“1964: O Brasil entre Armas e Livros”
O melhor tipo de humor é o involuntário, aquele de quando
rimos de um professor ali na frente, que escorrega. O momento em que se inverte
a estrutura de poder, em que você, ali da turma do fundão, sem moral no
colégio, racha o bico daquele senhor com muito mais força que você. E não foi
por uma piada consciente. O mundo, o acaso, os deuses todos, conspiraram a seu
favor: armaram a piada sem o professor querer. Pode rir. Ri com vontade.
Corta pro contexto da produção: 1964 é uma
produção do grupo Brasil Paralelo, gaúcho, que tem tido alguma repercussão ao
lançar filmes documentais históricos sobre o nosso país, sob uma ótica
direitista. Dirigido por um coletivo meio abstrato de diretores, entre eles
Henrique Zingano, a produção foi exibida simultaneamente em algumas salas,
alugadas na rede Cinemark, no último dia 31 em dez cidades brasileiras. Em São
Paulo, no shopping Eldorado, houve festa, à la première no Chinese Theater na
Hollywood Blvd, LA. Youtubers, influencers, a tão caricata Terça Livre, aquele
Orléans e Bragança do PSL, nosso eterno e lindo futuro monarca, enfim, a nata
da nata reunida.
Algumas horas depois o agora “Cinemarx” se pronuncia nas
redes sociais. A rede mostra-se arrependida, pede desculpa pelo “erro de
procedimento” e “reforça” (termo que tenho vontade de esganar quem usa) que não
apoia organizações X Y Z, aquele papo furado. Bom, Cinemark sentou, rodou e não
gozou. A famosa inversão da equação win-win: parte da esquerda promete boicotar
o Cinemark, e parte da direita idem. Não acredito nisso de boicote, criancice.
E acredito que o Cinemark seguirá vivão e vivendo, com seus filmes da DC e da
Marvel, pra gente que, mesmo sendo de direitinha, está mais preocupada em ver o
Shazam, “desde que o cara não me entre nessa de política” (apud episódio Roger
Waters em São Paulo). Canta “Another Brick” aí mas não me entra nessas de
política, meu.
Parênteses: não sou contra exibirem o filme. E o Cinemark é
só um reflexo dessa cultura do fácil, da empresa, da grana: quando se quer
agradar todo mundo não se agrada ninguém. Você só está sendo manipulado, diria o
taxista ao Batman do Leblon (ou vice-versa). Ninguém quer se queimar, nem o
filme que passa uma suave pros milicos, nem a esquerda do bem, que “reforça”
que não apoia organizações blablablá. Vocês reforçam é que querem a minha
grana, que mal tenho pra dar, e só. Exibam a porcaria do filme, assumam a
bagaça, e deixe detonarem à vontade. Não guenta, pede leite. Cultura hoje, e
prefiro tratar essa joça (Cinemark e o filme em questão) como produtos
culturais, pro bem de minha sanidade mental, é sempre esse medinho todo, aqui
muito bem representado pela produtora do filme e pela rede de cinema.
O filme continua sendo exibido via outros canais, inclusive
está disponível no YouTube. Pedem uma ajudinha para continuar financiando
produções que “já levaram informações a mais de vinte trilhões de brasileiros”.
Nesta semana deu quebra-pau em uma universidade de João Pessoa (PB) que passava
o documentário. Imagino cadeiras de plástico voando, sempre a melhor parte de
qualquer porrada envolvendo mais de cinquenta pessoas.
Tenho pra mim que o gatilho foi puxado por um tuíte de
Eduardo Bolsonaro, isso na primeira semana de fevereiro, divulgando o trailer
do filme. Lembro que o termo “mitologia”, usado para a política hoje, foi
usado, num curioso paralelo com o apelido do nosso presidente (“mito”, ainda
que com origens e usos diversos). Ato falho. Senti ali que havia aquela pegada
revisionista de regurgitar. Eu não estava enganado.
