Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram
do Brasil o principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem
ser mais destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes
históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a
antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria
oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao
lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do
debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O
bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica,
destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o
conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.
A violência de agentes das forças de segurança do Estado nos
primeiros 100 dias do ano, como a execução de 11 suspeitos em Guararema (SP),
pela polícia militar, e os 80 tiros disparados contra o carro de uma família por
militares no Rio de
Janeiro, pode apontar a ampliação do que já era evidente no Brasil: a
licença para matar. Mais frágeis entre os frágeis, os ataques a moradores de
rua podem demonstrar uma sociedade adoecida pelo ódio: em apenas três meses e
10 dias, pelo menos oito mendigos foram queimados vivos no Brasil. Bolsonaro
não puxou o gatilho nem ateou fogo, mas é legítimo afirmar que um Governo que
estimula a guerra entre brasileiros, elogia policiais que matam suspeitos e
promove o armamento da população tem responsabilidade sobre a violência.
Este artigo é dividido em três partes: perversão, barbárie e
resistência.
1) A Perversão
Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil
organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos
espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me
refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos,
que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da
democracia.
Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta.
Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros,
no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que
Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual
será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez?
Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.
Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro
teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O
bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim,
a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém,
não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de
“antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.
Quem é o principal
opositor da reforma da Previdência do ultraliberal Paulo
Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT ou associações
de aposentados. O principal crítico da reforma do “superministro” é aquele que
nomeou o superministro exatamente para fazer a reforma da Previdência. O
principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.
Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a
reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da
Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia
diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior
boicotador da reforma do seu próprio Governo.
Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não
sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi
levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com
ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não
há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da
oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os
colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?
É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as
oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o
uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu
porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de
1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas”
pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um
general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro
infiltrar na cabeça dos brasileiros.
Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo
os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém,
Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é
notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e
se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do
caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de
equilíbrio num Governo de desequilibrados.
Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice
general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O
que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da
esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão,
lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou
civis?
Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo
avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime
autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro
quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados,
assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais
no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os
defendia.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e
sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer
torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes
do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão
adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o
general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria
de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando
cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus
colegas de farda”.
A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira
que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito
temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho
disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a
réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a
sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.
A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de
ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma
vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas.
E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente
covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a
humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse
o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.
Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação Ricardo
Vélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda
pior. Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse
nomeado – e não ele mesmo. Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”,
mas sem capacidade de “gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que
nomeou alguém sem capacidade de gestão e expertise para um ministério
estratégico para o país? E como classificar um gestor que faz isso? Mais uma
vez, Bolsonaro age como se estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse
governo e opositor do governo simultaneamente.
Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores
exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo
contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos
instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redes sociais, também
dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A participação democrática
nunca esteve tão nula.
A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da
“nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de
qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido
fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo
campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois,
seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.
O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente,
parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é
comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado
como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na
economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado
por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto
neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.
Diante do populismo de extrema direita de
Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é
apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro
e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo
fora dele. Onde então está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um
outro projeto de Brasil? Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde
elas estão sendo discutidas com ressonância, já que sem ressonância não
adianta?
A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da sociedade.
Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o fenômeno
Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a liturgia do
cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não quer.
Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei
em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo
a guerra ativa.
Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o
presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do
país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas
milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora,
governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a
única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.
A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada
à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar
a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta
e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos
ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em
rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma
decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua
vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É
assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos
dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.
2) A Barbárie
Mesmo a parcela mais organizada das minorias que tanto
Bolsonaro atacou na eleição parece estar em transe, sem saber como agir diante
dessa operação perversa do poder. Ao reagir, tem adotado o mesmo discurso
daqueles que as oprimem, o que amplia a vitória do bolsonarismo.
