Em Petrolina, município pernambucano de 300 mil habitantes,
às margens do Rio São Francisco, funciona o QG da produção de vídeos para a TV
e redes sociais da candidatura presidencial de Jair Bolsonaro. Essa, pelo
menos, é a informação fornecida pela campanha do PSL na prestação de contas
parcial que apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo o
documento, foram pagos R$ 240 mil para uma produtora local, cerca de 20% do
total de gastos da campanha até agora.
A reportagem de ÉPOCA foi até o endereço registrado da
produtora de vídeo, a Mosqueteiros Filmes Ltda. No local, no centro de
Petrolina, encontrou apenas uma casa vazia — uma placa anuncia que ela está à
venda. O imóvel está sem uso há mais de dois anos, segundo os moradores do
bairro. Quem atende o telefone exposto na fachada é Roberta Nogueira, confeiteira
e dona do imóvel desde 2005. “Esse pessoal da Mosqueteiros alugou um escritório
lá há muito, muito tempo. Já saíram há anos, nem lembro quantos. Não sei onde
estão ou se ainda existem”, disse à reportagem por telefone.
A atividade registrada pela empresa na Receita Federal é, de
fato, a produção de filmes publicitários, ainda que não tenha sede, telefone ou
site na internet para vender esse serviço. Criada em 2011, seus proprietários
são Gabriel Salles — que à época tinha 18 anos — e sua mãe, Maria Dias.
Para entender o papel da Mosqueteiros Filmes na campanha de
Bolsonaro, o melhor é concentrar a atenção em outra agência de comunicação
instalada na cidade, a 9ideia — que tem sede em João Pessoa, capital da
Paraíba. Seus quatro funcionários em Petrolina prestam serviços para a
prefeitura da cidade. Eles dizem não ter envolvimento nenhum com a campanha do
candidato do PSL. Mas o sócio da empresa tem. Ele é o publicitário Lucas
Salles.
Quem apresentou Lucas Salles a Jair Bolsonaro foi o
coordenador político do pesselista no Nordeste, Julian Lemos, candidato a
deputado federal e vice-presidente do PSL. Ainda na fase de pré-campanha, o
publicitário se apresentava como consultor político e “marquetólogo” de
Bolsonaro — ele e seu cliente não gostam do termo “marqueteiro”.
Lucas Salles, sócio da 9ideia, é o pai de Gabriel e o marido
de Maria Dias, os sócios da Mosqueteiros. Os três moram em João Pessoa, a 800
quilômetros de Petrolina. Quando ÉPOCA visitou a 9ideia, na capital paraibana,
Lucas Salles e Maria Dias estavam na agência, um pequeno prédio de três andares
localizado em uma esquina. O térreo é alugado por uma loja de bolsas, a agência
ocupa os outros dois pisos.
Em uma sala de reuniões, ao lado de um aquário em que dez
funcionários trabalhavam, o casal falou à reportagem. Perguntei por que
receberam o pagamento da campanha pelo CNPJ da Mosqueteiros Filmes, quando quem
estava de fato prestando o serviço era a 9ideia. “A 9ideia não está na
campanha, não. A Mosqueteiros é que está. É uma empresa de Petrolina, mas tem
uma filial aqui, no segundo andar deste prédio”, afirmou Lucas Salles. Segundo
Maria Dias, a 9ideia não pode atuar na produção de filmes para a campanha
porque é uma agência de publicidade de varejo. Seu objeto social é de agência
publicitária, não de produtora de filmes. “O Cenp, que é o Conselho Executivo
das Normas-Padrão, não permite que agências de publicidade atendam a contas
eleitorais”, afirmou Maria Dias. A Mosqueteiros tem um CNPJ na Paraíba desde
2013.
Em seguida, Lucas Salles me levou ao segundo andar da
agência, onde fica, segundo ele, a produtora de filmes. Gabriel Salles,
representante legal da Mosqueteiros, teve problemas de saúde nos últimos meses
e por isso não estava trabalhando, segundo seu pai. O local estava vazio. Havia
um adesivo da Mosqueteiros Filmes exposto na porta de uma pequena sala
trancada. “Aqui é a Mosqueteiros.” Depois de pedir para uma auxiliar trazer a
chave da sala, ele mostrou alguns itens jogados no chão, como tripés e
lâmpadas. “Os equipamentos mais caros ficam lá embaixo, porque é mais seguro”,
explicou.
