Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das
Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto
Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama
e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e
Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos
ministros e pelos principais chefes militares.
Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as
medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o
período mais duro da ditadura.
O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como
fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado
e cassar mandatos.
Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou
aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus
em casos como crimes políticos.
Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da
Justiça. “Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do
regime”, diz o historiador José Murilo de Carvalho. “O AI-5 representou uma
vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos
civis e políticos considerados básicos numa democracia.”
Documentos produzidos pelos militares e relatórios da
Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo
AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em
diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.
De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes
Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois
auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e
José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.
De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho,
Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos
mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).
Em relação aos documentos militares, a Folha compilou
os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e
produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de
assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.
Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres,
incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e
até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.
Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do
Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de
unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos,
incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal
Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser
considerado adversário do governo.
Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o
entrevistaram: “O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e
comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos
referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau
governo a fazer uma boa revolução”.
Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do “Correio da
Manhã”, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos
suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da
ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos
dois primeiros anos da vigência do AI-5.
Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos
mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997)
foram suspensos. O autor de “Quarup” também acabou sendo preso -a cassação foi
revogada posteriormente.
O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi
aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi
punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador
e considerado um dos principais intelectuais do país.
Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias
tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço
para defesa e duravam poucos dias ou semanas.
Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia
de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes
confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da
máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.
Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob
investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados,
distribuídos por adversários do político.
As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e
anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de
1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados
federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos
suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.
“Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na
organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos”, diz à Folha
David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81,
apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.
O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da
repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de
esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.
Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e
o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a
Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares
para perseguir militantes da esquerda.
A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro,
liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em
Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.
No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela
Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do
próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que deu
sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de
tortura e execução de presos já dominados.
Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes
de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos
militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e
outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.
O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os
mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da
Comissão Nacional da Verdade.
Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela
contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência
civil também exibia um fôlego crescente.
O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais
no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime
militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e
a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.
Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo
do ano.
No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais
radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma
“guerra revolucionária”.
“Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas
ruas. Era um ambiente de grande tensão”, diz Delfim Netto, à época ministro da
Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança
Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está
vivo.
O ex-ministro critica a linha dura (“extremamente
nacionalistas, de uma visão muito curta”). No entanto, ele pondera que a
situação do país naquele momento era “bastante complicada”.
Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido
contornada. “O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente
baixo. Ferviam com qualquer coisa.”
De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os
parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de
negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira
Alves (1936-2009).
Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3
de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência
dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade
a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. “Quando o Exército deixará
de ser um valhacouto de torturadores?”, indagou.
Para Delfim, “foi uma provocação inteiramente
despropositada”. O discurso “caiu muito mal entre os militares. Foi a gota
d”água para o endurecimento do regime”, recorda-se David Lerer, colega de
partido e amigo de Moreira Alves.
Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas
(1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição
de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.
Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada
do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena,
votaram a favor de Moreira Alves.
No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional
e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o
Congresso às Forças Armadas.
No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da
Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional.
Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.
“O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é
[…] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”, afirmou o
vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma
preocupação clara com as novas propostas.
É preciso “acabar com estas situações que podem levar o país
não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos”, declarou Augusto
Rademaker, ministro da Marinha.
Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a
reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.
“Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra
visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que
tinha, eu repetiria o fato”, afirma Delfim, colunista da Folha.
“Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os
direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais].”
No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo
resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da “revolução
brasileira de 31 de março de 1964”, que visavam dar ao país “autêntica ordem
democrática”.
Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que
tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.
No livro “A Ditadura Envergonhada”, primeiro dos cinco
volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim
resume o encontro no Laranjeiras:
“Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da
democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando
as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias.”
O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de
outubro de 1969.
Três meses depois da decretação do AI-5, permitiu-se a
encarregados de inquéritos políticos prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10
dos quais em regime de incomunicabilidade. Segundo Gaspari, colunista da Folha,
esses prazos se destinavam a favorecer o trabalho dos torturadores.
Há registros de tortura desde os primeiros dias da ditadura
militar, mas a repressão ganhou intensidade após o AI-5, sobretudo no governo
de Emílio Médici (1969-1974).
Rompia-se, a partir daí, parte expressiva do apoio civil ao
regime. “O AI-5 aumentou a repressão e fez com que setores da oposição
recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência,
tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país”, afirma o
historiador José Murilo de Carvalho.
Em artigo recém-publicado pela Revista Brasileira de
História, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas
Gerais, examina as origens do ato.