Um exemplo. O vídeo divulgado por Bolsonaro no
Carnaval, mostrando
uma cena de “golden shower”, foi definido como “pornográfico” por
muitos dos que se opõem a Bolsonaro. Mas este é o conceito de pornografia da
turma do antipresidente. Adotá-lo é comungar de uma visão preconceituosa e
moralista da sexualidade. É questionável que dois homens façam sexo no
espaço público e este é um ponto importante. Não deveriam e não poderiam. Mas
não é questionável o ato de duas pessoas adultas fazerem sexo consentido da
forma que bem entenderem, inclusive um urinando no outro. O ato pornográfico é
o de Bolsonaro, oficialmente presidente da República, divulgar o vídeo nas
redes sociais. É dele a obscenidade. A pornografia não está na cena, mas no ato
de divulgar a cena pelas redes sociais. Diferenciar uma coisa da outra é
fundamental.
Outro exemplo. Quando a oposição tenta desqualificar o
deputado federal Alexandre
Frota (PSL) porque ele é ator pornô está apenas se igualando ao
adversário. Qual é o problema de ser ator pornô? Só os moralistas do
pseudoevangelismo desqualificam pessoas por terem trabalhos ligados ao sexo.
Alexandre Frota deve ser criticado pelas suas péssimas ideias e projetos para o
país, não porque fazia sexo em filmes para ganhar a vida. Criticá-lo por isso é
jogar no campo do bolsonarismo e é também ser intelectualmente desonesto. Cada
vez mais parte da esquerda tem se deixado contaminar, como se fosse possível
deslegitimar o adversário usando o mesmo discurso de ódio.
Na mesma linha, o problema do ministro da Justiça, Sergio Moro, não
é o fato de ele falar “conge” em vez de “cônjuge”, como fez por duas vezes
durante audiência pública no Senado. Ridicularizar os erros das pessoas na
forma de falar é prática das piores elites, aquelas que se mantêm como elite
também porque detêm o monopólio da linguagem. Poderia se esperar que Moro
falasse a chamada “norma culta da língua portuguesa” de forma correta, já que
teve educação formal tradicional. Mas a disputa política deve se dar no campo
das ideias e projetos.
O problema de Moro é ter, como juiz, interferido no
resultado da eleição. E, em seguida, ser ministro daquele que suas ações como
funcionário público ajudaram a eleger. O problema de Moro é criar um pacote anticrime que, na prática, pode autorizar os
policiais a cometerem crimes. Pela proposta do ministro da Justiça, os
policiais podem invocar “legítima defesa” ao matar um suspeito, alegando
“escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Neste caso, a pena pode ser
reduzida pela metade ou mesmo anulada. O problema de Moro que interessa ao país
não é, definitivamente, usar “conge” em vez de “cônjuge”.
Compreender como o discurso de ódiovai se imiscuindo na mente de quem acredita
estar se contrapondo ao ódio é eticamente obrigatório. Se o governo de
Bolsonaro é também oposição e crítica ao próprio Governo, isso não significa
que ele não tenha um projeto e que este projeto não esteja se impondo
rapidamente ao país. Tem e está. Somos hoje um país muito pior do que fomos. E
somos hoje um povo muito pior do que fomos. Parte do objetivo dos violentos e
dos odiadores é normalizar a violência e o ódio pela repetição. O bolsonarismo
tem conseguido realizar esse projeto com uma velocidade espantosa.
Apenas em 2019 ( e escrevo na primeira quinzena de abril),
pelo menos oito – OITO – moradores de rua foram queimados vivos no Brasil. Este
é apenas um levantamento feito com base no noticiário, pode ser mais. Em 1 de
janeiro, um morador de rua de 27 anos foi incendiado quando dormia em Ponta
Grossa, no Paraná.
Alguém passou, jogou álcool e colocou fogo no seu corpo. Teve mais de 40% do
corpo queimado. Em 21 de janeiro, um morador de rua foi encontrado incendiado e
morto numa praça de Curitiba, capital paranaense. Quatro dias depois, em 25 de
janeiro, José Alves de Mello, 56 anos, também morador de rua, foi agredido e
queimado num imóvel abandonado da Grande Curitiba. Em 27 de fevereiro, uma moradora
de rua foi queimada quando dormia embaixo de um viaduto, no Recife, capital do
estado de Pernambuco. Ela sobreviveu. Em 17 de março, José Augusto
Cordeiro da Silva, 27 anos, acordou já em chamas embaixo de uma marquise na
cidade de Arapiraca, no estado de Alagoas. Morreu no hospital. Em 1 de abril,
um homem aparentando 30 e poucos anos morreu carbonizado próximo à escada
rolante de uma estação de trem em Santo André, no ABC Paulista. O caso foi
registrado como “morte suspeita”. Em 3 de abril, Roberto Pedro da Silva, 46
anos, foi incendiado quando dormia numa obra abandonada em Três Lagoas, em Mato
Grosso do Sul. Um homem teria jogado combustível e ateado fogo em seu corpo. Em
7 de abril, um morador de rua aparentando 30 anos foi agredido a pedradas e
incendiado no interior de um ginásio de esportes em Águas Lindas de Goiás, no
entorno do Distrito
Federal.