O Brasil não manja do Brasil. Falo aqui em termos técnicos
inclusive. A trilha sonora, quase infinita e mal encaixada, que varia entre
cântico gregoriano e marcha marcial pode apunhalar seu cérebro, em uma versão
leve das torturas praticadas durante o regime militar. Aguentar as quase duas
horas de filme cria um reverso esquizoide, em que o espectador se fecha e vai
afundando na cadeira (ou no sofá ou na cama, caso esteja no YouTube) até a
autoaniquilação. Não é uma produção amadora, aos moldes dos vídeos que o clã
Bolsonaro solta em suas lives, aquela estética Hermes e Renato, ou Talebã, no
limite, involuntária. Contudo, o cuidado da produção, no estético, revela-se
cafona. Ou você é sério ou você não é. Não tente ser. Ou você entende do
assunto ou não entende. Não tente entender. Eles tentam. A estética do jeca,
quando o caipira burguês vai à metrópole, não sabe por qual porta do busão
entrar, mas finge que sabe.
Quando Olavo de Carvalho, lá pelas tantas, diz que foi sim
um golpe você percebe que a coisa desandou forte. Que o cara não sabe por qual
porta entrar, tampouco o filme. E foi talvez o momento em que eu mais ri,
retomando o raciocínio que abre o meu texto. Pensei: esses caras estão muito
loucos. Estão chamando o padre pra negar a existência de Deus, perderam a
pontaria, em uma imagem que lhes é tão cara (a Glock pra se comprar no Pão de
Açúcar). Já não sabem mais em quem estão atirando, o que estão defendendo, nem
como. Daí o riso: esse Brasil que não se conhece tá querendo me dar aula e eu
tô pagando uma pica, para ficar no vocabulário que é tão caro ao homem da
pacata e provinciana Virginia.
Nessas, 1964, com esse subtítulo horrível de tão
vulgar (armas e livros), se perde em um relativismo revisionista ambivalente e
multifacetado, no sentido ruim do termo mesmo. Reduzir o explosivo momento
histórico a um confronto entre militares e comunistas é dividir o mundo entre o
Pato Donald e a Cruela, com um monte de cachorrinho lindinho povoando nosso
imaginário, nosso mundo, nossas vidas, nossas dores. Esses caras estão querendo
me dar aula de Guerra Fria com esses depoimentos de toupeira? É quando eu ria
do meu professor que escorregara, eu lá do fundo da minha sala, pensando na
melhor maneira de cair fora dali.
O pepino da coisa é que não é tão simples sair da sala, do
filme ruim, da história mal contada, do revisionismo, da estética de
publicitário “cansado de tudo isso” que quer ser diretor de cinema. O riso vem,
talvez seja uma maneira bastante prazerosa de lutar no front, mas, como diria o
Woody Allen, não basta rir dos idiotas, não basta escrever um artigo, tal qual
faço aqui, pra detonar os idiotas. Às vezes um taco de beisebol é mais
eficiente.
Enquanto o aparelho da repressão débil assassinava Vladimir
Herzog, isso é o de menos, o importante pra essa gente é que Jango, Jânio (“que
condecorara Che”) foram parados em nome da ordem, de uma ordem que se revela
desornada, zoneada, sem norte – e nisso a estética cafona do filme combina
direitinho, produto perfeito da publicidade, em que o retoque visual forçado
está impregnado pelo caos documental/factual. As “cagadas” são tratadas como
isso que eles chamam mesmo, de “cagadas”, dano colateral, a tortura, a morte.
Uns fitam o presente, com suas lágrimas, com suas saudades.
Outros devassam o futuro, com todas as suas auroras. Enquanto o Crispim Soares,
em Machado de Assis, volta pra casa, com os olhos entre as duas orelhas da
eguinha em que vinha montado, Simão Bacamarte alongava o olhar pelo horizonte
adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. A gente sabe a zona
que vira a Casa Verde, no Alienista. Para quem não leu, uma informação longe,
bem longe de ser spoiler: a Casa Verde é um manicômio.
É pra dar nota ao filme? Deeeeeezzzzz, nota deeeeezzzzz. E a
galera vibra.
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