De acordo com ele, a perda de prestígio e o isolamento
político da ditadura, materializados na derrota na Câmara no caso Moreira
Alves, estimularam a resposta autoritária dos agentes militares.
Pressionado à esquerda e à direita, vendo ruir os pilares de
seu governo, Costa e Silva aceitou a demanda dos grupos militares mais
radicais.
O governo já dispunha de instrumentos para reprimir
revolucionários de esquerda. O novo ato autoritário, conclui Sá Motta, se
prestava sobretudo a enquadrar dissidentes da própria ditadura, segmentos da
elite (Congresso, Judiciário, imprensa, universidades) que apoiaram o golpe de
1964, mas se distanciaram em seguida.
“Se havia ainda dúvida de que o regime era uma ditadura
governada por militares, isso cai em 68. Os militares foram ainda mais
preponderantes no governo, e os parceiros civis tiveram papel mais apagado. A
Arena, que servia para dar algum verniz democrático ao regime, entrou em
ostracismo nos anos seguintes.”
O AI-5 teve seu fim em 31 de dezembro de 1978, no governo
Ernesto Geisel, em meio ao processo de abertura política. A ditadura, porém,
resistiu por mais seis anos.
Colaborou EDMIR FARIAS
Cronologia do AI-5
Antes, durante e depois
Antes, durante e depois
28 de março de 1968 – O estudante Edson Luís é
morto pela Polícia Militar durante protesto no Rio. Sucedem-se manifestações
contra a violência policial
16 de abril de 1968 – Trabalhadores de
siderúrgica de Contagem (MG) fazem a primeira grande mobilização operária no
país desde o golpe de 1964. Acordo põe fim ao movimento no dia 26
17 de abril de 1968 – 68 municípios são
considerados áreas de segurança nacional e proibidos de realizar eleições
municipais
12 de junho de 1968 – Brigadeiro José Paulo
Burnier revela ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho o plano de
explodir o gasômetro do Rio, atentado que mataria milhares de pessoas. O
objetivo era atribuir a culpa à esquerda. O plano não se consuma devido à
recusa do capitão de levá-lo adiante; mais tarde, Carvalho é preso e reformado.
O episódio passa a ser conhecido como caso Para-Sar
25 de junho de 1968 – Na manifestação que ficou
conhecida como Passeata dos 100 Mil, no Rio, estudantes, artistas e
representantes da classe média e da Igreja Católica se opõem à violência
policial e pedem a volta da democracia
16 de julho de 1968 – Três meses depois de
Contagem, acontece a greve de Osasco (SP). Metalúrgicos e estudantes ocupam a
Cobrasma (Companhia Brasileira de Material Ferroviário). Três dias depois, mais
de 400 são presos, e reivindicações não são atendidas
2 de setembro de 1968 – Márcio Moreira Alves,
deputado federal pelo MDB, faz discurso enfático na Câmara. “Quando o Exército
não será um valhacouto de torturadores?”, questiona. Também sugere que a
população boicote a parada militar de 7 de setembro
3 de outubro de 1968 – Acontece a Batalha da
Maria Antônia. Com bombas, tiros e coquetéis molotov, estudantes do Mackenzie
(alguns deles ligados ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas) atacam os
estudantes da Filosofia da USP. Esses últimos reagem, mas têm menor poder de
fogo. Um jovem, que estava no prédio da Filosofia, é morto
12 de outubro de 1968 – Polícia invade sítio em
Ibiúna (SP), onde acontece o 30º Congresso da UNE. Mais de 900 estudantes são
presos
12 de dezembro de 1968 – Em votação no plenário,
marcada por discurso de Mário Covas (MDB-SP), Câmara não suspende a imunidade
parlamentar de Moreira Alves. Decisão desagrada ao governo militar, que
pretendia processar o deputado
13 de dezembro de 1968 – Após reunião do
presidente Costa e Silva com membros do Conselho Nacional de Segurança, entra
em vigor o AI-5 (ato institucional número 5), que impõe o recesso do Congresso
Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. A partir daí, o
presidente pode intervir em estados e municípios e suspender os direitos políticos
de qualquer cidadão. Habeas corpus também é suspenso
30 de dezembro de 1968 – Sai a primeira lista de
cassações, que inclui 11 deputados federais, como Márcio Moreira Alves
(MDB-RJ). Ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda tem seus direitos políticos
suspensos
16 de janeiro de 1969 – Mais 35 deputados
federais são cassados, entre eles Mário Covas (MDB). Lista também inclui dois
senadores, Aarão Steinbruck e João Abraão, e três ministros do STF, Hermes
Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva
25 de janeiro de 1969 – O capitão do Exército
Carlos Lamarca foge do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco (SP), levando
dezenas de fuzis e metralhadoras
1º de julho de 1969 – Governador Abreu Sodré
cria a Oban (Operação Bandeirantes), centro de repressão em São Paulo
31 de agosto de 1969Depois da saída da presidência de
Costa e Silva, incapacitado por uma trombose, junta de ministros militares
assume o poder
7 de setembro de 1969 – O embaixador americano
no Brasil, Charles Elbrick, é libertado após passar quatro dias em poder dos
sequestradores, integrantes de movimentos da luta armada. Os 15 presos