Se fôssemos gente decente de um país decente, pararíamos
exigindo o fim da barbárie.
Em 4 de abril, policiais militares mataram 11 dos 25
suspeitos de assaltar bancos no município de Guararema, na Grande São Paulo. O
governador do estado, João Doria (PSDB), afirmou que vai condecorá-los. Até
bem pouco tempo atrás, um governador não ousaria dar medalhas a policiais que
assassinaram suspeitos. Em nenhum país democrático do mundo matar suspeitos é
considerado um bom desempenho policial. Pelo contrário.
No Brasil, que oficialmente não tem pena de morte, o
governador do maior estado do país elogia e premia a execução de suspeitos por
agentes da lei. Em março, a polícia paulista matou 64 pessoas. Bem mais do que
em 2018, no mesmo mês, quando houve 43 homicídios por parte de policiais, o que já era
uma enormidade. Autorizada pelas autoridades, a polícia brasileira, conhecida
por ser uma das que mais mata no mundo, mostra que neste ano já começou a matar
mais.
Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos
diante da barbárie cometida por agentes da lei com autorização e estímulo de autoridades
que não foram eleitas para promover a quebra do Estado de Direito.
No último domingo, 7 de abril, militares dispararam 80 tiros – OITENTA – contra o
carro de Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, um músico negro que levava a sua
família a um chá de bebê em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro. Ele
morreu fuzilado. Seu filho de 7 anos viu o pai sangrar e soldados do Exército
de seu país rirem do desespero da mãe. Graças a uma lei sancionada por Michel Temer, em 2017, os
militares que atacaram uma família civil serão julgados não pela justiça comum,
mas pela militar, que comprovadamente é corporativa e conivente com os crimes.
Se fôssemos um país decente de gente decente pararíamos
diante da barbárie e exigiríamos justiça.
3) A Resistência
O Brasil se espanta muito menos do que há bem pouco tempo
atrás com o
cotidiano de exceção. É justamente assim que o totalitarismo se instala.
Pelas frestas do que se chama normalidade. Pelas mentes no senso comum e nas
horas do dia. Depois, é só oficializar. O Brasil já vive sob o horror da
exceção. A falsificação da realidade, a corrupção das palavras e a perversão
dos conceitos são parte da violência que se instalou no Brasil. São parte do
método. Essa violência subjetiva tem resultados bem objetivos – e multiplica,
como os números já começam a apontar, a violência contra os corpos. Não
quaisquer corpos, mas os corpos dos mais frágeis.
O desafio – urgente, porque já não há mais tempo – é
resgatar o que resta de democracia no Brasil. É pela pressão popular que as instituições
podem se fortalecer ao serem lembradas que não servem aos donos do poder nem
aos interesses de seus membros, mas à sociedade e à Constituição. É pela
pressão por outros diálogos e outras ideias e outras realidades que ainda
respiram no país que a imprensa pode abrir espaço para o pluralismo real. É
pela pressão por justiça e pelo levante contra a barbárie que podemos salvar
nossa própria alma adoecida pelos dias.
O resgate da democracia pelo que ainda resta dela, aqui e
ali, não será tarefa de outros. Como já escrevi antes, só há nós mesmos. Nós,
os que resistimos a entregar o Brasil para os perversos que hoje o governam – e
o governam também pelo controle dos espasmos diários que impõem aos
brasileiros.