De volta ao primeiro andar, perguntei se aqueles
funcionários, na sede da 9ideia, não eram os que estavam realmente trabalhando
na campanha presidencial. Lucas Salles respondeu que sim e disse que contratou
apenas três frilas para a Mosqueteiros, no Rio de Janeiro. “Mas os funcionários
da 9ideia vão ser remunerados de alguma forma com esse dinheiro da campanha que
a Mosqueteiros recebeu?”, perguntei. “Sim, vou dar um bônus para eles”,
explicou. Segundo o publicitário, eram 16 empregados da 9ideia envolvidos no
início do projeto, mas alguns pediram demissão porque sentiram “desconforto” em
trabalhar para Bolsonaro.
Lucas Salles nasceu há 55 anos em Campina Grande. Estudou
comunicação, militou no PT e hoje dá aula de marketing político em João Pessoa.
Usa óculos com uma armação escura e pesada, que contrasta com sua careca. Maria
Dias, de 50 anos, também especializada em marketing, é sócia da 9ideia e
encarregada da parte jurídica e financeira da empresa. O casal trabalha junto
há 30 anos.
Quando fala de Bolsonaro, Salles mostra-se apaixonado.
“Tenho uma relação próxima com ele. Quando o conheci, ele perguntou: ‘Você está
preparado para a missão?’. Falei: ‘Fui forjado para estar aqui’.” Ele
acompanhou Bolsonaro em debates e elaborou o jingle da campanha com o músico
Dinarte Nóbrega, seu funcionário. A música “Muda Brasil, muda de verdade”
começa com as notas do Hino Nacional. A letra fala em “Bolsonaro, com amor e
com coragem”. “Me disseram que não tinha nada a ver falar de amor, que Bolsonaro
não tem a ver com amor. Mas, para mim, Deus é amor.” Na sala de reunião, há uma
Bíblia sobre a mesa.
Bolsonaro informou ao
TSE ter gasto apenas R$ 1,1 milhão até agora. A produtora Mosqueteiros
representa o segundo maior gasto, após uma despesa de R$ 250 mil com uma
agência de viagens. As receitas vêm de arrecadação coletiva e de doações de
pessoas físicas, segundo a prestação de contas. A estrutura pequena se
justifica, em parte, pelo perfil da campanha. Com apenas oito segundos de
televisão e 11 inserções de 30 segundos, o foco está nas redes sociais, onde o
candidato tem milhões de seguidores.
Outra empresa de marketing, a AM4, centraliza a distribuição
de conteúdo digital. Muitos vídeos para compartilhar nas redes sociais são
produzidos pela equipe de Salles, e outros são apenas transmissões de discursos
de Bolsonaro e de seus filhos. O publicitário de João Pessoa não especificou
quanto dinheiro vai tirar da Mosqueteiros para remunerar os funcionários da
9ideia que trabalham na campanha, qual é o salário deles nem qual é o formato
que prevê para esse pagamento extra, já que não planeja envolver o CNPJ da agência
de publicidade na prestação de contas. O valor pago, R$ 240 mil, está muito
abaixo da média do mercado. Para suas produtoras de vídeo, Geraldo Alckmin
pagou R$ 15 milhões, e Henrique Meirelles R$ 10 milhões. Os gastos do PT com a
mesma atividade foram de R$ 5,2 milhões e os de Ciro Gomes R$ 2,3 milhões.
Perguntei a Salles se ele poderia ter envolvimento na
distribuição da verba, já que não é sócio da Mosqueteiros. “Não, mas eu posso
fazer parte dela trabalhando nela, para administrar.” Questionei se ele era
funcionário da empresa. “Não.” Perguntei se, nesse caso, estava ou não
trabalhando na campanha. “Estou na Alfa9.” A Alfa9, sua microempresa,
registrada como LCL Salles, recebeu R$ 30 mil da campanha de Bolsonaro, um
valor separado do pagamento à Mosqueteiros. Salles disse usar esse dinheiro
também para contratar autônomos quando é necessário. O objeto social registrado
para a Alfa9 é marketing direto, o que a habilita a prestar serviços de
consultoria política, segundo ele. No segundo andar também há um adesivo com a
logomarca da Alfa9.