políticos libertados embarcam para o México
18 de setembro de 1969 – O governo aprova nova
Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de morte e prisão perpétua
30 de outubro de 1969 – O general Emílio
Garrastazu Médici assume a presidência
4 de novembro de 1969 – Carlos Marighella, líder
da ALN (Aliança Libertadora Nacional), é morto a tiros em São Paulo
15 de março de 1974 – Ernesto Geisel assume a
presidência
25 de outubro de 1975 – O jornalista Vladimir
Herzog é morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Seis
dias depois, mais de 10 mil pessoas participam de ato ecumênico na Catedral da
Sé em memória de Herzog
17 de janeiro de 1976 – O metalúrgico Manuel
Fiel Filho morre nas dependências do DOI-Codi. Como ocorreu com Herzog, versão
oficial indica suicídio; mais adiante, fica comprovada a morte sob tortura
1º de abril de 1977 – Geisel fecha o Congresso
Nacional
13 de outubro de 1978 – Sob o governo Geisel, é
promulgada emenda constitucional que revoga todos os atos institucionais e
complementares contrários à Constituição. Emenda passa a vigorar em 1º de
janeiro de 1979. O AI-5 durou pouco mais de dez anos
Veja as nove páginas do Ato Institucional nº 5
Documento original está no Arquivo Nacional em Brasília
O primeiro ato institucional foi decretado nove dias após o
golpe militar de 1964. O segundo foi editado em 1965, e outros dois em 1967. O
mais radical e abrangente deles, o AI-5, é de dezembro de 1968. Foi seguido por
outros 12 atos, todos decretados em 1969.
pág. 1
O preâmbulo indica a necessidade de manter a “ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana” e a “luta contra a corrupção” como meios para atingir “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil”
O preâmbulo indica a necessidade de manter a “ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana” e a “luta contra a corrupção” como meios para atingir “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil”
pág. 2
Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a “Revolução” iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares
Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a “Revolução” iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares
pág. 3
Ao mencionar “fatores perturbadores da ordem”, refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso
Ao mencionar “fatores perturbadores da ordem”, refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso
pág. 4
Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios
Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios
pág. 5
Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, “para preservar a Revolução”, o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos
Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, “para preservar a Revolução”, o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos
pág. 6
Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares
Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares
pág. 7
O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete “o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”
O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete “o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”
pág. 8
O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional
O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional
pág. 9
Nas duas últimas páginas, estão as assinaturas de Costa e
Silva e de 16 dos 24 membros do Conselho de Segurança Nacional
Por Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida
BRASÍLIA E SÃO PAULO
Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então
presidente brasileiro, o general Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa
conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill
(1910-1996), que a ditadura havia “sacrificado algumas coisas não fundamentais”
com o Ato para “preservar as fundamentais”, conforme argumentou. Ele tachou a
imprensa de “irresponsável”, os políticos como adversários das “realizações da
Revolução”, referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava
para o grupo de países latinoamericanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina)
que viviam sob “regimes de exceção”.
O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo
com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia
uma “completa tranquilidade” no Brasil e que as coisas voltariam “ao estado de
normalidade oportunamente”, com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi
revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.
Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na
presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi
registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente
disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA,
produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.
Costa e Silva recebeu Tuthill com “cumprimentos efusivos” e
logo “se lançou em um de seus longos monólogos”, ao qual deu um fim abrupto,
quando soou “o toque de recolher”, às 18h00. O embaixador reclamou depois que
“mal conseguiu encaixar uma palavra”.
