Cinquenta anos depois, o AI-5 ainda divide
opiniões no País – se os juristas e a imprensa são unânimes no repúdio ao
arbítrio, muitos militares ainda consideram que o contexto da época justificava
a sua imposição. O decreto do Ato Institucional que contou com a
assinatura de 16 ministros e do presidente, o general Costa e Silva, marcaria profundamente a Nação.
Não apenas em razão das cassações de mandatos de parlamentares, pela censura de
500 filmes, 950 peças de teatro, 200 livros, 500 letras de música, mas pela
suspensão de garantias fundamentais, como o habeas corpus para crimes contra a
Segurança Nacional e a Ordem Econômica e Social. Uma década depois, quando foi
suspenso, a repressão do regime militar já havia feito mais de 400 mortos,
provocado o exílio de cerca de 7 mil brasileiros e submetidos outros 20 mil a
sevícias e maus-tratos nas cadeias e porões da ditadura.
Desde que as eleições foram suspensas, os jornais do
grupo Estado fizeram oposição ao regime. A consequência foi
perseguição, prisões de jornalistas e a censura de suas páginas. Neste
especial, o Estado mostra como enfrentou a ditadura e defendeu
a liberdade. Revela ainda que uma armadilha feita por integrantes de um órgão
de informação do regime esteve por trás da cassação do emedebista Marcos Tito
(MG), abrindo a crise que resultaria ainda na cassação do também deputado
Alencar Furtado, líder do MDB na Câmara, em 1977. Seria o último expurgo no
Parlamento feito com base no AI-5.
Leia aqui ainda a íntegra do editorial Instituições em Frangalhos, que levou à instituição da
censura prévia ao jornal e veja abaixo a galeria “50 anos de AI-5 em 50
fotos”, uma seleção do nosso acervo com cenas sobre a crise política
que culminou na decretação do Ato Institucional.
Reação ao AI-5 leva à democracia e à Constituição
Ato institucional suspendeu garantias legais e fechou
Congresso; oposição lutou contra autoritarismo
Especial
Marcelo Godoy e Pablo Pereira, O Estado de S.Paulo
Os brasileiros tomaram conhecimento do Ato
Institucional de número 5 pelo anúncio do ministro da Justiça, Luis
Antônio da Gama e Silva. Era noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968.
Fora Gama e Silva que redigira o documento, suspendendo garantias
constitucionais e fechando o Congresso por tempo indeterminado. Ele assim
permaneceria até outubro do ano seguinte, quando reabriria – expurgado pela
cassação de 98 deputados e 5 senadores – para referendar uma nova Constituição
com mudanças, como a adoção da pena de morte.
Um dia antes, a Câmara dos Deputados negara por 216 votos a
141 a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves,
do MDB, por seus discursos, considerados ofensivos às
Forças Armadas. Vindo da casa da namorada, na Água Branca, na zona oeste, o
professor de Direito Constitucional da USP José Afonso da Silva dirigia seu
Fusca com o rádio ligado quando um locutor começou a ler o texto. “Fiquei tão
horrorizado com aquilo, porque é o instrumento mais violento que o País já
teve, de certo modo, mais violento do que a Constituição do Getúlio Vargas.
Dava um poder tão grande para o presidente fazer o que queria. E eles fizeram o
que queriam, usaram e abusaram do Ato largamente, praticando os mais absurdos
atos de autoritarismo.” Horas antes, o prédio do Estado, no centro,
fora invadido por policiais que aprenderam sua edição em razão da recusa
de Julio de Mesquita Filho de se submeter à ordem de
trocar o editorial Instituições em Frangalhos. Começava a censura ao
jornal.
Vinte anos depois, José Afonso estaria entre os assessores
do senador Mário Covas, líder do PMDB, que ajudaram a sistematizar
e redigir a Constituição de 1988. Para ele, a atual Carta é um “espelho
invertido” do AI-5. A visão de que o arbítrio da ditadura militar engendrou a
luta que se concluiu na promulgação da nova Constituição é compartilhada por
outros juristas que lutaram pela redemocratização do País.
“Ela é o grande reverso do arbítrio. Garantiu direitos e
valorizou como nenhuma outra no mundo os operadores do direito”, diz o
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal(STF) Francisco Rezek.
Estudante de Direito, ele estava no meio do Atlântico, no navio Augusta,
voltando ao Brasil após a primeira fase do doutorado na Sorbonne, em Paris,
quando o comandante anunciou aos brasileiros a novidade. Eram quatro homens e
três mulheres. “Alguns pensaram em não desembarcar.” Rezek seguiu para Minas.
“O AI-5 desvelou por completo a face do regime, inaugurando uma ditadura
escancarada.”
O que tornava o AI-5 diferente dos Atos anteriores não era a
licença para cassar mandatos e direitos políticos ou para aposentar
compulsoriamente magistrados, professores, militares, mas a suspensão de
garantias, como a do habeas corpus, para acusados de delitos políticos e
econômicos, além de retirar da Justiça a possibilidade de apreciar quaisquer
atos do governo baseados no AI-5. Dezesseis ministros assinaram o documento,
além do presidente Costa e Silva. Era a reação de um governo acuado por
protestos estudantis, greves operárias e críticas da imprensa.
Ao aumento da oposição, o governo reagia com prisões, como a
dos 720 estudantes no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, no
interior paulista. Alunos do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos
Comunistas enfrentavam estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP,
na Rua Maria Antonia, no centro. A batalha começou em 2 de outubro e acabou no
dia seguinte, com o incêndio da prédio da Filosofia, atacado por coquetéis
molotov lançados do Mackenzie. Dias depois, homens da Ação Libertadora
Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)
executaram o capitão americano Charles Chandler, em São Paulo. Parte da
esquerda pegava em armas contra o regime.
No Rio, a agitação estudantil crescera após o assassinato do
estudante Edson Luis, quando a polícia invadiu um restaurante estudantil. No
dia seguinte, 50 mil marcharam contra o regime. Em 21 de junho, nova
manifestação terminaria com 4 mortos – um era policial. Cinco dias após, 100
mil sairiam às ruas em protesto. “Nossos alunos têm razão”, dizia uma das
faixas. No mesmo dia, em São Paulo, a VPR lançou um carro-bomba contra o
quartel do 2.º Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho.
Belisário dos Santos Junior era um jovem estudante de
direito quando ouviu com amigos a decretação do AI-5. Estava em um bar na Rua
Iguatemi, no Itaim Bibi, na zona oeste, tomando um sorvete. O Ato fez dele um
defensor de presos políticos. Ele mesmo acabaria detido pelo Destacamento de
Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, por causa de um documento que
denunciava torturas impostas aos criminosos comuns do Presídio Tiradentes. Os
interrogadores não lhe perguntaram nada sobre a petição assinada com outros
sete advogados e enviada à Justiça Militar. “Só queriam saber quem nos pagava
para fazer aquilo.”
A denúncia contra os advogados partira do juiz auditor
Nelson Machado Guimarães, que recebera a petição. O grupo compareceu diante do
Superior Tribunal Militar (STM), ainda no Rio, defendido pelo advogado Heleno
Fragoso. “Senhores, em São Paulo, terrorista é a Justiça Militar”, disse
Fragoso aos ministros do STM, que confirmaram a libertação de todos. Belisário
se juntaria à luta pela anistia e pela Constituinte. “A Constituição é o
momento de afirmação dos direitos e garantias. Antes, estavam no artigo 153.
Com a nova carta passaram a ocupar o artigo 5.º, o que mostra a prioridade que
receberam.”
Outro advogado que conheceu a prisão após o AI-5 foi Eros
Grau. Era 1970 quando ele foi preso pela segunda vez – a primeira fora pouco
após o golpe de 1964. Durou três dias. Grau era suspeito de ligações com o
Partido Comunista Brasileiro, crime previsto na Lei de Segurança Nacional
(LSN), que podia ser punido com até 2 anos de cadeia.
O empresário Dilson Funaro, então secretário de Planejamento
do governador Abreu Sodré (Arena) pediu ao chefe a libertação do amigo. “Ele
disse que ‘ou me soltavam ou se demitiria.’” Eros foi solto. “Perdi a chance de
viver na França…” O então advogado da classe teatral se tornaria ministro do
STF. “A Constituinte de 1988 rasgou tudo o que existia antes. Como no poema de
Álvaro Moreyra: ‘A vida está toda errada/Vamos passá-la a limpos?’ Ela passou a
limpo o passado. Virou aquela página. Ela significa o nascimento do novo.”
Vencidas as organizações que se opunham pelas armas, o
regime iniciou a abertura. O AI-5 acabaria revogado em 1978 pelo presidente
Ernesto Geisel. O último presidente do ciclo militar, João
Figueiredo, assumiu prometendo “prender e arrebentar” quem fosse contra
a redemocratização. Não fez uma coisa nem outra. Governaria até entregar o
poder aos civis. “A Constituição (de 1969) estava comprometida com o
autoritarismo. Um remendo não daria a ela a visão que se tinha de adotar para a
democratização do País. A eleição do Tancredo
Neves, com seu discurso de Maceió, da Nova República, era a proposta
para liquidar com os tais entulhos autoritários”, diz José Afonso. Com a morte
de Tancredo, caberia ao vice, José
Sarney convocar a Constituinte. Quatro anos depois, em 1988,
estaria pronta a nova Constituição.
Generais eleitos pelo PSL afirmam que AI-5 ‘foi necessário’
para o país
Roberto Sebastião Peternelli Junior e Eliéser Girão Monteiro
Filho foram eleitos para a Câmara dos Deputados pelo partido do presidente
eleito, Jair Bolsonaro
Os dois generais eleitos em outubro pelo PSL para a Câmara dos Deputados – Roberto
Sebastião Peternelli Junior e Eliéser Girão Monteiro Filho –
afirmaram que a adoção do Ato Institucional-5 (AI-5) foi
necessária diante da conjuntura da época. “A conjuntura, infelizmente, com os
movimentos revolucionários armados, fez com que Brasil precisasse do AI-5 para
manter a democracia e se contrapor ao comunismo. Vivemos hoje um momento
diferente, não há mais o risco de implantação de um regime comunista”, diz
Girão.
Peternelli também culpa as ações armadas contra o regime.
“Para aquele contexto, talvez, tenha sido uma medida necessária. O governo não
tinha opção.” Ele afirma que o Exército “ao longo da história sempre defendeu a
defesa da democracia”. “O compromisso com a democracia nos levou à Câmara pelo
voto.” Cinquenta anos atrás, o Congresso também tinha dois oficiais generais
quando foi fechado pelo AI-5: os marechais Amaury Kruel (MDB-GB)
e Mendes de Moraes (Arena-GB).
O general Girão, no entanto, disse concordar com a crítica
feita nos anos 1970 pelo general Peri Constant Bevilacqua, para quem o AI-5
“comprometeu os ideais de 31 de Março”. Ministro do Superior Tribunal Militar,
Bevilacqua foi cassado pela ditadura, em 1968. “A terapêutica revolucionária
agrava os males do doente – a democracia – quando não o mata”, afirmara.
“A prática da República é que vai aperfeiçoá-la. Para isso
acontecer, os Poderes devem agir de forma independente. Infelizmente, a Nova
República foi sepultada – com a causa mortis corrupção –, por partidos
políticos formados por derrotados pela revolução de 1964, quando da tentativa
de se implantar um regime comunista”, disse Girão.
