domingo, 26 de maio de 2019

PROCURA-SE UM PRESIDENTE

Miguel Lago, da PIAUÍ
Jair Bolsonaro é um fenômeno tecnopolítico. Ele é produto da dinâmica das redes sociais, onde o brasileiro gasta boa parte do seu dia, consumindo e compartilhando informações. O Brasil é a segunda nação a passar mais tempo conectada, em média nove horas por dia. Não por acaso, o país foi de certa forma pioneiro no uso da tecnologia em uma eleição, a ponto de invalidar determinantes clássicos, como tempo de televisão, financiamento, estrutura partidária, palanques estaduais ou memória eleitoral (experiência passada que marcou o eleitorado). O candidato do PSL tinha míseros segundos, um partido nanico, poucos recursos declarados, palanques frágeis e não havia governado antes.
A tecnologia foi também determinante para eleger Donald Trump, sabemos disso. Nesse caso, entretanto, outros fatores contribuíram para a vitória, como o fato de o personagem ser uma celebridade televisiva e dispor da estrutura e da capilaridade de um grande partido tradicional. Bolsonaro não tinha nada disso. Ele precisou se construir nos últimos quatro anos como um digital influencer poderoso para, em seguida, saltar à condição de candidato popular e vitorioso. Agora, para manter-se no poder, Bolsonaro quer desafiar também outros determinantes da ciência política – os da governabilidade.
Será possível governar sem negociar, pactuar ou respeitar as instituições? Será possível se manter no poder recorrendo à sua capacidade extraordinária de mobilização via redes sociais? Será que tudo o que foi determinante para elegê-lo se torna agora um empecilho para poder governar?
A dimensão online foi fundamental para a vitória eleitoral, mas é na dimensão offline que se governa. Como então conciliar o Bolsonaro vitorioso – o do perfil nas redes sociais –, com o Bolsonaro empossado, presidente da República – e que precisa governar? Manter-se constante e relevante nas redes sociais não é algo que combina com a tarefa de governar um país atolado em múltiplas crises. Para cada uma dessas atividades, são necessárias habilidades muito diferentes, muitas vezes antagônicas. A chave do êxito do governo Bolsonaro passa pelo equilíbrio entre a lógica do perfil virtual e a função de presidente. Do contrário, ele deixará aberta uma avenida para a emergência de uma oposição forte à direita.
Nos primeiros meses de governo ficou claro que a lógica do perfil nas redes sociais está vencendo de goleada. Não à toa, pois ela explica o bolsonarismo em todos os seus aspectos: o tipo de base social, os formatos de mobilização, a formação ideológica, o perfil social de seus aliados. Tudo isso está condicionado pelas novas formas de interação das redes sociais. Manter o perfil ativo é fundamental para manter a base fiel conectada e motivada. Como explica Marcos Nobre, em artigo publicado nesta revista (“A revolta conservadora”, piauí_147, dezembro), o capitão reformado precisa do caos para poder governar, pois sua estratégia é governar para “uma base social e eleitoral que não é maioria, mas é grande o suficiente para sustentar um governo. Algo entre 30% e 40% do eleitorado. Tornar essa base fiel é fundamental para manter o poder”.
Vale complementar essa análise com os estudos de Paolo Gerbaudo, professor do King’s College, de Londres, sobre populismo e redes sociais. Segundo ele, a arquitetura das redes sociais – a maneira como são desenhadas – propicia o desenvolvimento de lideranças populistas e de mensagens sensacionalistas. A visualização da informação é prioritariamente definida pelo número de interações que a publicação gerou nos primeiros minutos seguintes à postagem. Ou seja, ela favorece o compartilhamento de conteúdo inflamável. Por isso, muitas celebridades das redes são originalmente trolls: perfis que adotam um comportamento que viola regras básicas de convivência. Um governante que queira se manter “ultrarrelevante” nas redes sociais precisa gerar grande número de reações às suas postagens.
Foi com o intuito de manter a capacidade de digital influencer que Bolsonaro criou uma nova categoria de ministros: os ministrolls. Abraham Weintraub, Damares Alves e Ernesto Araújo cumprem essa função, assim como outras figuras paraministeriais, como Filipe Martins, Olavo de Carvalho, Carlos e Eduardo Bolsonaro. Quanto mais barbaridades eles dizem, mais interações geram e maior é a relevância cibernética do governo. A nomeação dos ministros ditos mais “ideológicos” atende eficientemente às necessidades do perfil virtual, ao mesmo tempo que compromete a execução de políticas públicas.
Donald Trump conseguiu equacionar o dilema entre as figuras do perfil virtual e do presidente graças ao Partido Republicano, que ofereceu a ele quadros e capacidade de governar. Como disse Marcos Nobre (“O caos como método”, piauí_151, abril), aqui são as Forças Armadas que cumprem a função de vertebrar o governo. O cientista político Sergio Fausto escreveu algo parecido nesta revista (“O ponto a que chegamos” piauí_149, fevereiro), ao dizer que o governo atual é composto por duas forças – a do “liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar”, ou seja, Paulo Guedes e os militares, de um lado, e “o conservadorismo militante e não raro insensato”, de outro. A tensão entre “olavetes” e militares, tão citada na mídia, seria, portanto, o reflexo da tensão essencial entre o perfil das redes sociais e o presidente.
Os analistas argumentam que a capacidade de governar será conferida por essa combinação de técnicos liberais e militares. Mas um olhar mais atento revela que apenas as pastas da Agricultura, Infraestrutura e Saúde são comandadas por ministros com alguma capacidade de ação e experiência na gestão pública.
Até mesmo na escolha dos nomes ditos “técnicos”, a lógica do perfil virtual predomina sobre a do presidente. O principal nome do governo Bolsonaro é um empresário bem-sucedido sem nenhuma experiência no setor público, mas que manteve uma colaboração regular, como colunista, no jornal O Globo. O ministro da Economia não foi escolhido por aquilo que fez como quadro técnico, mas por sua capacidade de expressar e articular sua opinião.

Opiniões são importantes, mas para fazer política pública é preciso ação. Na era digital, contudo, a opinião predomina sobre a ação. Passamos a viver no reino das opiniões: todos têm alguma opinião formada sobre tudo e se sentem na obrigação de opinar sobre qualquer coisa. Esse fenômeno é consequência direta da hiperconectividade e, em particular, do modelo de negócios das empresas detentoras de redes sociais: a venda de dados de usuários para marketing. A fim de obter um perfil completo e apurado de cada usuário, é preciso estimulá-lo a revelar suas preferências sobre o maior número possível de temas. Ao opinar sobre tudo, do nazismo à Fórmula 1, o usuário contribui para a captura mais precisa de dados pelas empresas.

Com isso, tudo se tornou opinião e se confunde com ela, numa arena em que não existem hierarquias. A análise política de um especialista equivale à opinião de qualquer pessoa que nunca abriu um livro sobre política. Trata-se de uma perversão do direito à liberdade de expressão: muito embora cada um tenha o direito de opinar sobre o que quiser, e uma opinião não se sobreponha à outra, nem tudo é da ordem da opinião. Análises, pesquisas e evidências são de outra esfera. Não se questiona o resultado de uma pesquisa científica dizendo simplesmente que não se concorda com ela, mas analisando sua metodologia ou apresentando uma pesquisa sobre o mesmo tema que possa colocar em xeque as conclusões.

Na era do Facebook, entretanto, é como se isso não fosse necessário, pois basta concordar ou discordar, clicar like ou dislike. A ação, o trabalho, a especialidade, tudo perde lugar para a opinião. No reino da opinião não existe mais espaço para a autoridade. No perfil do papa no Twitter, internautas brasileiros se sentem no direito de contradizer as análises teológicas dele. As redes sociais tornam o dono de botequim um especialista em exegese bíblica do mesmo quilate que o chefe da Igreja Católica.
Ao tornar equivalente a opinião de todas as pessoas, a rede social demonstra sua extraordinária vocação anti-establishment. Os marcadores de certeza, os filtros de qualidade, as certificações construídas ao longo de séculos pela civilização são dissolvidos pelo algoritmo equalizador. Diplomas universitários, pesquisas científicas, títulos honoríficos são substituídos por opiniões, likes e seguidores. Abrese, portanto, uma extraordinária brecha para a ascensão social de pessoas descartadas pelos filtros analógicos. Esse potencial gerado pela dinâmica das redes vai de par com o que Marcos Nobre escreveu sobre a base do candidato do PSL: “Uma revolta de quem frequenta a igreja contra seus pastores, de militares de patentes mais baixas contra as altas patentes, do baixo clero contra o alto clero do Congresso Nacional, de pequenos comerciantes, produtores rurais e industriais contra suas entidades representativas e contra os ‘campeões nacionais’, da base de primeira instância do Judiciário contra suas instâncias superiores, do baixo clero do mercado financeiro contra os porta-vozes dos bancões.”
