeto de salvar os museus existentes ganha um pequeno
fôlego com a emoção do desastre. É preciso seguir tentando abrir novos e
modestos museus no interior do Brasil.
Políticos locais não são melhores do que os nacionais. Mas a
necessidade de buscar fontes de renda e emprego pode empurrá-los para soluções
culturais inspiradas na economia criativa.
Como o personagem de Beckett que diz não poder continuar e
continua assim mesmo, o Brasil não acabou com o incêndio na Quinta da Boa Vista.
Apenas ficou mais pobre.
Sem ilusões, diante do impulso de uma cultura de massas que
cria e destrói incessantemente suas banalidades estéticas, é preciso resistir.
Quando forem conhecidas as condições em que os cientistas e pesquisadores estão
trabalhando no Brasil para manter em pé nossa busca pelo conhecimento, ficará
bem claro que a resistência existe e está mais viva do que nunca, à espera de
que a Nação a descubra e a adote.
Tivemos toda a semana para chorar uma perda inestimável.
Vamos lembrá-la para sempre. No entanto, é hora de honrar nossa ancestral
Luzia, herdando uma fração mínima de sua resiliência.
Artigo publicado no Estadão em 07/09/2018
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