Amordaçado pela ditadura, jornal luta pela liberdade
Editorial faz general apreender edição; regime impõe censura
prévia ao ‘Estado’
Por José Maria Mayrink, O Estado de S.Paulo
A edição do Ato Institucional-5 (AI-5)
marcou, em 13 de dezembro de 1968, o início da censura sistemática à imprensa,
que só acabaria dez anos depois. Houve pressão, ameaças e atentados
contra O Estado de São Paulo desde o golpe militar
de 31 de março de 1964, mas os censores não frequentavam a Redação nesse
período. A repressão chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo
processar o deputado Márcio Moreira Alves.A censura no Estado começou,
aliás, em 12 de dezembro, véspera do anúncio do AI-5. O chefe da Polícia
Federal em São Paulo, general Sílvio Correia de Andrade, telefonou para a
Redação para saber qual seria a manchete do dia seguinte. “Câmara nega;
prontidão”, informou o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira. O general deu-se por
satisfeito, mas o jornal foi apreendido ao chegar às bancas, na madrugada
seguinte. O general liberou o noticiário, mas não gostou do editorial Instituições em Frangalhos, no qual o diretor do
jornal, Julio
de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, criticava o presidente Costa e
Silva. “Era um texto duro e corajoso, que refletia a tradicional independência
do jornal em relação aos governantes”, diz o jornalista Miguel Jorge, na época
repórter do Jornal da Tarde, vespertino da empresa.Foi o último editorial do
Doutor Julinho. Ele deixou de escrever na seção Notas e Informações,
na página 3, em protesto contra a censura. Revoltado com a apreensão do jornal,
mandou seu filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de
Abreu Sodré e ao general Correia de Andrade que não faria autocensura. Se o
governo quisesse proibir alguma notícia, pusesse censores na Redação. Sua
resistência custou caro. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de
meu pai”, disse o jornalista Ruy Mesquita em março de 2004, referindo-se à
morte de Julio de Mesquita Filho. Ele caiu doente quando parou de escrever o
editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5.Os
censores se instalaram na Redação na noite de 13 de dezembro, ao lado dos
jornalistas atônitos que se agrupavam em frente da TV para assistir ao anúncio
do AI-5. O locutor oficial Alberto Curi leu o texto do ato, ao lado do ministro
da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da USP.Recusa. Os
jornais da família Mesquita não faziam autocensura. “Façam as reportagens e
escrevam, os censores que cortem”, era essa a orientação. Os censores
permaneceram no prédio da Rua Major Quedinho, sede do Estadono
centro da cidade, até o dia 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram e só
voltaram em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censura prévia era feita por
telefonemas da Polícia, bilhetes e listas de assuntos proibidos. Como não se
permitia deixar espaços em branco, recorria-se a textos aleatórios para mostrar
aos leitores o que estava ocorrendo. Cartas inventadas pelos redatores,
despachos judiciais, orientações de cultivo de flores interrompiam com destaque
o noticiário nas páginas nobres, para cobrir o vazio de editoriais e
reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.
Apesar do cerco policial, milhares de exemplares do Estado chegaram
às ruas no dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra.
“Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos uns 60 mil exemplares em caminhões-caçamba,
que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú
da frota de distribuição”, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então
responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, onde
funcionava o jornal, no centro.
Também o JT foi proibido de circular e apreendido. Seus
diretores se recusaram a trocar textos considerados “mais exaltados”, depois de
terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título
“Mais uma demonstração de inviabilidade do regime”. Repórteres e editores
fizeram um esquema semelhante ao do Estado para garantir a
distribuição. Enquanto a Polícia vigiava a Rua Major Quedinho, 84.900
exemplares escaparam pela Rua Martins Fontes, do outro lado do prédio.
O general Sílvio Correia de Andrade ficou furioso. Percorreu
as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o JT pessoalmente. “Esse
jornal traiu a Revolução”, gritava sem parar, conforme lembra Fernando Mitre,
atual diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes.
Reação. O escritor e jornalista Ivan Ângelo,
então secretário de Redação do JT, lembra a reação dos jornalistas. “Quando o
censor entrou na sala, logo nos primeiros dias, todos nós nos retiramos, em
sinal de protesto. O censor perguntou se o pessoal estava saindo por causa dele
e eu disse que certamente sim, pois isso nunca havia ocorrido antes.”
