Marcelo Crivella (PRB), o prefeito do Rio de Janeiro, não
sabe o que é o Carnaval, não distingue escola de samba de bloco de sujos e não
aprendeu a separar a cadeira de governante do púlpito do pastor. Ou sabe tudo
isso e decidiu manipular fantasias para proteger-se da realidade que dá à
euforia dos foliões um significado de desafogo na existência árida de quem,
mesmo vivendo sem dinheiro, é obrigado a pagar o salário de um prefeito dado à
embromação.
Entrevistado pela Folha, Crivella foi submetido a uma
pergunta clara como água de bica: Por que o senhor não participa da entrega da
chave ao Rei Momo? Refugiou-se atrás de uma pilha de interrogações: "…A
vida inteira os prefeitos entregaram a chave da cidade. Melhorou o nosso nível
no Ideb [índice de qualidade da educação]? A desfavelização? Por que eu tenho
que dar a chave?" E o repórter, de bate-pronto: A tradição?
Crivella sambou na maionese: "A cidade do Rio de
Janeiro é o epicentro do Brasil de corrupção e violência. Só vamos vencer essa
crise com mudanças de costumes. Não cabe mais aos líderes políticos uma
dimensão folclórica, carnavalesca do cargo público. Temos que voltar, os homens
públicos, a gostar das coisas simples, a dar valor à solidariedade, à
humildade, à confiança e à austeridade."
Ora, quem transformou o Rio num antro de corrupção foram os
piratas que sambaram dentro dos cofres públicos, não os passistas da Marquês de
Sapucaí. O que levou à crise moral foram os maus costumes do bloco de sujos da
política, não os bons hábitos de quem segue a Banda de Ipanema.
Violência? Ai, ai, ai… Esse álibi já havia sido utilizado
por Crivella para fugir do Carnaval passado. Em 2018, o prefeito veiculou nas
redes um vídeo postado na Alemanha. Nele, declarou: "Estamos trabalhando
muito, pegando muita informação para saber o que é mais moderno em termos de
vigilância, em termos de VANT [veículo aéreo não tripulado], em termos de
drone, em termos de informação via satélite, enfim, o que a gente puder para
melhorar a questão da segurança no Rio de Janeiro." Não há vestígio de
tais modernidades no Rio. O discurso era alegórico.
De resto, não
dignifica os votos que recebeu um político que comanda a cidade do Carnaval sem
notar que a "dimensão carnavalesca do cargo" que ocupa se confunde
com a economia do município. Carnaval potencializa o turismo, um outro nome
para consumo, empregos e impostos. Compreende-se que o prefeito, bispo
licenciado da igreja Universal, seja doente do pé. Mas não é aceitável que seja
ruim da cabeça.
Para explicar seu desapreço pelo Carnaval, Crivella afirmou
que "as pessoas precisam entender" que ele é "um homem
evangélico cuja origem é essa." Heimm?!?!? "Tenho minhas convicções
da minha consciência e coração." Cabe perguntar: Alguém obrigou o pastor
evangélico a disputar a prefeitura do Rio, espécie de Éden mundial da folia
pagã?
Foi por livre e espontânea vontade que Crivella, ao disputar
as eleições, assegurou que sua condição de bispo não o impediria de prestigiar o
Carnaval (reveja abaixo um comentário feito pelo repórter no calor da abertura
das urnas municipais de 2016). Desde então, o prefeito foge dos compromissos
carnavalescos, inclusive os orçamentários. Contribui com sua omissão para
consolidar o Carnaval como a única festa que consola o brasileiro dos seus
infortúnios —da falta de emprego às mentiras dos políticos.
Vai disputar novamente a prefeitura?, indagou o repórter da
Folha. E Crivella: "Sem a menor dúvida, estarei firme e forte para
disputar a eleição. Tenho certeza que até lá vamos ter realizado muito
mais." Como se vê, não é que Crivella deteste o Carnaval. A questão é que,
no seu caso, a folia não termina na Quarta-feira de Cinzas. E tem outro nome:
reeleição.
Ao declarar-se
candidato à reeleição na mesma entrevista em que ofende a inteligência dos
amantes do Carnaval, Crivella parece rir por dentro, enquanto entoa Zé Ketti
mentalmente: "Quanto riso, oh! / Quanta alegria / Mais de mil palhaços no
salão." Por sorte, havia noutros carnavais marchinhas para todo gosto.
Um dos bailes frequentados por cariocas elegantes
contemporâneos de Zé Ketti era o High Life, na Glória. Ali, por vezes, os
foliões tinham a sensação de ter entrado, por engano, num templo religioso. A
certa altura, a multidão entoava, com devoção: "Maior é Deus no céu e nada
mais! / A falsidade no mundo é muito grande, / Por isso ele na Terra não volta
mais." De repente, a batucada estancava. E os foliões, em uníssono:
"Só Deus é maior!"
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