Violência sexual: o capítulo esquecido da ditadura
militar
A ditadura militar durou 25 anos no Brasil e até hoje gera
discussão na sociedade brasileira, inclusive porradaria. Por mais que o presidente
eleito, Jair Bolsonaro, tente amenizar o golpe de Estado de
1964 chamando-o de "Revolução de 64", exaltando torturadores ou
relativizando um período sombrio na história brasileira pautado por violações
gravíssimas aos diretos humanos e `a democracia, não há como apagar a história
de quem sobreviveu ao período.
Segundo o relatório final da Comissão Nacional da
Verdade, divulgado em 2014, o número total de mortos e desaparecidos durante os
25 anos de regime militar é de 434 pessoas - mais de 6.500 colegas de farda
também foram perseguidos pelo regime, e muitos também foram torturados. Não foram poucos os
métodos utilizados nas sessões de torturas praticados por cerca de 377 agentes da repressão contra
pessoas consideradas inimigas do regime. Nas horas intermináveis de
"interrogatório", presos políticos denunciaram em seus relatos
durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) espancamentos, choques elétricos,
pau-de-arara, afogamentos, torturas psicológicas e, claro, estupros. A
violência sexual, inclusive, era algo corriqueiro nos porões da ditadura.
Especialmente contra mulheres.
Apesar de presentes e constantes, a violência sexual
praticada pelos agentes de repressão, autorizados pelo alto escalão do regime
para torturar qualquer suspeito, dificilmente é mencionada nos livros de
história e outros registros mais corriqueiros sobre o período. Um dos desafios
dos consultores, acadêmicos e especialistas que trabalharam na CNV foi
justamente justamente conseguir trazer à tona esses relatos.
"A violência sexual é um aspecto desconhecido da
ditadura militar. Ainda hoje, mesmo depois da publicação relatório final da
CNV, é algo que permanece pouco conhecido até porque é um tema tabu e carrega
essa carga extra ao discutir", conta Glenda Mezzaroba, cientista política
que coordenou o grupo de trabalho "Ditadura e Gênero" na CNV e autora
do livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas
conseqüências, um estudo do caso brasileiro. "
Segundo a cientista política, foi de extrema importância
conceituar muito bem o que pode ser considerado violência sexual usando a
conceituação de órgãos internacionais como a Organização Mundial de Saúde. Até
porque na época do regime militar (e até hoje) o conceito de violência sexual e
estupro estão muito presos em se houve ou não penetração. E os relatos colhidos
evidenciam que houve, sim, violência sexual que não precisou envolver necessariamente
a penetração na vagina ou ânus, "A maioria das vítimas não tinha essa
noção de que ser obrigada a ficar nua no momento da prisão já é violência
sexual," explica. "Nós observamos, inclusive, que tinha denúncias de
violência sexual no livro que Carlos Marighella publicou em 1965, relatando
choques elétricos nos órgãos genitais. Porém, não havia muita clareza na
classificação dessas violências.
O capítulo reservado à violência sexual no
relatório final da Comissão Nacional da Verdade publicado em 2014, mostrou como
os agentes da repressão tinham um apreço macabro pela prática. Nos relatos, o
ato inicial de desnudar o preso e colocá-lo perante outros agentes e
espectadores era padrão. Seguiam então humilhações verbais, acusações e ameaças
de morte e contra companheiros, familiares e amigos. Mulheres foram estupradas
na frente de seus cônjuges como forma de fazê-lo entregar informações.
"Eu estava ali estava vulnerável, completamente
vulnerável. Aí o cara entrou com a mão dentro da minha roupa e aí, bom, como
qualquer outro abuso sexual, eu não vou ficar descrevendo detalhes, mas foi
isso que aconteceu. A mão dele passou por tudo e não sei o quê. Ele dizia
assim: 'Não, ela vai gozar, comigo ela vai gozar e ela vai falar'. Eu entrei
num pânico tão grande que eu dizia assim: 'Me bota no pau de arara'. Olha se
isso é coisa de gente normal."
O trecho acima foi extraído do depoimento de Ieda Akselrud
de Seixas, filha de militantes mineiros, estuprada no DOI-CODI em 1971 quando
toda sua família foi presa por envolvimento em movimentos revolucionários que
lutavam contra o regime militar. Ieda, assim como diversas mulheres e homens,
relata que demorou algum tempo para entender que o estupro que sofreu era
também parte do método de tortura dos militares.
