Sentada em uma poltrona de couro em um amplo casarão do
bairro dos Jardins, em São Paulo, que usa como gabinete, Marta Suplicy, 73
anos, refletiu sobre sua trajetória. Com o olhar distante e nenhum esforço para
economizar críticas aos seus antigos aliados, a senadora conversou por duas
horas com Marie Claire. A motivação da entrevista foi o anúncio de que deixaria
de concorrer a cargos eletivos, anunciada em uma carta, no começo do mês. No
texto, ela também comunicava a saída do MDB, partido que se filiou depois de 34
anos de PT, em 2015. A decisão veio junto à recusa de ser vice de Henrique
Meirelles, candidato do partido à presidência da república.
Sempre com as pernas cruzadas e as mãos sobre os joelhos,
relembrou os 37 anos de militância e os cargos que ocupou como deputada
federal, senadora, ministra e prefeita da cidade de São Paulo. Reforçou que
foram também anos de defesa das causas feminista e LGBTQ+ e de uma série de
falas polêmicas e atitudes intempestivas.
“Sou impulsiva”, reconheceu, “mas minhas grandes decisões foram todas
pensadas”, concluiu, sobre a saída do PT e o voto a favor do impeachment de
Dilma Rousseff. Com a clareza que lhe é peculiar, disse que não levou amigos da
carreira política. Agora, quer se dedicar exclusivamente ao movimento das
mulheres e está especialmente interessada no "empoderamento de
meninas". Ficou impressionada com o discurso que sua neta de 13 anos
empunha a favor da causa. A seguir, os melhores trechos da conversa.
MC. Por que deixar a vida parlamentar agora?
Marta Suplicy. Primeiro, sinto uma sensação de missão
cumprida. Depois, a percepção de que o Congresso Nacional é refém dos
conservadores. Nos últimos anos, tenho me esforçado e gastado energia em barrar
o retrocesso civilizatório. Comecei a questionar o que que eu estava fazendo
ali. Lá fora, posso contribuir mais. E mais: os eleitos nestas eleições, vão
ser os mesmos. Ou vai ser pior ainda, porque vão eleger gente ligada ao
militarismo, de religiões muito conservadoras. Isso se não entrarem grupos
organizados do mal.
MC. Mas logo agora em que vemos esse conservadorismo tão
forte na política, não era justamente o momento de permanecer?
Hoje, estava caminhando de manhã e uma senhorinha veio falar
comigo: "É verdade que você não vai concorrer mais?". Respondi que
não vou mais concorrer para o Congresso e provavelmente não mais para o resto.
"Mas vai fazer muita falta", ela disse. Aquilo até me comoveu. Mas penso que tem
outras coisas que quero fazer na vida.
MC. Já tem em mente quais são os projetos fora da política
em que gostaria de trabalhar?
Não costumo planejar assim. Estou recebendo convites
interessantes, mas não estou aceitando nada por enquanto. Quero falar para a
massa. Gosto de massa. É aí que a gente influencia. Tem uma coisa que pensei
também: estou interessada em empoderamento de meninas. Muito interessada.
Porque daí virá uma mudança grande.
MC. Sobre essa questão do conservadorismo na política: seu
movimento recente de ir para o MDB, e estar mais perto dessa ala conservadora
dentro do partido... Isso influenciou na sua
decisão de deixar a vida parlamentar?
Não. O MDB é um partido plural e você tem total liberdade.
Então, não sinto essas amarras. Agora em relação, por exemplo, ao casamento
LGBT, teve uns problemas, mas no Senado, não com o MDB, necessariamente. Se
fosse o PT, teria dado um apoio para a coisa rolar. No MDB não senti nenhum
impedimento, mas não teve uma posição de governo. Porque quando existe essa
posição de governo, a coisa rola.
MC. Você considera o impeachment da Dilma um marco na
ascensão do conservadorismo?
Não tinha pensado nisso. Eu colocaria de outra forma. Ele é
um marco na polarização no Brasil. Na minha própria experiência, vejo isso.
Quando saí do PT, a maioria dos petistas até entendeu, por vários fatores, que
não valia a pena ficar. Com o impeachment, não. Aí foi um divisor de águas e vi
uma polarização que reflete o que está acontecendo com o país. Acontece que, se
não houvesse o impeachment, o Brasil teria mergulhado numa situação de um caos
sério. A polarização não veio do
impeachment. Veio da raiva que as pessoas estão sentindo.