A campanha de Bolsonaro indicou a advogada Karina Kufa,
responsável pela prestação de contas, para explicar o imbróglio. “Não há
nenhuma irregularidade na contratação”, disse por telefone. “A empresa
(Mosqueteiros) tem estrutura suficiente para atender a uma demanda de pequeno
porte.” Ao ser questionada sobre o fato de funcionários da 9ideia prestarem
serviço para a campanha, Kufa disse que se trata de um problema trabalhista.
“Se tiver um problema trabalhista com a empresa dele, de ele estar fazendo o
desvio de trabalhadores de uma empresa para outra, isso não é problema da
campanha. A campanha contrata empresas.”
De acordo com advogados eleitorais, informar na prestação de
contas o CNPJ de uma empresa laranja, que não é a que de fato está prestando o
serviço, pode ser considerado crime de falsidade ideológica eleitoral se
constatada a intenção de fraude. O Código Eleitoral prevê uma pena de até cinco
anos para o delito. Para Salles, não há irregularidade, e cada CNPJ tem seu
objeto de atuação nesse caso. “É normal ter duas empresas, uma agência e uma
produtora. Se faz assim no Brasil, nos Estados Unidos. Não há nenhum
impedimento legal ou moral.”
Para Daniel Falcão, professor de Direito Eleitoral da USP de
Ribeirão Preto, São Paulo, uma situação como essa poderia ser um sinal de gasto
ou captação ilícita, o que pode motivar uma Ação de Investigação Judicial
Eleitoral. “É muito comum no Brasil pagar dinheiro para uma empresa que não
existe. No julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE, foi um dos pontos
centrais. A campanha tem a responsabilidade e a obrigação de verificar
exatamente para quem está pagando.”
Empresas também não podem prestar serviços gratuitos a uma
campanha eleitoral. Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu doações
de empresas, em 2015, uma pessoa jurídica não pode fornecer apoio a um
candidato sem cobrar. “Se a empresa está trabalhando sem receber formalmente em
sua conta, pode ser uma doação empresarial ilícita e configurar abuso de poder econômico”,
afirmou Marcellus Ferreira Pinto, advogado especializado em Direito Eleitoral.
A captação ilícita está configurada quando há gastos
bancados com recursos financeiros que não vêm da conta de campanha, o que é
conhecido como caixa dois. Para ser considerado abusivo, esse gasto deve ser
uma parcela relevante do total de despesas, a ponto de mudar o resultado da
eleição. Uma das consequências da condenação por abuso de poder econômico é a
cassação da chapa ou do mandato político. “Não é possível dizer se há abuso de
poder econômico sem uma investigação, mas há, nesse caso, uma situação de
desorganização contábil, que leva a uma falta de transparência”, disse Raquel
Machado, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará. “É
uma situação comum no Brasil e muito grave. Há empresas contratadas em
campanhas que são empresas de fachada.”
Em março do ano passado, a 9ideia foi condenada pelo
Tribunal de Contas da União (TCU) a devolver dinheiro aos cofres públicos. O
tribunal reprovou a prestação de contas de um convênio do Ministério do Turismo
com a prefeitura de Cajazeiras, na Paraíba. O serviço superfaturado foi um
festival de shows de forró em junho de 2009. O ex-prefeito Leonid Souza de
Abreu foi condenado solidariamente com a 9ideia a devolver R$ 103 mil. A
decisão do TCU incluiu uma multa de R$ 15 mil para a agência. O casal Lucas
Salles e Maria Dias afirmou que a responsabilidade é da prefeitura, que teria
perdido os comprovantes de que os serviços foram prestados pela agência. Um
recurso foi apresentado contra a decisão do TCU.
Das cinco empresas de que Salles é sócio, duas são
consideradas inativas pela Receita por terem omitido declarações fiscais, a
Praxxi Comunicação e a Associação dos Amigos de Algodão de Jandaíra. Outras
duas, a 9ideia e a microempresa em seu nome, a Alfa9 (LCL Salles), têm débitos
fiscais inscritos com a União. A 9ideia também está sendo processada por
débitos fiscais com a prefeitura de João Pessoa. A 9ideia não nega que tenha
eventualmente ficado sem pagar impostos. “A empresa que disser que não tem
imposto a ser pago, pode ir atrás que tem coisa”, afirmou Maria Dias.
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