"Mas eu levei muito tempo para me tocar que aquilo era
abuso sexual, sabe por quê? Eu minimizava aquele episódio porque, afinal, não
era pau de arara, não era choque e não era cadeira do dragão. É muito louco
isso! É muito louco," contou.
Os homens também eram submetidos à violências parecidas. Os
grampos de metal para administrar o choque elétrico nos corpos das vítimas eram
propositalmente presos na genitália e no ânus. "Tudo era mais suportável,
mas o choque elétrico... E vou falar uma coisa que me ocorreu muitos anos
depois, que é o sadismo dos torturadores. [...] eles pegavam as partes mais
sensíveis do corpo, que são as partes mais erógenas, mais sensíveis às relações
amorosas, mais nervosas. Que são o pênis, os lábios, as partes mais sensíveis.
É uma tragédia humana. Como é que as partes mais sensíveis, pessoais, íntimas,
são também as partes que os algozes, os torturadores... Não sei como esses
caras conseguem viver e dormir," contou José Carlos Zanetti, preso em maio
de 1971, em Feira de Santana (BA).
Mulheres grávidas também não eram poupadas de torturas.
Conforme o relatório da CNV, "há relatos que mostram perícia distinta na
tortura de grávidas, com a utilização de técnicas e cuidados específicos quando
se pretendia evitar que abortassem ou quando pretendiam efetivar o aborto, ou
mesmo quando esterilizar uma mulher era o objetivo". Mulheres como Rosa
Maria Barros dos Santos, presa e levada para o DOPS de Recife em janeiro de
1971, sofreram abortos induzidos sem qualquer consideração sobre o sofrimento
da gestante. No caso de Rosa, lhe administraram AAS (medicamento contraindicado
na gravidez) para acelerar seu aborto.
Flora Strozenberg era mãe de dois filhos pequenos quando foi
raptada em 1974 pelos agentes da ditadura e levada até o DOI-CODI de São Paulo
onde foi torturada. No seu relato, conta que foi obrigada a sentar numa cadeira
ginecológica e levou choques na vagina. "É uma cadeira de ginecologista
que eles pegam choque elétrico e botam [na vagina] com as seguintes palavras:
'Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo'," contou.
Em depoimento prestado à CNV, Márcia Bassetto Paes conta que
além dos choques que sofreu no Deops/SP em 1977, teve que se submeter a atos
mais humilhantes na frente do colega Celso Giovanetti Brambilla. "Uma das
coisas mais humilhantes, além dessas de choques na vagina, no ânus, no seio,
foi que eu fui colocada em cima de uma mesa e fui obrigada a dançar para alguns
policiais, nua. Enquanto isso, eles me davam choque. [...] Celso estava sendo
torturado ao lado, também com choque elétrico, me vendo nessa situação."
Maria Auxiliadora Lara Barcelos, conhecida como
"Dora", foi presa em 1969 e levada ao quartel da Polícia do Exército, na Vila
Militar, onde foi despida, espancada, submetida a choques elétricos nos
seios, vaginas e diversas partes do corpo. Ela foi banida para o Chile em 1971,
mas precisou sair do país por causa da ditadura de Pinochet. Dora nunca se
recuperou das sequelas emocionais deixadas pela tortura e se suicidou em 1976
aos 31 anos em Berlim Ocidental. Foto: Reprodução.
O simples fato também de serem mulheres, militantes de
esquerda ou não, já era também motivo para os militares xingarem e humilharem
verbalmente as mulheres capturadas. O senso comum era que essas eram culpadas
por estarem lá, visto que estava longe do seu papel de filha, esposa ou mãe. O
ódio de gênero era evidente. Por isso, as xingavam de "puta",
"vagabunda" e qualquer outro adjetivo que seja o contraponto de
santa. Os dois únicos papeis cabíveis às mulheres na visão do regime.
"Pelo fato de você ser mulher, também você percebe que
há talvez, às vezes, uma raiva muito maior, eu não sei se é pela questão de
achar 'por que uma mulher está fazendo isso? Por que uma moça está fazendo
isso?' E é uma forma, talvez, muito de querer te desqualificar de todas as
maneiras. Inclusive, o mínimo que você ouve é que você é uma 'vaca”' São as
boas-vindas. É a maneira como você é chamado," relatou Maria Aparecida
Costa à CNV.
