[RESUMO] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o
principal educador
brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a
refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e
responsabilizado por maus
resultados educacionais do país.
Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no
caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu
método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.
“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou
sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A
sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60
fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem,
hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a
história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da
classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que
as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.
Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques
nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda
conservadora que assola o país.
Parece ser essa a sina do mais importante educador
brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso
e exilado pelos
militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa
nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em
projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e
adultos.
A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade
internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização
e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los
de maneira democrática.
O método partia de palavras selecionadas entre as questões
existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de
suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia,
portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus
conhecimentos como parte integrante do ato de educar.
Os
golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional,
poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo,
grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos,
permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus
destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu
autor.
Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire
ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377
agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão
Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes
durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou,
acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão
imediata dos menos favorecidos”.
“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais
é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu.
Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da
propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um
cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o
relatório.
Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da
Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim
analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do
comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático
da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na
presença política das classes populares... Todos sabiam da formação católica do
seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional
apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo
brasileiro e a ampliação democrática da participação popular... Preferiram
acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de
democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.
E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.
E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.
Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile,
EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido
internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia
percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base,
movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando
no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a
mais de 30 países.
No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e
na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo
Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele
ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se
mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários
municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da
República, nas eleições de Lula e Dilma.
Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire
não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário
Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto,
foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros
municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das
inovações pedagógicas.
Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire
daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia,
mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.
Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam
concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e
no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos,
grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas,
avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.
Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de
abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da
agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no PSOL).
Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do
Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do
professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a
terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à
frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx.
É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem
livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de
2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de
prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.
A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo
reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente
ascensão de setores conservadores.
Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a
partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com
propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum
encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista,
basta de Paulo Freire!”.
Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do
ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço
contundente, estimuladas pelo escritor Olavo
de Carvalho, de quem o presidente é seguidor.
Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários
no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira
está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido.
Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E
complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão,
vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.
Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação,
Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão
boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins
comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos
países ricos”.
A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio
nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos
textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor
do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino,
argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a
educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o
lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.
Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire
nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas
brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a
crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são
proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem
compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem
no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu
pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.
Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o
movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas
escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações
de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e
denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos
verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.
Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve
as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de
patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a
demanda não foi aprovada.
Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do
conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem
ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de
construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo,
crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade
como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.
Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita
aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é
sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo
de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há
docência sem discência”, afirmaria.
Freire foi criticado também em setores progressistas por ser
idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos,
por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos
educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos
corredores das universidades, e nem esperava por isso.
Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus
interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual
respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se
envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto
da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer
sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu
futuro.
Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida
há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do
ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez.
Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos
e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a
cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros
didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara
tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.
Demitido antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava
claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante
para os problemas reais da sua pasta.
O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em
administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de
Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor
de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de
combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as
partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive,
setores do mercado.
Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido
com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar
pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na
capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um
mundo melhor, de acordo com os seus interesses.
Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de
pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as
diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso
ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com
Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”,
reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que
parasse de ter reuniões com Cristo”.
Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma
crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início
deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia
representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura
autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.
Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua
morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da
Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos
Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do
índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu.
Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e
ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição
do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio
neste pensar?”
Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa
que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria
afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda”.
Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes
trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu
compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das
possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo
dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970.
Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização
daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável
dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador
proibido de educar”.
Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no
Brasil.
Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP,
pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul.
Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela editora Todavia.
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