Os jornalistas faziam o que podiam para infernizar a vida
dos censores. “Contrabandeando informações que seriam censuradas no meio de
outras matérias, em linguagem pouco usual – e não apenas isso, mas também
esvaziando os quatro pneus do carro de um deles apenas para vê-los, da janela,
suando a camisa num trabalho mais digno que aquele a que se haviam habituado ”,
disse Carlos Brickmann, repórter político.
Proibido de publicar a notícia da demissão do ministro da
Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda,
Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu em 1973
uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado.
“Agora é samba”, dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia
seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma
ilustração com uma rosa branca. Legenda: “A rosa, louvada por poetas desde
tempos imemoriais, continua simbolizando o amor”.
Os editores publicavam também poesias no lugar do material
cortado. O primeiro poema, Y – Juca Pirama, de Gonçalves Dias, saiu em destaque
na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Nem todos os leitores entenderam
o recado. Muitos telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo
apoio à literatura e ao cultivo de flores. Diante dessa reação, Julio de
Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada,
de modo que o leitor identificasse a censura.
O redator Antônio Carvalho Mendes, responsável por uma
coluna sobre cinofilia e pela seção de falecimentos, sugeriu a publicação
repetida de versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. O poeta português
apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da
USP, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973
a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura. No JT, Ruy Mesquita optou pela
publicação de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas.
Repórteres e correspondentes do Estado foram
perseguidos por causa do seu trabalho. O chefe da sucursal de Recife, Carlos
Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do
presidente Ernesto Geisel. “O Estadão se posicionou firmemente contra a
ditadura e alguns de seus jornalistas foram torturados, como foi o meu caso,
por defenderem a liberdade de imprensa”, disse Garcia. Em outubro de 1975, Luiz
Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, foi preso e torturado no Destacamento
de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, na mesma semana e local em
que o jornalista Vladimir
Herzog foi morto sob torturas.
Julio de Mesquita Neto resistia à censura e protestava
contra a ditadura. “Meu pai aproveitava suas viagens para denunciar no exterior
a falta de liberdade de imprensa no Brasil”, disse Júlio César Mesquita,
lembrando discursos e pronunciamentos feitos na Europa e nos Estados Unidos.
Pela sua coragem, Julio Neto ganhou o Prêmio Palma de Ouro da Liberdade,
concedido pela Federação Internacional dos Editores de Jornais. No JT, o
diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi
memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que mandou a Alfredo
Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a PF baixou novas normas de censura à
imprensa. Dizia o texto:
“Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas
emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti
vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta
de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a
compostura…Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr.
Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na
Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período
em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o
marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar
que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas…”
Os militares ficaram furiosos, recorda Mitre, por terem sido
chamados de nazistas e fascistas.
“Meu pai lutou contra a censura e contra todas as
barbaridades do regime militar”, disse Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito. Ainda
adolescente na época, ele se lembra hoje de Ruy Mesquita falando aos berros,
pelo telefone, com um general. “Meu pai defendia os jornalistas que eram presos
e perseguidos. Os diretores do Estado e do Jornal da Tarde
sabiam e denunciavam o que estava acontecendo. O prédio do Estadofoi
alvo de três bombas em atentados terroristas, de esquerda e de direita, em
represália à sua posição em defesa da democracia”, acrescentou Ruyzito.
Missão. Correspondente em Buenos Aires, onde era
exilado político e assinava seus textos com o pseudônimo de Julio Delgado,
Flávio Tavares lembra como iludiu a censura, quando os Mesquitas não se
dobraram à “inquisição” militar. “Usávamos todos os estratagemas para driblar a
censura.” Em 1977, Flávio foi preso e torturado no Uruguai, acusado de
espionagem, após ter entrevistado Leonel Brizola no exílio. Foi libertado por
pressão do Estado, que enviou Júlio César Mesquita e advogados do
escritório de Gerson Mendonça Neto a Montevidéu para resgatá-lo.
A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da
comemoração do centenário do Estado. Era o cumprimento de um
compromisso assumido pelo general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência em
março de 1974. As dificuldades, porém, continuaram, até o fim do AI-5, em 1978.
O complô para cassar o deputado
Oficiais revelam como armaram a crise que fez Marcos Tito e
Alencar Furtado perderem os mandatos
Por Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
A crise que levou à cassação dos dois últimos mandatos de
deputados federais com base no AI-5 em 1977 foi o resultado de
uma conspiração montada por integrantes da comunidade de informações da
ditadura militar. O objetivo inicial era decapitar um parlamentar do MDB – Marcos Tito. Ele denunciara a
ação da extrema-direita, que se alinhara em torno da ideia de impor o general
Silvio Frota, então ministro do Exército, como candidato do governo à sucessão
do presidente Ernesto Geisel (1974-1979).
As eleições eram indiretas e o presidente, eleito pelo
Colégio Eleitoral em 1978. Quarenta e um anos depois, um ex-integrante do
Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) revelou a trama ao Estado. A
entrevista, feita no Clube da Aeronáutica, no Rio, durou cinco horas e foi
gravada. O coronel pediu anonimato. A história foi confirmada por outro
oficial, que trabalhou 28 anos no Cisa.
“Realizamos algumas operações fundamentalmente de
contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram operações
que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não
contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”, diz o coronel.
Entre essas operações, estava a que levou à cassação de Tito. “Ele estava
assumindo uma posição que estava nos incomodando muito.”
Integrante da contrainteligência do Cisa, ele estava no
setor desde sua criação como Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da
Aeronáutica, chefiado pelo então coronel João Paulo Moreira Burnier. Era julho
de 1968. Permaneceu ali até 1979 como o agente Paulo Mário.
Na época, o emedebista havia discursado na Câmara afirmando:
“Há evidentes sinais de que a extrema-direita articula-se para promover as
condições necessárias a um novo surto de violência política”. Tito era
vinculado ao grupo mais incisivo do MDB, conhecido como “autêntico”. Desde
1964, 171 mandatos de parlamentares haviam sido cassados pelos governos
militares, dos quais 104 foram com base no Ato Institucional-5. Para retirar do
caminho o parlamentar de Minas – eleito em 1974 com 61.386 votos –, a
Aeronáutica montou uma armadilha. Os oficiais da inteligência da Força
apanharam a edição especial do jornal Voz Operária, de abril de 1977.
Órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na ilegalidade, ele
era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.
A edição trazia uma decisão do partido e um editorial sobre
o Pacote de Abril, por meio do qual Geisel fechou o Congresso e aprovou
reformas, como a ampliação do Senado com a nomeação de senadores – os biônicos
–, garantindo maioria no Colégio Eleitoral. Também continha o Manifesto à
Nação.
O texto afirmava: “No momento em que o Brasil atravessa uma
crise cujas consequências e alcance são reconhecidos por todas as correntes
políticas nacionais, os comunistas dirigem-se à nação com o objetivo de, ao
lado de todos aqueles interessados na conquista da democracia, propor uma
alternativa para a situação político-institucional em que o regime resultante
do golpe de 1964 colocou o País”. Reescrito pelos militares, o texto perderia a
palavra “comunistas” e teria “golpe” substituída por “movimento”. Dos 24
parágrafos, cinco foram suprimidos. As alterações, porém, ainda deixavam clara
a origem do texto sem, no entanto, alertar o alvo da armadilha: Tito.
O próximo passo foi entregar o texto ao gabinete do
parlamentar, que mantinha relações com estudantes e sindicalistas. “Levamos
como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário
da Câmara. E ele caiu e leu.” O papel foi recebido por um assessor, que o
repassou ao deputado. Em 24 de maio, o parlamentar subiu à tribuna e leu o
discurso sem saber que era quase cópia da Voz Operária. Acusava o regime
de ter como métodos o “medo e o arbítrio”. Sua fala atraiu a resposta do
deputado Cantídio Sampaio (Arena-SP), que o chamou de “atrevido”.