MC. Foram 34 anos de PT, de 81 a 2015. O que você leva de
melhor de quando esteve no partido e o que leva de pior?
De melhor, a militância. Militância é uma coisa muito boa.
Eu adoro sair na rua, fazer política na rua, conversar com as pessoas. E isso o
PT tem muito forte. E poder também convencer alguns petistas. Quando entrei no
PT, era muito embrionária ainda a coisa. As pessoas não tinham essa clareza em
relação à homossexualidade, eram machistas, então tive uma influência grande no
partido em tudo isso. De pior, bem, a política é o contrário da busca da
verdade. Você tá indo para a direita, mas fala que tá indo para a esquerda.
MC. Mas isso é da política, acontece em todo partido ou era
exclusivo do PT?
Não, isso é do político, da pessoa política. Na política
você não tem uma linha reta, você não fala não, você não fala sim. Você vai. E
eu não sou muito boa nisso.
MC. Qual é seu feito mais estimado na política?
É da cota das mulheres na política. Eu mudei o Brasil por
causa disso. Sem falar que eu já tinha posto isso na mesa das famílias através
da TV: discutir homossexualidade, discutir mulher. Na política, eu levei esses
assuntos.
MC. Ainda hoje, em 2018, ser mulher na política é um
trabalho mais duro que ser homem?
Claro! O preço para a mulher na política é muito maior. A
cultura ainda é aquela em que a mulher cuida de tudo, da casa, de filho, de
geladeira. Uma mãe que se sujeite a não estar presente no sábado e domingo é
muito complicado. Por isso, ter tido uma presidente, como a Dilma, foi
importante. Uma menina poderia olhar e dizer "Eu chego lá". E
continua sendo importante ter tido uma mulher que foi presidente, não importa
se foi bem ou se foi mal.
MC. Você já sofreu algum tipo de violência de gênero, Marta?
Na profissão ou fora dela?
Não. Nem assédio. Acho que o que me preservou foi a TV
Mulher [na década de 1980, Marta apresentou o quadro Comportamento Sexual no
programa da Rede Globo]. Porque como eu falava de sexo e era muito despachada
eu acho que tinham medo de chegar perto de mim. Acho que é a única explicação.
Porque todas as mulheres têm um caso de assédio e eu não tive essa experiência.
MC. E aborto, você já fez?
Tive um espontâneo. Eu estava como psicóloga, na sala de
aula. Observando uma turma para fazer um trabalho e de repente abortei ali
mesmo. Foi horrível, mas foi muito menos traumático do que o aborto que as
mulheres têm que fazer. Foi entre o André e o João. Foi triste, não traumático.
Há algo na questão do aborto que eu não concordo. Quando uma mulher faz um
aborto, é muito difícil a tomada da decisão. Mas ninguém fala da sensação de
alívio que ela sente. Só fala do trauma psicológico, da dor. Ninguém faz aborto
porque quer fazer aborto. Faz porque tem alguma coisa que não a permite ter
aquela criança.
MC. Por que a pauta da descriminalização do aborto é um tema
tão difícil de avançar no Congresso?
Olha, a descriminalização é importante, mas ela sozinha não
vai ser suficiente. Temos que partir para a legalização. Porque você vai
descriminalizar e a moça negra, pobre, carente... não vai mudar a condição
dela. Um vértice do aborto é o direito da mulher à autonomia de seu próprio
corpo, e isso é fundamental na questão de gênero. O outro é a questão de saúde
pública, que é a mortalidade. São milhares de mulheres morrendo. Basta olhar
para o Congresso pra entender porque não avança.
MC. Você ainda se considera uma feminista?
Ainda? Gente, eu era feminista quando feminista era uma
palavra feia. O primeiro impacto que tive com o feminismo foi quando estudava
nos Estados Unidos, sei lá faz... 40 anos. E eu tinha uma amiga, Jane
Rubischek, da Universidade de Stanford, onde estudei. A gente ia entrar no
elevador e veio em rapaz e abriu a porta. A Jane falou "muito obrigada,
enquanto custar mil dólares por mês no meu salário, eu mesma abro". Eu
pensei assim... "não, quero os mil dólares iguais no meu salário e quero
alguém que abra a porta".
MC. Mas a Marta de agora pensaria a mesma coisa? Hoje você
quer alguém que abra a porta?
Hoje eu abro a porta porque sou muito despachada. Mas
percebo que não deveria abrir porque os homens gostam muito de abrir a porta. E
percebo que não tenho que ficar batendo o pé que eu quero abrir a porta, coisa
ridícula. Entende? Eu melhorei nesse sentido. Esses radicalismos não levam a
nada. Tem até a ver com as minhas percepções de feminismo hoje.