De acordo com o relatório final, a violência sexual não foi
ocasional e sim disseminada como uma prática comum em toda a estrutura
repressiva do regime. "Nos testemunhos analisados pelo grupo de trabalho
“Ditadura e Gênero” são citados DEIC, DOI-CODI, DOPS, Base Aérea do Galeão,
batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, CISA,
delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis,"
diz o item 37 pertencente ao capítulo 10 do relatório final da Comissão
Nacional da Verdade.
Fora as cicatrizes emocionais que a tortura deixou nas
vítimas, há ainda algumas que carregaram uma grande culpa por terem cedido
informações sobre companheiros durante as sessões de tortura. Essa questão
também foi abordada pela equipe coordenada por Mezzaroba. Em um depoimento
anônimo, uma mulher relata a grande culpa que sentiu ao não ter resistido a dor
durante a tortura e revelado informações aos militares. Ela foi presa aos 19
anos.
"(...)Podemos ouvir na fala de muitos daqueles que
passaram pela experiência de prisão e tortura, referindo-se a si mesmos,
expressões como “resisti”, “não delatei”, “não entreguei ninguém”. Ou,
referindo-se a outros, expressões do tipo: “ele não abriu nada”. (...)
Expressões que se, por um lado, traduzem o sentimento de orgulho e honra
daqueles que as dizem, carregam também consigo, implicitamente, mesmo que
sutilmente, uma acusação dolorosa aos que, por alguma razão, não resistiram.
Talvez não compreendam sua dor," contou a vítima em seu relato.
Mezzaroba conta que a dona do depoimento acima carregava uma
carga de culpa, fora as consequências psicológicas inevitáveis de quem foi
vítima da tortura promovida pelo Estado. "Ela trazia uma dor muito grande,
inserida nessa lógica de que você deveria deveria resistir e não entregar nada.
Na verdade, tudo que acontece a partir da primeira violência na tortura, nada
ali se torna responsabilidade da vítima depois disso. (...) ela foi vítima de
uma violência inominável e incapaz de ser mensurável. Nada que acontece sob
tortura é responsabilidade da vítima. Ali, o ser humano não tem mais controle
sobre seu corpo. Entrar nesse tipo de coisa é uma bobagem e ajuda a perder o
foco do que realmente é importante."
As tentativas de desclassificar e esvaziar a gravidade do
fato que a violência sexual era autorizada e praticada por autoridades do
Estado naquele período ainda persistem. Inês Etienne Romeu, a única
sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, passou 96 dias presa no centro de
tortura clandestina no Rio de Janeiro e foi estuprada pelo militar Antonio
Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão. Em 2017, dois anos após a morte
de Romeu, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho da Justiça Federal em Petrópolis,
rejeitou a denúncia movida pelo Ministério Público Federal contra o militar sob
o argumento de que desrespeitar a anistia "ofende a dignidade humana"
e que o crime de estupro já havia prescrito.
Embora a Comissão Nacional da Verdade tenha feito um
primoroso trabalho em reunir fatos, documentos oficiais e apurações sobre as
violações cometidas pelos militares durante a ditadura, não houve ainda o
julgamento das centenas de militares e autoridades envolvidas no regime.
"Desde o final da Segunda Guerra Mundial, as nações têm
construindo arcabouços para lidar com violações de direitos humanos", diz
Glenda. "O que se tem bastante claro hoje é que os estados que cometeram
essas violações têm pelos menos quatro obrigações com vítimas: o dever de
justiça que é identificar e punir os responsáveis; o dever da verdade, que é a
abertura de arquivos dos períodos de repressão; o dever de reparar e de
compensar, sobretudo simbolicamente com a construção de museus e espaços de
memórias e também reparar financeiramente; e o dever de transformar as instituições
e torná-las democráticas. O Brasil começou em partes esse trabalho."
Segundo a cientista política, ainda falta muito para que se
desconstrua a narrativa criada em torno da Lei da Anistia e também em informar
a população sobre as consequências reais da dita dura militar. "Ainda tem
muito para se fazer no Brasil para lidar com o legado deixado pela
ditadura", diz.
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