Tudo parecia se encerrar ali. Dois dias após o discurso, os
militares fizeram chegar ao deputado Silval Boaventura (Arena-MG) a informação
de que Tito lera da tribuna o manifesto do PCB. Sinval denunciou o colega.
Estava aberta a crise. “E acabou levando uma ferroada, acabou cassado e posto
na rua”, conta o coronel. De fato, 21 dias depois, Geisel anunciou a cassação
de Tito. “Na época, não havia desconfiança de que o texto tivesse sido
plantado. Pareceu o plágio de um assessor. As forças mais radicais do regime
criaram uma crise artificial”, diz o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), então no
MDB.
Necessário. A ação da comunidade de informações
atendia ainda a outro motivo: provar que a infiltração comunista aumentava com
a abertura e, assim, reforçar a “necessidade” de Frota ser o candidato do
regime à sucessão de Geisel. “Queriam mostrar que tudo aquilo (o aparato do
regime) era necessário”, disse o Doutor Pirilo, do Cisa. Entrevistado em julho
de 2017, Pirilo morreu neste ano.
Treze dias depois, em 27 de junho de 1977, o MDB teria seu
programa de TV. O presidente do partido, Ulysses Guimarães, foi duro com o
governo e o líder da legenda na Câmara, Alencar Furtado (PR), protestou contra
a cassação de Tito e outras e denunciou a chaga dos desaparecidos. “Para que
não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe?
Viúvas do quem sabe ou do talvez”, disse.
O desafio ao regime foi punido por Geisel. Em 30 de junho,
Geisel anunciaria a decisão de processar Ulysses. “Ulysses não foi cassado
porque sua figura tinha mais respaldo, por seu histórico. Vinha do PSD,
presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro,
incisivo e acusador. Geisel usou as cassações porque precisava enfrentar os
radicais entre os militares e mostrar que não era mole”, diz Alberto
Goldman, então líder do MDB na Assembleia Legislativa. Furtado se
tornaria o 173.º – e último – parlamentar cassado no País com base no AI-5.
PERGUNTAS PARA: Marcos Tito
1. Oficiais do Cisa disseram que fizeram uma armadilha
para que o sr. fosse cassado, plantando em seu gabinete o discurso com trechos
da Voz Operária…
Eu fazia uma oposição muito dura à ditadura. Denunciava
torturas e mortes. Eu recebia muitas solicitações de pronunciamentos, discursos
e manifestações. Fiz vários. E fazia parte do grupo autêntico do MDB, com o
Lysâneas Maciel, o Nadyr Rossetti, o Amaury Müller. Fui acusado pelo Geisel de
ter sido apoiado pelo partido comunista. Os comunistas não iam apoiar a Arena,
não é mesmo? Eles apoiavam quem? Apoiavam quem lutava contra a ditadura. Eles
(os militares) usaram esse pretexto para me cassar. Não me arrependo nada do
que fiz. Podem vasculhar minha vida; não tem nenhum ato de desonra.
2. O senhor tinha ideia de que foi vítima de uma armação?
Não tinha conhecimento, não. Eu supus que isso pudesse ser,
sim, porque era uma forma de me caracterizar como representante do partido
comunista.
3. De que forma a cassação afetou a sua vida?
Eu era jovem. Tinha 37 anos, um mandato e um cargo no
Estado. Fui aposentado com 10% do salário – eu era fiscal de rendas – e tive de
ir morar na casa da minha mãe, pois estava sem condição de sobreviver. Voltei à
advocacia, mas as pessoas tinham medo de procurar meu escritório, porque
naquela época o medo intimidava as pessoas. Morei dois anos com minha mãe para
reorganizar minha vida.
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