MC. Você leva grandes amizades da vida política ou não?
Não. Levo conhecidos, mas não fiz amizades de frequentar. As
minhas amigas são de sete anos de idade.
MC. Nesses últimos anos, por conta da mudança de partido e
entrar no MDB num momento turbulento da política, você se sentiu sozinha?
Sim, mas isso não é o que eu lembro que me fez mal. Quando
você sai de um partido e entra em outro, é uma transição. Porque você não sai
de algo totalmente ruim, você sai porque tem críticas pesadas, mas existem
pessoas que você admira. E você entra num outro partido que tem pessoas com as
quais você se dá muito bem e outras com as quais você não tem uma afinidade
ideológica. E você tem que se encontrar ali. Eu senti que fiquei meio patinando
um pouco sim, mas nada que me impedisse de fazer as coisas que eu queria fazer.
MC. Da sua experiência com o PT, você ainda tem relação com
alguém?
Não. Ninguém. Deu uma esfriada na época do impeachment,
porque me posicionei a favor. Era uma xingação absoluta.
MC. Essa questão do impeachment é muito sensível na sua
trajetória. O Supla fez uma música: “Meu pai é petista, minha mãe é golpista”.
Como que você recebeu essa saraivada de críticas?
Faz parte. Tomei na vida decisões difíceis. Quando tomo uma
decisão é como se tivesse já uma blindagem. Falem o que quiser. Eu sou
impulsiva, mas essas grandes decisões da vida pública e pessoal não foram
tomadas de forma impulsiva. Foi muito pensado tudo que eu fiz, mesmo a mudança
para o MDB.
MC. Você se arrepende de alguma delas?
Sim, me arrependo de não ter entrado antes na política.
Entrei muito tarde [em 1994, Marta candidatou-se a deputada federal]. Acho que
teria uma melhor percepção da política se eu tivesse tido a experiência do
convívio político parlamentar antes.
MC. Você gostaria de ter assumido algum cargo eletivo que
não assumiu?
Não. Eu assumi todos - menos governadora e presidente.
MC. Em uma entrevista recente, você disse que Lula estava
entre você, Dilma Roussef e Marina Silva para a candidatura do PT à presidência
em 2010, “mas aí foi a Dilma”. Você gostaria que tivesse sido você?
Sim e não. Uma vez estávamos viajando de avião e ele [Lula]
falou para mim: “Marta, minha sucessora vai ser uma mulher.” Pensei “a Marina
não vai ser porque ela estava brigando muito no governo. Pode ser eu, pode ser
a Dilma”. Alguns meses se passaram e a Dilma virou a “mãe do PAC”. “Vai ser a
Dilma”, pensei, “trabalha há oito anos com ele, braço direito, acompanha todos
programas, é pessoa de confiança dele”. São Paulo não queria a Dilma, os
deputados e vereadores. Não que eles quisessem a mim. Eles não queriam a Dilma.
Aí, chamei os deputados, os vereadores, conversei. “Olha, gente, é uma decisão
tomada. Ela tem uma competência, acompanha todos programas do governo, vai
continuar o governo.” Depois, ela teve o câncer. E fiz na minha casa um almoço
para ela com mulheres da área comunicação. Veio a Mônica Waldvogel e a Ana
Maria Braga, de quem Dilma até ficou próxima.
MC. Vocês duas chegaram a ser amigas?
Não, amigas não. Mas tínhamos uma relação cordial, afetiva,
simpática.
MC. Vocês se falam hoje?
Não. Acho que você não lembra como eu saí. Fiz uma carta
pesadíssima. Dizia “volta, Lula”. E ela queria ver o diabo, mas não queria me
ver. Foi difícil fazer esse “volta, Lula”, mas foi pela percepção de que ela
era incompetente e que o Brasil ia para o caos. Alguém tinha que fazer alguma
coisa. Eu era ministra, que recebia muitos deputados. Os deputados falaram para
mim, do PT e de outros partidos: “Tá um caos, tem que se fazer alguma coisa .
Vinha gente do PT: “Fala com Rui, tem que se começar a pensar, tem que ser o
Lula, não pode ser ela.” Aí fui falar com o Lula.
MC. Você falou com o Lula e ele?