Eu gostaria de dizer: “Acordem!”. Mas não é que os
brasileiros estejam dormindo. Parece mais uma paralisia, a paralisia do refém,
daquele que vive o horror de estar entregue ao controle do perverso. Não é mais
desespero, é pavor. Precisamos encontrar caminhos para romper o controle, sair
do jugo dos perversos, tirar a pauta dos dias de suas mãos.
Como?
Essa resposta ninguém vai construir sozinho. A minha é que
precisamos criar o “comum”. O que aqui chamo de comum é o que nos mantêm
amalgamados, o que permite que, ao conversarmos, partimos do consenso de que a
cadeira é cadeira e a laranja é laranja e que nenhum de nós dois sente na
laranja e coma a cadeira (leia aqui). Os perversos corromperam a palavra – e têm
repetido que a cadeira é laranja. Só por isso podem dizer que o Brasil está
ameaçado pelo “comunismo” ou que o nazismo é de “esquerda” ou que o aquecimento global é um “complô marxista”. Essas três
afirmações, apenas como exemplo, não têm lastro na realidade. É o mesmo que
dizer que laranja é cadeira. Apenas que menos gente tem clareza do que foi o
nazismo e do que é o comunismo e do que é o aquecimento global, tornando mais
fácil embrulhar as coisas.
Eles repetem e repetem, assim como tantas outras corrupções
da realidade, porque corromperam o voto que receberam ao usar a estrutura do
Estado para produzir mentiras. É assim que os perversos enlouquecem uma
população inteira – e a submetem: dizendo que laranja é cadeira dia após dia.
As palavras deixam de significar, a linguagem é rompida e corrompida e a
conversa se torna impossível. Como você vai falar com alguém sobre laranjas se
o outro acha que laranja é cadeira? É isso que hoje acontece no Brasil, e este
ataque é desferido diariamente pelas redes sociais dominadas pelo bolsonarismo.
Precisamos voltar a encarnar as palavras. Ou enlouqueceremos
todos. A criação do comum começa pela linguagem (Escrevi sobre isso aqui e aqui). Precisamos também criar comunidade. Não comunidade
de internautas que ficam gritando cada um atrás da sua tela. Mas comunidade
real, que exige presença, exige corpo, exige debate, exige negociação, exige
compartilhamento real. Não há nada que os regimes de exceção temam mais do que
pessoas que se juntam para fazer coisas juntas. É por isso que Bolsonaro tanto
critica o ativismo e os ativistas – e já deu vários passos na direção da
criminalização do ativismo e dos ativistas.
O ativista é aquele que deixa o conforto do seu umbigo e do
seu entorno protegido para exercer a solidariedade. Governos como o de
Bolsonaro agem para que cada um veja o outro como inimigo, e por isso temem o
ativismo. Os bolsonaristas se alimentam da guerra porque a guerra separa as
pessoas e faz com que elas não tenham tempo para criar futuro. A solidariedade
é um gesto temido pelos autoritários. Por que você não está em casa lustrando o
seu umbigo, é o que gostariam de perguntar? Ao corromper as palavras, é também
esse o objetivo. Condenar cada um à prisão do seu silêncio (ou do seu eco),
incapaz de alcançar o outro pela falta de uma linguagem comum.
Assim, tentam eliminar a solidariedade à bala. Ou exilá-la.
Mandá-la para fora do país que privatizaram para si. Bolsonaro disse isso com
todas as letras. É o que tem feito com os movimentos sociais e suas lideranças.
É também por isso que é necessário uma polícia com autorização para matar, como
quer Bolsonaro, e como obedece Sergio Moro.
A polícia, cada vez mais, se torna também ela uma milícia
privada dos donos do poder. Deixa de exercer seu dever constitucional de
proteger a população para exercer a guerra contra a população. Durante a intervenção federal no Rio, policiais civis e militares
mataram 1.543 pessoas. Em 2018, um em cada quatro homicídios no Rio de Janeiro
foi cometido por um policial – e isso segundo os registros das próprias
polícias. Ninguém tem qualquer dúvida que a maioria dos mortos é negra – e é
pobre.
Quando vai para as ruas nos protestos, o que a polícia
reprime não é o que chama de “baderneiros” ou “vândalos”, mas a solidariedade.