Depois de uma introdução “longa e desconexa” sobre os
méritos das lentes de contato, o general comentou que Tuthill deixava a América
Latina num momento “confuso” para a região, com a Colômbia em estado de sítio e
outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em “regime de exceção”. O
Uruguai era “um bom vizinho”, mas estava “virtualmente “entregue aos
comunistas””, escreveu o embaixador.
O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar
“consideravelmente cônscio das críticas dos EUA” sobre o AI-5 e “aparentemente
as compreende”. Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que
os EUA têm uma “vida estratificada” e que “não se pode esperar que compreendam
os problemas dos países em fase de desenvolvimento”.
Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador.
Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam “impor seu padrão a
qualquer outro país”, mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967,
escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado “três
coisas que eu precisava ter em conta”: “1) As Forças Armadas são a instituição
mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse
presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação
na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente”.
Tuthill contou ter usado essas declarações em seus
relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora “vinha acompanhado
os atuais desdobramentos com preocupação”. O embaixador indagou à queima-roupa:
“O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?”
Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o
Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador
explicasse “toda a situação” para seus superiores e pontuou que havia “completa
tranquilidade” no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu
“diversas vezes” na conversa. O general falou do sacrifício “de algumas coisas
não fundamentais” e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os
meios de comunicação e “a classe política”, a exemplo do que já havia feito
dias antes em seu discurso de Ano Novo.
“Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento
entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um
entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que
os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. “Ninguém
trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se
recusaram a compreender””, escreveu o embaixador.
Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou “das dificuldades
que enfrentou”, citando como exemplo o “Correio da Manhã”, jornal do Rio
fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o
golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo
mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada
pela ditadura. Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a
ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy
Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política
e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na
mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.
Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que
“desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o “Correio da Manhã” imprimiu
uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito
[Richard] Nixon”. “Não existe uma carta como essa. Uma coisa desse tipo não
seria permitida nos EUA, e o “Correio” teria sido processado, mas nossas leis
não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável (“a de
vocês nos EUA é mais responsável”). O “Correio” publicou até todas as críticas
na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de
ontem do jornal”, escreveu Tuthill.
Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador
“para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos
EUA. Isso talvez não fosse verdade sob “os outros” (ele estava se referindo presumivelmente
ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)”.
Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou
convencido. “É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É
evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares
brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de
que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a
despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão
em ação em seu país.”
“Direitos deixaram de existir”
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.
Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo
secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo
telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era
como os EUA lidariam “com os programas de assistência” entre os dois países.
Tuthill respondeu que “não havia problema de reconhecimento
e que o governo americano não cortaria suas assistência”, mas deixou claro a
Magalhães Pinto que “a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia
sido muito forte”.
O embaixador pontuou que era necessária “uma indicação
melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos
democráticos básicos”. Nesse momento, Magalhães Pinto “concordou rapidamente
que esses direitos deixaram de existir”.
Tuthill disse que governo americano cumpriria suas
obrigações contratuais, mas “”esperaria para ver” quando a futuros programas da
AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em
negociação no momento”.
Magalhães Pinto ofereceu uma lona explicação sobre os
acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que “as pressões
vinham crescendo há algum tempo” e que o discurso do então deputado Marcio
Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, “não representava mais que 10% ou
15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido”. Depois da
votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves,
segundo o chanceler, “ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o
presidente agisse”.
O chanceler disse que “o presidente resistiu”. Tuthill
escreveu no telegrama que “outras fontes confirmam”. “Na primeira noite, ele
[Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo
segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria “ultrapassado”. Assim,
ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número
5.”
O chanceler brasileiro argumentou que “a intenção do
presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas
moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o
desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos
sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a
imagem de um governo militar”.
Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler
de um rápido retorno à normalidade. “O presidente deseja o retorno da plena
liberdade de imprensa o mais breve possível, “mas a poeira do ato institucional
ainda não se assentou”. O maior problema é que as forças armadas consideram a
imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin
[Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a
liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora”, escreveu Tuthill. O Ato só
seria extinto dez anos depois.
SÃO PAULO CINQUENTA ANOS DEPOIS, O PAÍS ESTÁ LIVRE DO
RISCO DE UM NOVO AI 5?
Num exercício teórico -que, se espera, nunca chegue ao plano
da prática- a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular
de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.
O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao
presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões
publicas. “As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram
ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais”, escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro “A
Ditadura Envergonhada”.
Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais
ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.
“A experiencia com países autoritários demonstra que a
primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e,
mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia
ser o bloqueio à internet em todo o país”, diz Ronaldo Lemos, diretor do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.
Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país
já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas
WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a
rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as
empresas de telecomunicação a suspender a conexão.
“Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas
deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de
cumplicidade com uma medida de exceção.”
Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda
das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos
sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos
por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível
vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.
“Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito
difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos
EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso
extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais”.
Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual
passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as
redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.
“Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba
sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera
um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário”, diz.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.
Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma
roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria
a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa
de notícias falsas.
“Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de
ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança
em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão
perigosa dos princípios democráticos”, especula.
Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para
ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao
Estado.
“A democracia é um processo de construção permanente,
incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la
radical e incondicionalmente”, afirma o advogado constitucionalista Marcus
Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para
manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da
possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da
liberdade de expressão.”
Capítulo 3
‘Brasil perdeu um pedaço da história’, diz deputado cassado
na 1ª lista do AI-5
Naief Haddad
SÃO PAULO
SÃO PAULO
Em 1978, o ex-deputado federal pelo MDB paulista David Lerer
voltou ao país depois de jornadas pela América do Sul, Europa e África. Havia
deixado o Brasil uma década antes com medo de ser preso.
“Nas semanas anteriores ao AI-5 [ato institucional número
5], todos [no Congresso] já sabiam que algo iria acontecer. O ministro Gama e
Silva circulava com um rascunho do ato. Era um segredo de polichinelo”, conta ele,
também médico aposentado.
No dia 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes da reunião
da cúpula do governo que sacramentou o AI-5, ele esteve na Câmara, em Brasília.
Foi uma passagem rápida porque Lerer e os raros parlamentares que estavam na
capital temiam que os militares invadissem o Congresso Nacional a qualquer
momento.
Com seu fusca, Lerer saiu em direção a uma agência do Banco
do Brasil para sacar todo o dinheiro que tinha. Em seguida, foi ao hotel onde
se hospedava para fazer a mala.
Decidiu permanecer em Brasília, mas agora instalado numa
casa de estudantes, que estava vazia àquela altura.
Três dias depois, os jipes da Polícia Militar estacionaram
em frente à residência. “A PM arrombou a porta e me deu uns tabefes. Eu estava
de cueca, me pegaram de samba-canção [risos]. Botei a calça do pijama, peguei
minha mala e fui com eles”.
Ele estava na carceragem em Brasília quando saiu a primeira
lista de cassações, em 30 de dezembro de 1968. A relação divulgada pelo governo
federal trazia dez nomes de deputados federais, entre eles o de Lerer. Além
dele, estão vivos Gastone Righi e José Lurtz Sabía, ambos pertencentes ao MDB
paulista.
Nas semanas seguintes, outras listas com cassações foram
anunciadas pelo regime.
Além das cassações, o endurecimento promovido pelo AI-5
resultou em aposentadorias compulsórias, direitos políticos suspensos e
demissões, além de mortes de militantes da esquerda armada.
Liberado pelos policiais em 31 de dezembro, Lerer pegou um
ônibus na rodoviária de Brasília dias depois e retornou a São Paulo, onde
viviam seus pais. Proibido de atuar na política, voltou a trabalhar como
médico.
Não manteve, contudo, uma rotina normal. “Eu via uma farda
militar na rua e já ficava aflito”, recorda-se. Era obrigado a se apresentar à
Polícia Federal uma vez por semana.
Após a prisão de Hélio Navarro, deputado da oposição cassado
como ele, Lerer se deu conta que a sua detenção estava prestes a acontecer.
Embora seu passaporte tivesse sido confiscado pelos policiais, ele estava
determinado a deixar o país.
Com a ajuda de um amigo advogado gaúcho, passou por Canoas
(RS) e Porto Alegre até desembarcar em Santana do Livramento (RS), na fronteira
com o Uruguai. De lá, incomodado pelo frio intenso, mas não pelos guardas,
atravessou a divisa caminhando e chegou a Rivera, no país vizinho.
Nos anos seguintes, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e
na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos,
Moçambique e Angola.
Hoje vive com a mulher, Katia, em São Sebastião, no litoral
paulista. Está afastado de atividades partidárias, mas se mantém atento à
política.
“Houve um grande desestímulo à juventude [com o AI-5], o
sentimento de “podemos mudar o mundo” foi perdido. Entre 1968 e 1978 [período
em que vigorou o ato], o Brasil perdeu um pedaço da história”, afirma Lerer. “O
vício do autoritarismo se reforçou nessa época.”
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