Da ÉPOCA
Observando a trajetória política recente dos Estados Unidos e do Brasil, percebem-se semelhanças e diferenças entre os fenômenos do “trumpismo” e do “bolsonarismo”. O que mais preocupa são certas semelhanças que não parecem mera coincidência.
Nos dois casos, políticos de extrema-direita têm explorado, de maneira oportuna, para fins eleitorais, as expectativas frustradas de milhões de pessoas em situações crescentes de vulnerabilidade social e econômica. Nos EUA, o “sonho americano” está cada vez mais distante para a maioria da população, num contexto de efeitos perversos de um capitalismo cada vez mais globalizado associados a políticas neoliberais promovidas tanto por governos democratas como republicanos. Apesar de importantes avanços do governo de Barack Obama, a campanha de Hillary sofreu com a herança de políticas neoliberais como o Nafta, lançado no governo do marido, que acirraram desigualdades sociais e econômicas. Para piorar a situação, quando candidata à presidência, a ex-senadora, deu relativamente pouca atenção ao eleitorado de estados como Michigan, antigo polo da indústria automobilística que tem sofrido com o agravamento do desemprego e os baixos salários provocados pela desindustrialização. (As ligações dos Clinton com Wall Street tampouco ajudaram a combater a pecha de elite política do establishment de Washington). Nessas condições, abriu-se espaço para que um bilionário populista de direita se caracterizasse como campeão entre os trabalhadores “esquecidos” pelo partido democrata.
No Brasil, a grave crise econômica e os megaescândalos de corrupção envolvendo partidos tradicionais como o MDB, PSDB e PT revelados pela Operação Lava Jato geraram nos eleitores, inclusive nos mais pobres, uma revolta generalizada contra a classe política, o que prejudicou não apenas a candidatura de Fernando Haddad, mas também de outros políticos com perfil de centro-esquerda que no passado tiveram vínculos com o PT, como Ciro Gomes e Marina Silva. Assim como nos Estados Unidos, uma candidatura da extrema-direita no Brasil soube explorar espaços abertos pelo crescimento de desigualdades e erros cometidos por partidos tradicionais da social-democracia.
Uma tática comum entre o trumpismo e o bolsonarismo é a pregação da nostalgia de um passado idealizado que o “candidato-herói” promete trazer milagrosamente de volta. A campanha de Trump adotou como lema “Make America great again”, desconsiderando alguns detalhes da história norte-americana, como o genocídio de povos indígenas, a escravidão e os longos períodos de discriminação contra mulheres, negros e imigrantes. Por sua vez, o “mito” Bolsonaro revela uma nostalgia dos anos de chumbo, inclusive das práticas de tortura que marcaram a ditadura militar no Brasil.
Um pilar das estratégias do trumpismo e do bolsonarismo é o incentivo ao medo, à raiva e ao ódio, com apologia à violência e a escolha de indivíduos e grupos minoritários para transformá-los em inimigos, que passam a ser culpados por todo mal que aflige a sociedade. Para o trumpismo, os alvos prediletos têm sido, entre outros, populações de novos imigrantes — caracterizando mexicanos como “estupradores” e mulçumanos como “terroristas” —, negros e, claro, adversários democratas, especialmente lideranças como Hillary Clinton e Barack Obama. (Enquanto isso, Trump surfa uma onda econômica positiva, iniciada no governo Obama, ficando com todo crédito para si). Para o bolsonarismo, a extensa lista de inimigos da nação inclui, além de petistas e “comunistas”, os povos indígenas, quilombolas, movimentos LGBT, ambientalistas, movimentos sociais como o MST, defensores dos direitos humanos, instituições como Ibama, ICMBio, “ativistas” em geral e por aí vai. Tanto no trumpismo como no bolsonarismo destacam-se também comportamentos sexistas, propagando desrespeito e violência contra mulheres.
Outra semelhança marcante entre os dois é o antagonismo dirigido a veículos da grande imprensa que assumem posturas independentes ( CNN , The New York Times , Folha de S.Paulo etc.). Acusações raivosas de fake news aparecem quando notícias veiculadas revelam verdades inconvenientes, contrariando seus interesses político-eleitorais. Enquanto isso, informações distorcidas e falsas, apelando para o medo, o preconceito e a raiva contra adversários, são disseminadas em massa via mídias sociais.
Um resultado direto dos ataques à imprensa e da incitação ao ódio contra “inimigos” é a escalada da violência que rapidamente foge do controle, conforme demonstrado pela violência na marcha de neonazistas no ano passado em Charlottesville, no estado de Virgínia, nos EUA, e, nesta semana, pelo envio por um terrorista doméstico de uma série de cartas-bomba aos inimigos prediletos de Trump: CNN, as famílias Clinton e Obama, o ex-vice-presidente Joe Biden, a deputada federal democrata Maxine Waters, o ator Robert De Niro e o bilionário investidor e filantropo George Soros, entre outros.
No Brasil, já começaram a aparecer atos graves de violência praticados por correligionários de Bolsonaro, como a morte do mestre capoeira Moa do Katendê, assassinado a facadas por um partidário do capitão reformado. Enquanto isso, surgem ameaças à imprensa brasileira, como no caso da Folha de S. Paulo após a publicação de matéria sobre a contratação milionária, por empresários ligados ao bolsonarismo, de serviços para a divulgação em massa, via aplicativo WhatsApp, de notícias falsas sobre a candidatura de Haddad — o que resultou num pedido de proteção policial para seus jornalistas.
Outra semelhança entre os dois é flerte com de igrejas evangélicas conservadoras com discursos moralistas sobre temas como a proibição do aborto e do casamento gay. Ambos acenam com vantagens econômicas para as igrejas e seus líderes (quase sempre homens brancos).