Falou bastante mal dela. E que não ia ser candidato. Fiz um
encontro com empresários na minha casa. Ele foi e de novo falou mal dela,
muito, criticou a política econômica dela. A coisa foi se acirrando. Eu falei
com Lula que o PMDB tinha conversado comigo e que eu disse que não apoiaria
ela. Até que chegou um dia, ele me chamou e confirmou “não vou ser
[candidato]”. Eu falei “presidente, esse é o maior erro que o senhor poderia
fazer. Ela vai levar o Brasil para o caos”. Ele: “Marta, vai dar certo. Vamos
colaborar, você tem muito para fazer”. Eu: “Presidente, vou buscar o meu
caminho e não vou colaborar na campanha dela”. Fiquei no Ministério [da
Cultura] mais dois-três meses e não participei de mais de nada. No dia em que
ela ganhou, apresentei minha carta de demissão. Ela não aceitou. “Marta agora
tô indo para a Austrália e não é bom acontecer isso desse jeito. Você fica até
minha volta”. Eu falei, “bom, então vamos fazer um acordo, isso fica entre nós.
Fico até sua volta, mas não vamos vazar”. Quando faltavam uns três dias para
ela chegar, entro no gabinete e ouço: “Acabou de chegar um telefonema da Casa
Civil para todos ministros pedirem demissão.” Era para aguar minha saída. Fiz
algo que eu não queria fazer. Peguei minha carta, fui ao palácio e protocolei.
Aí, saiu para todos os lados. Porque era uma carta muito forte. Não teve
demissão nenhuma, de ministro nenhum, era só por causa da minha demissão. Nunca
mais encontrei ela e também não encontrei mais o Lula.
MC. O que pensa sobre a prisão do Lula?
Lei é lei. E a lei foi feita pelo próprio governo dele. Da
Ficha Limpa. Então, seguindo a lei, ele deveria estar preso.
MC. Para você, o fato dele estar preso é justo?
Não vejo como você poderia ser diferente se existe a Lei da
Ficha Limpa. Agora, se existe uma motivação política para a prisão, eu não sei.
Eu não me sinto confortável com tudo isso que está acontecendo. Porque, no
final, Lula está colocando a trajetória dele acima do Brasil. Ele está criando
uma situação de conflito, de dificuldade, porque o próprio eleitor tá preso no
seu voto.
MC. Você gosta da possível dupla petista Haddad e Manuela
D´Ávila?
Não. Se eu gosto? Não. Gosto muito da Manuela como pessoa.
Do Haddad não. Ele foi um péssimo gestor de São Paulo. Como ministro, fez
alguns projetos interessantes, mas como gestor foi muito mal. O próprio FIES,
você viu o que aconteceu. Agora está um desastre. A criação de inúmeras
universidades que não conseguem funcionar, o ensino básico abandonado.
MC. Quem é seu candidato?
Estou estudando para ver o que vai acontecer. Não sei ainda.
MC. Num cenário sem Lula, pesquisas apontam Bolsonaro como
preferido. Votaria nele?
Esse é o único que tenho certeza que não voto. Vejo dois
grupos que podem votar no Bolsonaro: um
é conservador, homofóbico, machista, que pensa igual a ele, a favor do
"bandido bom é bandido morto". Outro grupo diz: "não aguento
mais corrupção, não aguento mais um governo que não tá pensando no país, não
aguento mais um governo que não tem projeto". E erroneamente credita ao
Bolsonaro a capacidade de dar um rumo para o país.
MC. E para a televisão, você tem vontade de voltar?
Tenho. Dependendo do que fosse possível e interessante,
tenho.
MC. Como você avalia o governo Temer?
Ele fez coisas importantes em pouco tempo. Mas depois do
episódio com o Joesley [Batista] e o [Rodrigo] Janot, o governo se fragilizou
enormemente e não conseguiu mais aprovar o que tinha que aprovar. Acho que foi
uma degringolada que deu essa impopularidade gigantesca.
MC. Como é sua relação com ele?
Boa, boa.
MC. Por que você não aceitou ser vice do Henrique Meirelles?
Não tenho afinidade com ele.
MC. Não te interessava nem a posição de ser vice no próximo
governo?
Não. Nunca procurei posição nenhuma. Deixa eu esclarecer. O
Meirelles nunca ligou para mim. Foram ministros que sondaram. E fui sondada
seriamente. Mas falei que não tinha interesse.
MC. Tem alguma coisa que a gente não falou que você acha
importante dizer?
Bota aí: se tratando dos direitos das mulheres, as mudanças
são inexoráveis.
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