Da ÉPOCA
Todos os governantes mentem há séculos, e quanto mais poderosos os seus países maiores são as consequências das mentiras. Nas democracias, um período historicamente recente, em geral a verdade acaba sendo descoberta, ainda que depois do estrago causado por fatos fabricados. Lyndon Jonhson manipulou o incidente do Golfo de Tonkin para iniciar uma confrontação direta com o então Vietnã do Norte comunista. Richard Nixon manteve em segredo o bombardeio do Camboja, que estimulou a ascensão do Khmer Vermelho genocida. George W. Bush e seus aliados inventaram que Saddam Hussein detinha armas de destruição em massa para iniciar a Guerra do Iraque.
Que em democracias, no entanto, governantes façam da mentira descarada um expediente rotineiro de manipulação política é um fenômeno que cresce na atualidade. O poder da extrema-direita na Polônia consolidou-se a partir da teoria conspiratória de que o acidente de avião que matou o então presidente Lech Kaczynzki em 2010 foi um atentado. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, alimenta-se do fantasma de que o megainvestidor de origem húngara e judaica George Soros lidera um complô para arrancar o país de suas raízes cristãs. Donald Trump mente tão profusamente que há sites e seções de jornais especializados em contabilizar suas mentiras e contradições factuais. O clã Bolsonaro comete exageros típicos de imitadores desses profissionais.
Nas democracias atuais, o governo pela mentira é irmão das fake news, aqui entendidas como as notícias falsas da era da internet. Elas podem ser distinguidas dos boatos com fins políticos dos tempos analógicos pela forma de propagação e por coincidir com a crise de financiamento da imprensa profissional, esta mesma um fenômeno relativamente recente. No entanto, tal como ocorria antes da última revolução das comunicações, as fake news “continuam precisando de gente que queira acreditar nelas”, como lembra um artigo publicado em 2018 pelo jornal espanhol El País a propósito de um ensaio sobre notícias falsas da Primeira Guerra Mundial lançado em 1921 pelo historiador francês Marc Bloch.
No caso de Trump, o caldo do qual vieram seus seguidores mais fiéis foi engrossado pela rede de TV Fox News, tal como descreve uma reportagem publicada neste mês na revista New Yorker pela repórter Jane Mayer, cronista da ascensão de uma direita ultraliberal, religiosa e racista nos Estados Unidos. Hoje a Fox se tornou uma espécie de emissora oficial da Casa Branca, com um intercâmbio permanente de ideias entre Trump e seus principais apresentadores. Quando a Fox foi lançada, nos anos 90, seu proprietário, Rupert Murdoch, disse aos então dirigentes da Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês) que criaria um veículo para fugir dos padrões centristas e de “equilíbrio” então dominantes na TV americana. Ele planejava formar um público cativo “entre os fãs de futebol”, na classe trabalhadora branca. Esse público depois se tornaria a base fiel de Trump. “A grande ideia [de Murdoch] foi ver que há uma atração para a política baseada no medo e na raiva que tem a ver com raça e classe”, disse à revista Blair Levin, que trabalhava na FCC na época.
No Brasil, não existe uma emissora equivalente à Fox News em sua relação atual com o presidente americano e em seu poder de mercado. Mas a viabilização eleitoral de Bolsonaro encontrou um alimento na criminalização da política e da coisa pública, e na histeria dos programas vespertinos de polícia. Os excessos cometidos pela Operação Lava Jato vieram engrossar essa mistura tóxica, com a manipulação de informações obtidas em segredo de Justiça, as acusações desmedidas — como no caso do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina —, e a arrogância de “vingadores” de terno e gravata, parte da mais bem remunerada burocracia do país. A propagação da falsa ideia de que todos os problemas estariam resolvidos com uma hipotética limpeza dos corruptos incrustados no Estado brasileiro também facilitou a ascensão de um falso outsider.
Bolsonaro e seus ditos ministros ideológicos hoje não têm outra opção senão a de viver na bolha na qual se criaram, alimentando-a. Como haviam feito na campanha, eles continuam copiando o livro-texto pronto, sem adaptar nem sequer os exemplos ao contexto brasileiro. Poucos dias antes de o governo recém-empossado anunciar, por exemplo, a saída do Brasil do Pacto da ONU sobre Migrações, os seguidores em um rede social do chanceler Ernesto Araújo cobravam-lhe ação contra o ingresso descontrolado no país de criminosos e terroristas. Isso num país que tem mais brasileiros morando como imigrantes no exterior do que estrangeiros que moram aqui. E agora, quando dois atiradores mataram estudantes numa escola de São Paulo, a bolha importou uma falácia da Associação Nacional do Rifle americana, segundo a qual são pessoas, e não o acesso descontrolado às armas, que matam.
quarta-feira, 20 de março de 2019
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