Entre o sagrado e o profano, Bolsonaro foi a Israel
Ao longo do processo de ascensão do atual governo de Jair Bolsonaro ao
poder e do campo conservador no Brasil, um fenômeno inédito pode ser observado:
o uso de símbolos ligados ao Estado de Israel.
Durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira do país foi
erguida em inúmeros comícios de candidatos aos cargos do legislativo e à
presidência da república. Viagens de candidatos a Israel, indumentárias
aludindo ao seu exército e palavras em hebraico foram, também, muito
frequentes. Antes mesmo das eleições, alguns desses símbolos já se faziam
presentes em protestos de rua organizados por grupos de direita e
extrema-direita contra a presidenta Dilma Rousseff e
em manifestações de cunho religioso, tais como a Marcha para Jesus.
Conciliando duas dimensões de ativismo, a política e a
religiosa, grupos representativos da nova onda conservadora incorporaram, à sua
maneira, elementos do sionismo, o movimento nacional judaico, e do Estado de
Israel.
No âmbito religioso, isso se deu principalmente como meio
para satisfazer as aspirações de setores evangélicos que têm, de algumas
décadas para cá, se aproximado de Israel e feito uso de referências judaicas em
sua liturgia. O Templo de Salomão, onde, do lado de fora, vê-se tremular a
bandeira israelense e, do lado de dentro, utensílios judaicos integram os
rituais, talvez seja o caso mais emblemático nesse sentido.
Essa aproximação de setores evangélicos com o judaísmo e
Israel tem como princípio a teologia apocalíptica pentecostal, doutrina segundo
a qual o retorno de Jesus depende do cumprimento das profecias bíblicas,
incluindo a volta dos judeus a Jerusalém e a toda Terra Santa.
É o que explica o fato de muitos líderes religiosos que
compõem a bancada evangélica serem favoráveis ao controle judaico da Palestina
histórica e à mudança
da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém. Para eles, assegurar a
administração judaica da região significa garantir o cumprimento da profecia do
retorno de Cristo.
Junto dessa perspectiva teológica, sagrada, há também o
aspecto profano dessa aproximação com o Estado judeu. Grupos conservadores
passaram a utilizar o Estado de Israel para alavancar suas agendas no Brasil. A
perspectiva de um “pólo avançado da civilização ocidental” em meio à “barbárie”
do Oriente Médio, associada à imagem de um Estado militarizado, capaz de lidar
com os inimigos em seu entorno, impulsiona o projeto de refundação do Brasil a
partir de uma guerra cultural. Adicionalmente, a imagem de Israel como pólo
científico e tecnológico se encaixa no ideário econômico liberal que atrai
muitas figuras do conservadorismo nacional. Por fim, a adoção de referências
ligadas a Israel serve também como marca de uma posição estruturada em
contraposição às esquerdas que associam, de maneira sistemática, a Palestina à
sua agenda política.
É
nesse pano de fundo que Jair Bolsonaro desembarcou em Israel pela
segunda vez — a primeira foi 2016, pouco depois de lançar-se candidato à
presidência. Simbolicamente, o país acaba personificando interesses dos núcleos
ideológico, econômico e militar do novo governo.
Entretanto, símbolos não têm existência em si mesmos e dizem
mais respeito àqueles que os utilizam. No caso de Israel chega a surpreender.
Bolsonaro e seu chanceler anti-globalista parecem esquecer deliberadamente que
o país tem postura progressista em temas como o aborto, direitos LGBTs e
legalização da maconha, alvos da onda conservadora brasileira. Além disso, o
país não garante o direito à propriedade privada de armas de fogo, rigidamente
controladas pelo Estado.
Assim, nessa nova elaboração ideológica sob a qual vivemos,
o imaginário sobre Israel e os judeus passa ao largo da pluralidade da
comunidade judaica e da complexidade da sociedade israelense.
O que se vê, na verdade, é o uso de uma ideia precária sobre
o judaísmo e o Estado de Israel para a moralização, o esvaziamento do debate
público e a rejeição ao diferente, transformando a sociedade Israelense e os
judeus num grupo monolítico, conservador e “sagrado”, sem a real complexidade e
pluralidade. Nessa lógica, alimenta-se o imaginário sobre os judeus, abrindo
possibilidades para o desenvolvimento de teorias conspiratórias e crescimento
do antissemitismo.
O estreitamento dos laços entre Brasil e Israel pode ser
positivo. Mas seria interessante que isso se desse considerando os múltiplos
vieses que compõem a sociedade israelense, incluindo aqueles que permitem
relativizar as pautas conservadoras que hoje reinam nossos trópicos.
*Rafael Kruchin é coordenador executivo do
Instituto Brasil-Israel e mestre em sociologia pela USP.
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