Conversa de segunda-feira de carnaval. Antes de vir para o
Brasil, passei na velha livraria Bertrand, em Lisboa. Queria comprar um livro,
apenas um para a estrada, a longa viagem de volta. Optei pelo de Milan Kundera
“Os testamentos traídos”. Dei sorte. É um livro excelente. Num dos ensaios,
intitulado “Em busca do presente perdido”, ele fala de Hemingway. Ressalta o
esforço do escritor americano em ouvir e anotar diálogos, sua tentativa de
capturar na forma e no som a realidade das conversas.
Kundera menciona a novela de Hemingway “Colinas como
elefantes brancos”. É um diálogo entre um homem e uma mulher. Cheio de
ambiguidades, aberto para a imaginação do leitor. Mas a interpretação de alguns
críticos transformou a história numa lição de moral, heroína e vilão, bem
contra o mal. As abstrações acabaram engolindo a realidade do momento vivido.
É um tipo de visão do mundo, segundo Kundera, que nos faz
morrer sem saber o que vivemos. A realidade se esvai nas abstrações.
Podemos escrever um diário, lembra Kundera, anotar todos os
acontecimentos e descobrir que não registramos nenhuma imagem concreta. O
presente é um planeta desconhecido. Não conseguimos mais acessá-lo nem pela
memória e nem pela imaginação.
Cheguei ao Brasil em meio à polêmica sobre o Hino Nacional
nas escolas. O ministro da Educação queria que as crianças o cantassem e
recitassem o slogan de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Tudo isso já foi desfeito pelo recuo do governo na proposta. O ministro tinha a
intenção de levar Moral e Cívica às escolas. Seus opositores respondem também
com uma visão cívica, pois alegaram contra a proposta dispositivos
constitucionais e algumas leis ordinárias.
E as crianças nisso tudo foram apenas objeto de um confronto
entre diferentes visões cívicas.
O que representa um hino nacional para elas? Às vezes acho
que, na infância, primeiro brincamos com o som das palavras para mais tarde
entendê-las. Meu neto aprende a cantar em alemão. Brinca com a sonoridade, mas
não tem a mínima ideia do sentido das palavras. Eu mesmo, quando menino,
cantava os hinos mais importantes tentando trazê-los para a realidade tangível.
“Já podeis da pátria, filhos”, por exemplo, substituía por “Japonês tem quatro
filhos”.
Com o tempo, as experiências coletivas, a vivência da
história, passei a ouvir os hinos de forma diferente e, em certos momentos,
cantá-los emocionado. Mas o que a criança pode fazer com um lábaro que ostentas
estrelado? Que tipo de terra é mais garrida? Pode se guardar na mochila o
penhor dessa igualdade?
Mesmo essa história do slogan de Bolsonaro, “Deus acima de
todos”, pode não confundir as crianças, mas a mim confunde. Deus não está em
toda parte? No meio e abaixo ele deveria estar também, creio; não apenas acima
de tudo. Pode estar nas pequenas coisas, nos antros mais sórdidos do planeta.
Compreendo que é tudo um modo de dizer. Mas são essas
grandes ideias abstratas que povoam a cabeça da direita e da esquerda. Ambas
correm o risco de criar uma espécie de cortina que nos afasta da própria realidade.
Existe uma força permanente que visa não apenas ao jogo
vital das crianças, seu divertimento, mas também a mascarar a própria face do
real. Como diz Kundera: “para que nunca saibas o que vivestes”. Crianças
uniformizadas cantando hinos e acenando bandeirinhas estão presentes em muitas
situações. Na Coreia do Norte, por exemplo, parecem disciplinadas e endurecidas
pelo patriotismo; no entanto, há uma certa tristeza nesses espetáculos.
Alguma coisa no olhar, na rígida encenação, revela que a
alegria e a espontaneidade foram embora, que as crianças amadurecem um pouco à
força, como frutas de supermercado.
Compreendo que exista o medo de que as crianças não sintam
amor pelo seu país, nem se entusiasmem por defendê-lo. Uma de minhas filhas é
atleta. Toda vez que que consegue uma vitória internacional, costuma acenar com
a bandeira do Brasil.
O orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de
Moral e Cívica nem dos prolixos hinos pátrios. É algo que se desenvolve na
experiência coletiva, nas dores e alegrias do cotidiano.
Lançar o véu dos lugares-comuns sobre a riqueza do instante
presente, como observa Milan Kundera, é a forma de sufocar o real com
abstrações para que a criança nunca saiba o que viveu.
Artigo publicado no jornal O Globo em 04/03/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário