Na segunda-feira a repórter Renata Cafardo, do Estadão,
revelou que o MEC enviara às escolas do Brasil um par de instruções
estapafúrdias e patriofrênicas. Por e-mail o órgão máximo da educação nacional
pedira que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e as
cenas, gravadas em vídeo, fossem enviadas a Brasília para deleite dos ocupantes
da Esplanada.
Não foi só. O MEC também solicitou aos dirigentes das
escolas que lessem para os alunos uma mensagem ufano-pedagógica de autoria do
titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez: “Brasileiros! Vamos saudar o Brasil
dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser
desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos,
que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.
Como ainda resta um pingo de consciência – e de senso de
ridículo – na sociedade, a reação foi instantânea. Educadores e advogados
protestaram, alegando que crianças não podem ser filmadas assim, de qualquer
jeito, sem autorização dos pais. Outros repudiaram a transformação de um slogan
de campanha eleitoral em chamamento de governo para as escolas.
A grita foi tão determinada e irrefutável que o ministro
recuou de pronto. Tem sido assim, aliás, nesse governo de idas e vindas. O
estilo da administração de turno é o “fez que foi e acabou não fondo”. A toda
hora uma autoridade dispara uma bravata e depois recua. Esta semana mesmo o
presidente da República voltou atrás e desistiu de aumentar o sigilo em
documentos da administração federal – quer acalmar os parlamentares. Quanto ao
ministro da Educação, ele é um virtuose em matéria de “fez que foi e acabou não
fondo”. Há poucas semanas, numa entrevista escalafobética, pronunciou
impropérios sobre o cantor e compositor Cazuza e logo teve de se desculpar. Um
pouco antes, já tinha voltado atrás em mudanças desastradas nas regras de compra
dos livros didáticos. Agora, adotou o mesmo procedimento. Reconheceu o erro.
Disse que não quer filmar a meninada sem que os pais autorizem e admitiu que
esse negócio de usar símbolos partidários como insígnias de políticas públicas
não fica bem.
E assim caminha este país, sem caminhar para lugar algum.
Mas não é esse o maior dos nossos problemas. Sem dúvida, as reviravoltas
desastradas num governo chegado a pirotecnias patrioteiras tumultuam
desnecessariamente o quadro. São ruins. Atrapalham. Mas a situação é mais
complicada ainda. O nosso maior problema, como fica patente em mais essa gafe
do MEC, não está nas trapalhadas cometidas por autoridades civis em posição de
sentido. O maior problema é que a administração federal de turno tem, sim, um
modelo obscurantista com o qual sonha em amordaçar a sociedade brasileira e só
não o leva adiante porque a sociedade não se deixou vergar. Não fossem os
protestos – justos e legítimos –, a esta altura as crianças brasileiras, como
nos idos da ditadura militar, estariam aí ao sabor de delírios autoritários com
ponto de exclamação.
Se temos algum juízo, deveríamos olhar com muito mais
atenção para esse modelo obscurantista acalentado nas fileiras do bolsonarismo.
Como arma publicitária de campanha, o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima
de todos” já era um pesadelo. Para começar, a primeira parte, “Brasil acima de
tudo”, é um plágio infeliz de um mote abraçado pelo nazismo nos anos 1930,
“Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles). Esse mote, por sua vez, veio
de um verso de uma canção nacionalista do século 19. Logo, a fantasia que o
bolsonarismo resolveu papagaiar, além de não ser original, além de não ser
sequer brasileira, é velha de quase 200 anos.
Um passado mítico, já sabemos, funciona como motor para os discursos
tendentes ao fascismo. No nosso caso, porém, estamos tratando de passados
míticos que são de segunda mão e, na melhor das hipóteses, são paródias de mau
gosto.
Se o MEC tivesse um mínimo de compromisso com a educação e
com a modernidade (a fantasia de “Alemanha acima de tudo” é pré-moderna e
antimoderna), pediria aos alunos redações críticas sobre o mote nazista.
Pediria aos alunos que pensassem. Mas não, o MEC prefere ver as crianças
perfiladas para ouvir o slogan eleitoral transformado em estética estatal.
Outra vez, não por acaso, se manifesta aí mais um traço distintivo dos regimes
hierarquizados, centralizadores, disciplinadores, opressivos: a estetização do
Estado.
Agora nos ocupemos da segunda parte: “Deus acima de todos”.
Pelo que me lembro, nas missas católicas os fiéis repetem outro tipo de
enunciado: “Deus está no meio de nós”. Esse Deus autocrático, vertical,
impositivo, francamente, não dá para saber bem de onde os bolsonaristas foram
tirar. Não adianta dizer que é o Deus do Velho Testamento, porque aquele Deus
se basta, ele não está na disputa para ficar “acima de todos”.
Em termos filosóficos, ou racionais, é difícil pensar em
algo pior que “Brasil acima de tudo” ou “Deus acima de todos”. Só o que pode
ser pior que cada um dos dois imperativos são os dois imperativos postos
juntos. Aí, qualquer lógica desmorona. Vamos lá.
Se o Brasil está mesmo acima de tudo, teria de estar também
acima de Deus. E se Deus está acima de todos, ora, teria de estar acima do
Brasil. Imaginemos a cabeça de uma criança, empertigada na frente da Bandeira,
tentando compreender os dois mandamentos fundidos num só. Essa criança,
pobrezinha, vai concluir que Deus está fora de tudo (ou o Brasil estaria acima
de Deus) e que o Brasil está fora de todos (ou Deus estaria acima do Brasil).
Portanto, “tudo” não é “tudo”, assim como “todos” não significa exatamente
“todos”. Alguém chame o Tim Maia, o filósofo que dizia: “Tudo é tudo e nada é
nada”. Mais do que uma escola sem partido, o que o MEC quer para o Brasil é uma
escola sem sentido. A sanha autoritária precisa de uma escola que não pense.
*JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário