A boa-fé do político é a clareza; Jair Bolsonaro é a
escuridão – toda vez que ele se manifesta, pessoalmente ou no Twitter, dá
curto-circuito na democracia do País. Bolsonaro aposta na confusão social e
política, como o faz todo governante com temperamento autoritário, porque é
nesse clima que ele consegue se vitimizar e responsabilizar os demais poderes
republicanos pela paralisia do Brasil – enquanto a culpa é dele próprio,
devido, sobretudo, a sua incompetência, inépcia e inabilidade. O truque é velho
demais e frequenta a agenda dos que narcisicamente deliram com a perpetuação no
poder. Bolsonaro deu as costas à classe política e menospreza o Congresso –
poder constituinte imprescindível ao funcionamento democrático de uma Nação -,
e isso ocorre desde o primeiro minuto de seu mandato. Nos últimos dias, no
entanto, o capitão da reserva ultrapassou os limites de freios e contrapesos
inerentes ao Estado de Direito e aos regimes representativos, flertando
abertamente com o autoritarismo ao dar motivo à organização de uma manifestação
em seu apoio, agendada em cinquenta cidades do País para esse domingo 26.
Bolsonaristas radicais alardearam ao longo da semana que “um protesto estava
sendo montado”, e a primeira pergunta, a mais óbvia de todas, é a seguinte:
protestar contra o quê? É ridículo, mas só se for para protestar contra o
próprio Bolsonaro, pois não é outra pessoa, senão ele, a responsável pela
fomentação das crises nacionais – nelas incluído o choque entre os poderes
federativos.
A ideia do “protesto” flerta com o autogolpe autoritário,
pega na mão do arbítrio e beija o regime de exceção, a tal ponto que apoiadores
de Bolsonaro, do primeiro time à época de sua campanha eleitoral, não concordam
inteiramente com esse ato. O movimento empresarial Brasil 200, por exemplo, que
tem entre seus representantes os empresários Flávio Rocha e João Appolinário,
diz sim às palavras de ordem que cobram do Legislativo as aprovações da Reforma
da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sergio Moro. O movimento é
literalmente avesso, porém, aos extremismos que pregam o fechamento do
Congresso e do Supremo Tribunal Federal. “A forma como a proposta da
manifestação surgiu era um pouco nebulosa, vimos pessoas com hashtags sobre
invadir o Congresso e o STF”, diz Gabriel Kanner, presidente da entidade. “A
nossa orientação é refutar qualquer tipo de pedido nesse sentido”. No interior
do Brasil 200, as mensagens de Whatsapp que se liam na semana passada
explicitavam “parabéns ao Flávio por não aderir ao ato golpista de Bolsonaro”,
“peço a todos que repensem qualquer apoio a esse governo” e “estamos num
momento gravíssimo”. Ou seja: o conservadorismo clássico do Brasil 200, que
pode até ser de direita, quer economia liberal e democracia política, mas
jamais ditadura. O igualmente conservador Movimento Brasil Livre (MBL) segue no
mesmo rumo. “Pautas como o fechamento do Congresso e do STF são antiliberais”,
diz o deputado federal Kim Kataguiri, um dos líderes do MBL. Assim, nem entre
os recém-criados grupos e legendas direitistas o presidente recebe apoio
integral. A favor do “protesto” – comandado principalmente por dissidentes
radicais das diversas organizações que atuaram em sua campanha eleitoral -,
bolsonaristas postaram mensagens que, inimaginavelmente nos dias atuais, de
fato pregavam o fechamento da Corte Suprema, da Câmara e do Senado. Nas ruas, o
que se verá serão reivindicações em todos os sentidos, algumas plausíveis
exigindo as reformas, outras malucas atraindo um golpe.
Hamlet e o reino do Brasil
O presidente Jair Bolsonaro, passando por cima de todos e
por cima de tudo, quer uma ligação direta com as ruas e vislumbra o atalho
populista – idêntico ao seguido pelo bolivarianismo na arrasada Venezuela -,
que descarta as necessárias e saudáveis intermediações de partidos, Parlamento
e Justiça na práxis de governar. Se isso é devaneio de Bolsonaro, que julga ter
chegado ao Planalto como “missionário de Deus” ou se achando “o próprio Deus”,
como o qualificou no Facebook o pastor congolês Steve Kunda, o certo é que tal
surto não é um problema somente dele, de seu clã e seguidores, em relação ao
qual podemos dar de ombros. Não! Trata-se de loucura que recai sobre todos os brasileiros
e que apenas na aparência é oca de sentido. Que ninguém, nem o mais puro
coração da Terra, se engane: Bolsonaro, em seu vaivém de morde e assopra o
Congresso, de morde e assopra o STF, é o emblema sem retoques de uma das mais
geniais análises de William Shakespeare, na tragédia Hamlet, quando o moço
príncipe dá sinais de descolamento da realidade. A seu respeito, o conselheiro
do reino sentencia: “Loucura embora, lá tem seu método”.
A perigosa metodologia presidencial começou a ser exposta de
forma contundente quando, pelas redes sociais, o mandatário divulgou uma
mensagem, até então apócrifa, falando de “ingovernabilidade” no Brasil devido
às “corporações” instaladas na elite do poder, sobretudo no Congresso
(declarou-se posteriormente como autor da escrita o engenheiro Paulo Portinho).
Qualquer governante que tivesse uma gota de bom senso no sangue teria jogado a
mensagem no lixo, mas o “mito” preferiu tocá-la à frente e com a recomendação
de “leitura obrigatória”. Daí veio para militantes extremistas o combustível
para as manifestações. Terá gente ponderada no ato? Sim. Mas também terá
aqueles que se movem somente pela ideologia e doutrinação, sem compromissos
sérios com o País. Até as paredes do Palácio do Planalto, já escoladas nas
tramas ideológicas à direita e à esquerda, sabem que Bolsonaro assim agiu com a
mensagem de Portinho porque é incapaz de assegurar politicamente a
governabilidade. Além disso, era a chance de ele falar em “ruptura”
institucional e testar o povo. Houve quem aderisse à tal projeto imediatamente,
feito os dirigentes do Clube Militar, que assumiram a convocação no Rio de
Janeiro – é todo mundo da reserva e sem comando de tropa. E o líder do governo
no Senado, major Olímpio, que orgulhou-se em dizer que “encabeçava o movimento”
– eis uma frase que de fato lembra golpe: “encabeçava o movimento”.
ESTRATÉGIA Jânio renunciou falando em “forças
ocultas e terríveis”. Pensou que o povo o reconduziria ao Planalto. Bolsonaro
faz o inverso: primeiro testa as ruas para depois, quem sabe, tentar o golpe
O transatlântico e a canoa
Houve, no entanto, uma espécie de vitória antecipada das
instituições democráticas, à medida que o próprio presidente do PSL, deputado
federal Luciano Bivar, veio a público declarar que “a manifestação é sem
sentido”. Contrário, também, dizia-se o líder do governo na Câmara, deputado
federal Vitor Hugo. Finalmente, outra dura crítica à manifestação foi imposta
pela deputada estadual Janaina Paschoal, de São Paulo. Com a força e o
prestígio de parlamentar mais votada, Janaina iniciou os primeiros movimentos para
deixar o PSL e disparou que o presidente está “gerando crises”. Na mesma linha
foi o líder da comissão da Reforma da Previdência, Marcelo Ramos, para quem
Bolsonaro arma “uma cilada”. “O problema dele não é com o Congresso nem com os
parlamentares do centrão. É com a democracia e as instituições”, diz Ramos. “É
surreal que alguém que viva da política há vinte e oito anos, que botou a
família inteira na política, diga agora que a política não presta”. Para atar
as duas pontas do cordão de isolamento que se faz em relação a Bolsonaro e ao
seu personalismo, integrantes de dez partidos (entre eles PSDB, Cidadania, PT e
PDT) reuniram-se em São Paulo e criaram uma cúpula suprapartidária de oposição,
lançando o movimento “Direitos Já, Fórum pela Democracia”. Todas essas pessoas
concordam com reivindicações realistas, mas é claro que jamais endossariam nem
endossarão atitudes contra a democracia.
Com certeza Bolsonaro não esperava ficar tão isolado e nem
supunha que o desembarque de tanta gente, daquilo que já lhe foi um
transatlântico de apoio e hoje virou canoa sem remo, se daria com tamanha
rapidez. Restam-lhe as ruas, mas as ruas são uma incógnita – e, nelas, ele não
poderá estar pessoalmente para não correr o risco de impeachment por crime de
responsabilidade. É bastante razoável supor que boa parte da militância radical
anônima esteja presente no tal “protesto”, mas a cartada do presidente é contar
com massiva participação do cidadão, digamos, comum. É dele que Bolsonaro
precisa para se apoiar, após afrontar abertamente as instituições e,
particularmente, a classe política. Jair Bolsonaro não conhece a história de
seu próprio País, sequer a mais recente, porque, se a conhecesse, não teria
esticado a corda sob risco de vê-la arrebentar.
Bastaria a ele lembrar de Fernando Collor e Dilma Rousseff,
que quando se sentiram náufragos no mar de lama da corrupção insuflaram a
população. Apelaram às ruas. E caíram do poder. Ainda no campo da história, a
estratégia de Bolsonaro se aproxima, sobretudo, da tática de Jânio Quadros, em
agosto de 1961. Jânio renunciou após sete meses na Presidência da República,
falando em “forças ocultas” e “forças terríveis” que o impediam de governar.
Tudo mentira. Ele acreditou que o povo o reconduziria nos braços ao Planalto,
tal a sua popularidade sob o lema de “varrer a bandalheira”. Aconteceu o
inesperado: o povo silenciou. Bolsonaro transformou as “forças ocultas” em “corporações”
que levam à “ingovernabilidade”, mas está tomando uma precaução: testa as ruas
antes de tentar o autogolpe. Seguindo o axioma matemático, a ordem dos fatores
foi invertida, porém o resultado é bem provável que seja o mesmo: o suicídio
político.
A RUA E A QUEDA DE PRESIDENTES DA REPÚBLICA
Sempre que um governante do Brasil convoca a população para
defendê-lo em praça pública, em uma situação de crise de poder, ele se dá mal.
É quase uma regra. Começou com Jânio Quadros, que em agosto de 1961 tentou dar
um golpe denunciando “forças terríveis e ocultas” que estariam atuando contra
ele. Acabou sem apoio e sem cargo, além de ser classificado como lunático.
Nenhum cidadão mexeu uma palha para mantê-lo no governo.
Outro caso notável é o do ex-presidente Fernando Collor,
que, atolado em denúncias de corrupção, convocou, no dia 13 de agosto de 1992,
em um pronunciamento na televisão, a população a vestir as cores verde e
amarelo no domingo 16 e sair às ruas em defesa do governo. Seria uma resposta
aos que o acusavam de corrupção. Em vez do verde e amarelo o que se viu foram
milhares de jovens e adultos tomando as ruas das capitais vestidos com roupas
negras e com o rosto pintado na mesma cor, em um sinal de luto contra a
roubalheira. O movimento ficou conhecido como “caras-pintadas”. O mandato de
Collor acabou em impeachment.
Dilma Rousseff, que, mais recentemente, chamou a população
para ir às ruas defendê-la, também deu com os burros n’água. O chamado serviu
de pretexto para a oposição se mobilizar. Diversas manifestações que reuniram
centenas de milhares de pessoas tomaram o País entre 2015 e 2016 e definiram o
seu destino, Dilma, pediu apoio do povovo. Também acabou sendo deposta.
Colaboraram Germano Oliveira e Vicente Vilardaga
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