A deterioração da situação política na Venezuela, com todos
os seus corolários – recrudescimento da repressão pelo ditador Nicolás Maduro,
emigração em massa e conflitos entre Forças Armadas e civis venezuelanos, a um
passo da nossa fronteira –, arrasta o Brasil (e a Colômbia) para focos de
tensão crescente. Como já escrevi neste espaço, o conflito interno na Venezuela
é uma circunstância que o Brasil não escolheu, mas que, cada vez mais, nos
impõe dilemas especialmente difíceis, que devem ser tratados com muita cautela
e pragmatismo.
Os desdobramentos mais recentes – como a tentativa de
atravessar a fronteira no Brasil e na Colômbia com caminhões de ajuda
humanitária – deslocam perigosamente nosso papel no conflito da esfera
tipicamente diplomática para a antessala de uma ação propriamente militar. Na
semana passada o governo de Maduro posicionou tanques próximo à nossa
fronteira, dando sequência a um imbróglio preocupante.
Quando se sai do campo da diplomacia e se entra, ainda que
tenuemente, na esfera bélica, as opções de recuo diminuem e a tendência a uma
escalada temerária não pode nunca ser descartada. Em face da reação das Forças
Armadas venezuelanas, ainda leais a Maduro, a entrada da ajuda humanitária
fracassou. Esperava-se que a possibilidade dessa ajuda e o previsível rechaço
de Maduro abrissem uma fenda na lealdade militar ao chefe venezuelano. Mas
houve relativamente poucas deserções, a grande maioria de patentes baixas e
médias. Os desertores cruzaram a fronteira com a Colômbia e alguns foram
resgatados pela Polícia Federal brasileira. A manobra não deu certo – pareceu
longe de ameaçar a estabilidade dos vínculos entre o governo e o Exército.
O que se poderia fazer a partir daí? Aumentar a pressão
político-diplomática e, usando aparato bélico, impor a passagem de comboios com
alimentos e remédios? Ou desistir da operação até que um virtual abalo do apoio
dos militares a Maduro levasse à derrocada do seu regime? Ao que tudo indica,
ficaremos na segunda opção. O que não deixará de ser um prudente recuo,
bem-vindo, diga-se. Mas não melhor do que se estivéssemos cuidadosamente
explorando outras opções de ação.
A lição que fica do episódio é que blefes não costumam
produzir bons resultados nas relações internacionais, ainda mais se o
adversário encurralado tem tudo a perder se não resistir. Por mais que Maduro e
o chavismo tenham levado seu país à ruína, a sociedade venezuelana está ainda
dividida. Essa divisão tem raízes históricas, especialmente pelo desprezo das
elites, no passado, pela situação da grande maioria marginalizada. O apelo
ideológico do “socialismo” chavista ainda sensibiliza boa parte dos
venezuelanos. Embora essa parcela seja cada vez mais minoritária, ela permanece
forte o suficiente para alimentar a instabilidade política mesmo depois de uma
eventual queda de Maduro.
Outro fator complicador – e uma das grandes dificuldades
para o desfecho pacífico de tiranias como a venezuelana – é o crescente
envolvimento de autoridades, civis e militares, nas ações do regime ameaçado.
Para elas, resistir à mudança é evitar a punição futura. Essa circunstância
mostra quão essencial passa a ser a criação de salvaguardas e anistias para os
possíveis derrotados, a fim de que o custo da transição não seja uma guerra
civil aberta.
Nesse aspecto, o “presidente” interino Juan Guaidó – assim
reconhecido por boa parte da comunidade internacional, incluindo o governo
brasileiro – tem tido comportamento exemplar, exercendo uma inteligente
política de atração de possíveis dissidentes do regime com ofertas de
reconciliação.
Em vista dos enormes riscos que envolvem o Brasil, parece
óbvio que qualquer atitude que possa desencadear uma escalada bélica deve ser
rejeitada. Isso não significa, evidentemente, adotar uma postura passiva ou
condescendente com Maduro e seu grupo. Há a possibilidade, por exemplo, de
aumentar pressões externas mediante a suspensão de linhas de comércio com a
Venezuela. Esse fechamento teria efeitos econômico-sociais adversos no país
vizinho, mas seria uma opção menos dolorosa do que a de expor as pessoas a um
conflito bélico em que o Brasil se envolvesse e cujos desdobramentos negativos
seriam imponderáveis.
Tenhamos claro que a própria deterioração econômico-social
da Venezuela levará, mais dia, menos dia, à ruptura dos militares com o regime
de Maduro A hiperinflação abateu-se definitivamente sobre o país e a produção
de petróleo, a única atividade econômica capaz de gerar divisas externas, está
entrando em colapso. A inflação em fins de 2018 atingiu incríveis 80.000% ao
ano, segundo estimativa do professor Steve Hanke, da Johns Hopkins University.
Nos últimos cinco anos, a produção de petróleo na Venezuela caiu pela metade –
de 3 milhões de barris diários para apenas 1,5 milhão! E cairá ainda mais, à
medida que as sanções econômicas já impostas tornem mais precária a manutenção
da infraestrutura produtiva. O PIB venezuelano vem declinando a taxas inéditas
– uma verdadeira hecatombe econômica. Desde 2013 caiu 70%, medido em dólares.
Somente em 2018 a queda foi de 18%!
Não há saída feliz possível para Maduro. E não deixa de ser
exasperante assistir ao sofrimento dos venezuelanos prolongar-se no tempo.
Infelizmente, nem tudo é possível em política, menos ainda em política
internacional, em que o terreno é sempre mais movediço e imprevisível.
A declaração do Grupo de Lima – que reuniu nesta semana
representantes de 13 Estados latino-americanos e o Canadá – foi correta. O tom
do documento manteve a pressão diplomática, mas claramente afastou as
veleidades bélicas que alguns setores parecem cultivar. O Brasil não tem
história nem poderio para se tornar parte de uma polícia global. Devemos tomar
posição, sim, mas sempre nos limites da diplomacia. Nosso histórico de
autocontenção é um grande ativo, uma sábia tradição que não devemos abandonar.
José Serra é Senador (PSDB-SP), foi ministro das Relações Exteriores
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