Aqui, não se trata dos excluídos do sistema, dos pobres, mas dos incluídos que perderam: os perdedores da meritocracia. Não daqueles que, por causa do racismo e do classismo estruturais do Brasil, não puderam sequer sonhar em competir. Mas daqueles que, em um país desigual, tinham o privilégio de poder competir, e ainda assim perderam. É a essa franja da população que a nova extrema direita se dirige. O americano Steve Bannon, estrategista dessa corrente ideológica, resume bem esse sentimento quando define o capitalismo global como um regime socialista para ricos e pobres. Segundo ele, os mais ricos e os mais pobres, além de não pagarem imposto (o que é uma falácia, pelo menos no que diz respeito aos mais pobres), são subsidiados pelo Estado, seja por meio de políticas redistributivas (no caso dos pobres), seja via auxílio direto em caso de falência (no dos ricos), segundo a máxima do too big to fail [grande demais para quebrar]. Enquanto isso, a franja média, chamada por Bannon de little people [povinho], que trabalha e paga seus impostos, não teria apoio algum do Estado.
Os arautos dessa nova extrema direita por aqui também são os perdedores da meritocracia. Assim ocorreu com Olavo de Carvalho, que não conseguiu nem fazer o ensino médio, mas hoje é chamado de “filósofo”. E também com o ministroll Ernesto Araújo, cujo perfil publicado na piauí_151, abril (“O chanceler do regresso”) revela uma personalidade profundamente ressentida, disposta a mudar oitenta anos de uma política de Estado contínua para provar algum ponto a seus colegas. Não por acaso, a obsessão em lutar contra o “globalismo” – conceito inexistente na teoria política, mas onipresente nas redes de extrema direita – reflete o complexo de inferioridade dessas pessoas em relação aos vencedores da globalização e o seu ressentimento com o burguês cosmopolita, formado em uma boa universidade e com diálogo internacional. Nesse sentido, a trajetória de Bolsonaro – de militar de baixa patente que não progrediu na carreira, saiu do Exército, entrou para a política e se tornou chefe de todos os generais – serve de inspiração e encarna o sonho de quebra de hierarquia, de trampolim social e de fim da meritocracia.
Se, de um lado, a hiperconectividade equaliza todos na opinião e abre uma brecha para a ascensão social dos perdedores da meritocracia, por outro molda a ideologia ainda em formação. Talvez por prezar a honra da direita e do conservadorismo, eu não consiga concordar com os analistas que qualificam o governo e o movimento que o elegeu “de direita” ou “conservador”. O conservadorismo de verdade zela pelo fortalecimento da autoridade, da hierarquia, da excelência e da tradição. E basta olhar atentamente para as propostas políticas do bolsonarismo para ver que ele é anticonservador.
Tomemos, por exemplo, o movimento Escola sem Partido, que parte da premissa de que professores de esquerda estão doutrinando alunos em sala de aula. Para combater essa pretensa prática, alunos foram incentivados a filmar seus professores e a constrangê-los. Caso isso de fato ocorresse, a figura de autoridade e a relação hierárquica entre mestre/aluno seria imediatamente quebrada. Uma política de educação conservadora, ao contrário, estaria focada em fortalecer a figura de autoridade do professor dentro da sala de aula, eventualmente autorizando a palmada como forma de disciplina. Além disso, a própria figura de Bolsonaro é anticonservadora: como seria possível um eleitor conservador escolher um líder que não valoriza o sacramento do casamento, que usa termos grosseiros como “comer gente” e, pior, se faz batizar evangélico, sem renunciar previamente ao catolicismo? O discurso pretensamente conservador encobre a quebra de hierarquia, a erosão das figuras de autoridade e a utilização da máquina pública como catapulta social para os amigos do baixo clero e os “alunos” de Olavo de Carvalho.
Se existe um governo anticonservador e anárquico é justamente esse. A ideologia que ele prega não é exatamente a da defesa da ordem, da hierarquia, da disciplina e da família: é a da defesa da violência. Sua aversão à legalização do aborto não tem a ver com a proteção da vida, como ocorre com os conservadores católicos, mas com a conservação da submissão da mulher ao homem. Ele se opõe às cotas raciais não porque defenda a meritocracia e a disciplina – mesmo porque no seu grupo político poucos passaram no vestibular de uma universidade de qualidade –, mas porque insiste na manutenção da subalternidade da população negra em relação à branca. Dessa violência, Bolsonaro deu mais uma prova no final de abril, ao afirmar que “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, [o Brasil] não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro”. A frase não expressa uma defesa da família, mas apenas a homofobia pura e simples. Se fosse um conservador, ele teria condenado toda forma de turismo sexual. Ao contrário, faz apologia.