Ao bater nos corpos, sufocá-los com bombas de gás lacrimogêneo, o que querem é
controlar os corpos, castigá-los porque em vez de ficarem trancados em casa
coçando a barriga foram às ruas lutar pelo coletivo. Como assim você luta pelo
outro e não apenas por si mesmo? Como você ousa ser solidário se a regra do
neoliberalismo é cuidar apenas de si e dos seus?
Resistir ao medo e se juntar para criar futuro é o ato
primeiro de resistência. Se nos encarcerarmos em casa, como o governo quer,
armados também, como o governo quer, atirando uns nos outros, como o governo
quer, a guerra continuará sendo ampliada, porque só assim os perversos nos
mantêm sob controle e se mantêm no poder. Se contarmos apenas como um não
podemos nada. Temos que ser um+ um+ um. E então poderemos muito.
A arte é também um instrumento poderoso. Não foi por outro
motivo que ela
foi tachada de “pornográfica” e “pedófila” pelas milícias da internet
nos últimos anos. Não é por outro motivo que o bolsonarismo investe contra a
lei Rouanet e desmonta os mecanismos culturais. A arte não é firula. Ela tira
as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela junta os
diferentes.
Precisamos fazer arte. Mais uma vez, vou indicar aqui o
livro da Pussy
Riot Nadya Tolokonikova (Pussy Riot, um guia punk para
o ativismo político, Ubu Editora, 2019). A arte é um ato ao alcance de
todos nós. O maior golpe contra o Governo do déspota Vladimir
Putin veio de um bando de garotas que não sabe nem cantar nem tocar
direito, mas fazem arte tocando e cantando o ridículo dos perversos.
Rir. Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do
desespero do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que
goza da dor do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80
tiros no carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é
esgar. Já o riso junto com o outro tem uma enorme potência.
Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos
responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos
nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as
palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por
desaforo. E amar livremente.
Rir despudoradamente diante de suas metralhadoras de
perdigotos. O ódio não é para nós, o ódio é para os fracos. Vamos afrontá-los
denunciando o ridículo do que são. Vamos praticar a desobediência às regras que
não criamos. Temos que desobedecer a esse desgoverno. É assim que se quebra o
jugo dos perversos. Levando-os suficientemente a sério para não levá-los a
sério.
E temos que começar a imaginar o futuro. É assim que o
futuro começa, sendo imaginado. Ninguém consegue viver num presente sem futuro.
Mas é impossível controlar quem é capaz de imaginar depois que já começou a
imaginar. A imaginação é a melhor companheira do riso.
Sim, ninguém solta a mão de ninguém. Mas não vamos ficar
segurando as mãos uns dos outros paralisados e em pânico. Vamos rir e criar
futuro. Juntos. Lembrem-se que “a alegria é a prova dos nove”. Nos cem dias que
já dura o domínio oficial dos perversos, foi o Carnaval quem
mais desafiou o exercício autoritário do poder. Pela alegria, pela sátira, pelo
riso, pelos corpos nas ruas.
Não há lei que nos obrigue a obedecer a um Governo de
perversos. Desobedeçam aos senhores do ódio. Os próximos cem dias – e todos os
outros que virão – precisam voltar a nos pertencer.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o
Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus
Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com
Essa matéria não é do El País e sim um Plágio do Dupro Expresso. https://www.facebook.com/romulus.maya/posts/2361694550777478?__xts__[0]=68.ARA6bY0AbA4OxTDTH93TmL6oTqOwURa_UeTl8rX5VvX_MOFzJ9DQWYMksL74kC5kkzParwTjUvUxI1uomaooGDaNZSq79lHNM_SokZO2tV2q8bBlsrCdAwEI_DMeUqyutZYc_9ghRQhFIQlv6z33NfWGxH-gCKvkMSSjxLJytRbzgB_quBKuX1XNqPjIFJGP01s25zYDy_0KzSzBXBbtZNTbyd0R0c47JnHQ9HjhBlX73Mfbc5hRjYQZE89BBH4zEgc4R4_1zM886KjhTRYLS25ewftH1Q5ciuhNeCYYJUDm9b6VS95iqUeHNAjXzypIVk50&__tn__=C-R0.g
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