Muitas das táticas adotadas pelo trumpismo e pelo bolsonarismo — que parecem inspiradas no “playbook” de Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista entre 1933 e 1945 — ficam mais compreensíveis quando se consideram os interesses econômicos com os quais mantêm fortes vínculos. No caso de Trump, destaca-se a influência das indústrias do petróleo e do carvão. No caso de Bolsonaro, fica evidente a forte influência da bancada ruralista. Nos dois casos, trata-se de interesses imediatistas de grupos poderosos, pautados na apropriação privada de territórios, tipicamente bens públicos, para fins de exploração de seus recursos naturais, desconsiderando danos socioambientais que recaem sobre as populações locais (como povos indígenas, quilombolas e agricultores familiares) e a sociedade em geral.
Os marqueteiros de Trump e Bolsonaro têm investido muito na criação da imagem de um político estadista “novo” e diferente. Isso contrasta com os modelos ultrapassados de desenvolvimento promovidos na prática, pautados na exploração predatória de recursos naturais, sem inovação tecnológica e de baixo valor agregado, a exemplo da exportação de commodities como a soja. Desconsideram-se os desafios colocados pelas mudanças climáticas, pelos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para 2030, assim como as oportunidades que o Brasil possui — com sua enorme diversidade cultural e biológica e seu potencial criativo — de gerar renda com empregos de qualidade, associadas a uma nova economia do século XXI, pautada na inovação tecnológica, no respeito à diversidade cultural e na sustentabilidade ambiental.
Quando Trump conseguiu levar a eleição presidencial dos EUA em 2016 (perdendo para Hillary Clinton no voto popular, mas ganhando por pouco no arcaico colégio eleitoral), muitos questionaram até que ponto a retórica de extrema-direita da campanha seria colocada em prática. Alguns apostaram que, uma vez empossado, Trump poderia adotar uma espécie de pragmatismo moderado. O que tem acontecido ao longo dos últimos dois anos é exatamente o contrário. Verifica-se, na prática, um ataque generalizado e sistemático do trumpismo a instituições democráticas, inclusive programas sociais de seguridade social, saúde e educação pública. O tratamento de imigrantes (inclusive brasileiros), além das práticas de demonização, traz requintes de crueldade, como no caso da detenção e separação de crianças pequenas de seus pais.
Sem pudor, o governo Trump investe na destruição do programa de energias renováveis de baixo carbono da era Obama, enquanto propõe incentivos à indústria de carvão e petróleo, sem um mínimo de cuidados ambientais. Além disso, tem procurado desmontar sistematicamente políticas de proteção da qualidade da água e do ar, conquistas históricas que datam dos anos 70. O governo Trump está determinado a reduzir, o máximo possível, áreas de patrimônio natural e proteção ambiental, como o Monumento Nacional Bear Ears no estado de Utah — criado por Obama e reduzido em 85% —, para permitir a exploração do petróleo e do “fracking”. Seu indicado para presidir a Agência Federal de Proteção Ambiental (EPA) tomou posse com a missão de inviabilizar seu funcionamento. Para completar, Trump anunciou a intenção de abandonar o Acordo de Paris, o que constitui um risco de dimensões planetárias.
Sem escrúpulos, Trump tem utilizado a máquina do Estado para favorecer interesses privados, chegando a comprometer a política externa em casos como a Rússia e a Arábia Saudita, onde possui negócios imobiliários. Enquanto isso, com pleno aval do presidente, o partido republicano tem intensificado os esforços para impedir o direito a voto, sobretudo entre pobres e negros, e para redesenhar distritos de votação para seu autofavorecimento (prática conhecida como “gerrymandering”) como forma de se consolidar no poder.
No entanto, o que parece a face mais perversa do narcisista Trump é a incitação ao preconceito, ao ódio e à violência, sempre seguindo uma lógica de ganhos com sua “base eleitoral”.
Felizmente, existem importantes exemplos de resistência de instituições democráticas, da ação da cidadania (com forte protagonismo das mulheres) e de governos estaduais e municipais nos EUA. Espera-se uma reviravolta no controle do Congresso pelos democratas a partir das eleições de 6 de novembro. No entanto, persiste uma sensação de fragilidade da democracia, que precisa de vigilância a toda hora.
Voltando ao bolsonarismo, tenho ouvido algumas hipóteses e muitas dúvidas sobre o que pode vir a acontecer caso seja confirmado o resultado mais provável do segundo turno, conforme as pesquisas de opinião pública. Até que ponto Bolsonaro vai respeitar a Constituição Federal e as instituições democráticas? Vai criminalizar movimentos sociais e ambientalistas, ao ponto de tratá-los como terroristas? Até que ponto vai continuar incitando o preconceito e o ódio contra negros, mulheres, indígenas e outros “inimigos”? Vão se concretizar os planos de descaracterizar a política ambiental, inclusive a fusão dos ministérios do meio ambiente e da agricultura, sob o comando da bancada ruralista? Vai tentar tirar o Brasil do Acordo de Paris, seguindo o exemplo de Trump, o que seria um tremendo tiro no pé para a economia e o prestígio internacional do país?
Mirando no caso de Trump, que Bolsonaro considera um “excelente presidente”, é difícil enxergar motivos para otimismo em relação a essas perguntas, a não ser a capacidade de resistência do povo brasileiro. Melhor é não cair do precipício. Que a experiência do trumpismo nos EUA possa servir de alerta aos brasileiros para os perigos que sua jovem democracia corre, para que ela receba os cuidados que merece e que o Brasil possa trilhar seu próprio caminho, com sabedoria, solidariedade e alegria, antes que seja tarde.
Geógrafo, Brent Millikan é diretor da International Rivers - Brasil
sábado, 27 de outubro de 2018
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