Tampouco acho que se possa chamar esse governo de “fascista”. O fascismo tinha como base pilares racistas e foi o responsável pelas maiores barbaridades do século XX. Mas até nele havia construção de uma ideia de sociedade – ideia abominável, diga-se de passagem. No bolsonarismo, não há nem isso; trata-se de esvaziar o fascismo de todo conteúdo inteligível e conservar apenas sua forma e primitivismo: a violência contra a minoria.
Uma ideologia baseada na violência e na opressão reverbera no contexto da hiperconectividade. A arquitetura das redes, como vimos, estimula as pessoas a se expressarem sobre absolutamente tudo, e o conteúdo difundido aparecerá prioritariamente para aqueles que tendem a concordar com elas. É dessa maneira que a rede social se torna uma acumulação de câmaras de eco, de filter bubbles, para usar a expressão do ativista político da internet Eli Pariser. Cada um tem um perfil e nele pode se expressar livremente como se escrevesse para uma coluna de jornal. Mas uma coluna cujos leitores praticamente só concordam e aplaudem. Quanto mais agressivo o comentário, mais interações ele gera, potencializando o seu alcance. Essa ideologia da violência pura, da violência como fim e não como meio, está vinculada à hiperindividualização das redes sociais, onde as pessoas colecionam “joinhas” e acreditam sempre ter razão. Se há um problema no mundo, a culpa é do outro, sempre dele, nunca é minha. No ensaio “Anotações sobre uma pichação” (piauí_139, abril 2018), João Moreira Salles examinou uma característica atual do brasileiro, que é se eximir de qualquer responsabilidade – característica que ganhou expressão sintética em um grafite pintado nos muros da cidade do Rio que dizia: “Não fui eu.” Bruno Carvalho, no artigo “Não foi você” (piauí_142, julho 2018), conectou a lógica do “não fui eu” à ascensão de Bolsonaro.
A sociedade hiperconectada é parte fundamental do perfil Bolsonaro: é daí que provêm argumentos, ideias, informações, apoios e alianças dele. Por essa razão, Bolsonaro estará sempre condenado a priorizar o perfil, em detrimento da função de presidente. E é nessa brecha – que o capitão reformado não consegue tapar – que emerge gradualmente uma oposição latente mas vigorosa ao seu governo.
Em outras partes do mundo, a ideologia da violência da hiperconectividade vem funcionando de maneira mais sofisticada e inteligente, visando articular as diferentes correntes de direita. O professor René Rémond, um dos maiores estudiosos da direita francesa, identificou três famílias dentro desse campo político: a direita legitimista e contrarrevolucionária (na origem, inimiga da Revolução Francesa e defensora da restauração da monarquia; portanto, de perfil conservador), a orleanista (na origem, partidária de uma monarquia parlamentarista; ou seja, de perfil liberal) e a bonapartista (populista e autoritária). As três correntes compuseram o partido de direita hoje chamado Républicains. Rémond exclui de sua análise o partido Front National por não considerar a extrema direita como parte do campo político das diversas direitas.
A nova direita que emerge no mundo é personalista, autoritária, violenta, tem forte grau de adesão popular, alguma capacidade de entrega em termos de política pública, e é defensora das instituições no discurso. É uma direita vigorosa, mas não revolucionária, como a extrema direita se propõe a ser. Está à esquerda da extrema direita e à direita dos conservadores e liberais. Tomando emprestado os termos de Rémond, seria uma direita bonapartista. Até mesmo líderes de extrema direita estão estrategicamente tentando se deslocar para essa nova direita. O aparecimento na Hungria de uma extrema direita ainda mais radical que a do primeiro ministro do país, Viktor Orbán, permitiu que ele deixasse de ser o exemplo máximo de intolerância. Nos Estados Unidos, ocorre o mesmo fenômeno: movimentos como o alt-right (direita alternativa) e o dos supremacistas brancos fazem Donald Trump parecer um pouco menos alucinado.
No artigo “Dois caminhos para a direita francesa” (piauí_149, fevereiro), Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, faz uma análise detalhada de todo o ecossistema conservador que surgiu na França nos últimos cinco anos. As manifestações maciças, em 2012 e 2013, contra uma lei que autorizava o casamento gay ressuscitaram a direita legitimista (conforme a definição de Rémond), que, em seguida, se organizou em movimento político – o Sens Commun [Senso Comum]. O movimento se tornaria determinante para que, nas primárias do partido Républicains para as eleições presidenciais de 2017, François Fillon, o candidato conservador, derrotasse de maneira surpreendente o postulante liberal (Alain Juppé) e o liberal-populista (Nicolas Sarkozy).
Caso essa nova direita legitimista não eleja o próximo presidente francês, é muito provável que alguém que se posicione entre ela e a extrema direita chegue lá. Para Lilla, Marion Maréchal, ex-deputada e neta do polêmico político de extrema direita Jean-Marie Le Pen, é a mais bem-posicionada para ocupar esse lugar. A extrema direita na França é tradicionalmente antielitista e anticlerical. Maréchal tem se aproximado dos católicos e é muito mais amável com as elites tradicionais, diferentemente de sua tia, Marine Le Pen.
Já no Brasil, ninguém é mais sectário do que Bolsonaro, sentado na extrema direita com seus filhos e o astrólogo Olavo de Carvalho. Sua estratégia é extremamente arriscada e atende mais uma vez à lógica do perfil virtual. O digital influencer Bolsonaro pretende ter hegemonia completa sobre suas hordas cibernéticas e não quer dividir atenção ou pactuar com possíveis concorrentes. Ele busca fidelizar os 30% do eleitorado, uma base em si mesma diversa, como apontou Marcos Nobre: “Nunca antes tinham confluído para uma única candidatura presidencial, como ocorreu com a do capitão reformado do Exército, as figuras do ‘lava-jatismo’, do antipetismo, do antissistema, do voto nulo, do abstencionismo, do conservadorismo de costumes, do desejo de ‘lei & ordem’.” O perfil virtual quer converter em likes e seguidores os votos recebidos pelo presidente no primeiro turno das eleições de 2018. Pretende com isso estabelecer contato direto com sua base social ampliada e servir como única fonte de informação, como único validador da verdade.
A tarefa é hercúlea. Ela implicaria arregimentar todas as direitas – a liberal, a tradicional e a conservadora – para uma extrema direita purista e sectária, submissa à visão de mundo de Bolsonaro e Olavo de Carvalho. Trata-se de uma verdadeira cruzada nas redes sociais contra plataformas formadoras de opinião da mesma base de eleitores, sobre as quais não tem controle – como observou Celso de Rocha Barros (“A queda”, piauí_150, março). Além de ter comprado briga com toda a imprensa tradicional, o presidente enfrenta veículos declaradamente de direita, como o site O Antagonista e a rádio Jovem Pan. Articulistas de direita, como Reinaldo Azevedo, Marco Antonio Villa ou Augusto Nunes, são alvos das milícias digitais do perfil virtual. No vídeo intitulado “Destruam Felipe Moura Brasil!!!”, Renan Santos, o mais preparado dos meninos do Movimento Brasil Livre (MBL), ironiza o processo de expurgos e perseguições feito pelos seguidores do capitão reformado contra personalidades de direita, como o próprio Santos e o MBL, o editor Carlos Andreazza, a jornalista Vera Magalhães e o Partido Novo, classificando todos, jocosamente, de “comunistas”. A conclusão de Renan é que para os radicais de extrema direita “não há caminho algum na direita se não houver concordância total e absoluta. Senão você será um grandissíssimo comunista”. O vídeo tem mais de 250 mil visualizações.
Em cem dias de governo, Bolsonaro não se deslocou para o que chamamos de direita bonapartista. Construir uma eventual direita desse tipo seria muito mais realista e factível do que a estratégia adotada até o momento por Bolsonaro. A direita bonapartista teria muito mais chances de atrair para si a direita conservadora evangélica, a direita liberal e as forças da direita tradicional (o antigo PFL), assim como uma parcela da extrema direita. Mas Bolsonaro simplesmente se recusa a fazer isso. Com o vácuo por ele criado, já existe quem queira ocupar esse lugar. Penso, por exemplo, no Movimento Brasil Livre, protagonista das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, que foi se radicalizando e caminhou na direção da extrema direita, mobilizando-se em peso pela eleição de Bolsonaro. Neste ano, entretanto, uma vez que alguns de seus membros agora ocupam cargos legislativos, a entidade reduziu seus flertes com Bolsonaro para se posicionar cada vez mais nesse terreno vago entre a direita tradicional e a extrema direita. O MBL continua apoiando o governo, mas vai construindo pouco a pouco uma narrativa de diferenciação importante.
Em janeiro, Kim Kataguiri, uma das principais lideranças do movimento, eleito deputado federal, divulgou um vídeo – intitulado “A culpa de Flávio Bolsonaro”, com mais de 1 milhão de visualizações – em que elogia a imprensa tradicional (com a qual o movimento brigou ferrenhamente nos últimos quatro anos), afirma não existir desculpa plausível no caso Fabrício Queiroz e pede a punição, inclusive com pena de prisão, para o filho do presidente. Em fevereiro e março, o distanciamento se ampliou, com a difusão pelo MBL de vídeos e textos críticos à forma de relacionamento do Executivo com o Congresso Nacional, à atuação de alguns ministrolls e a casos de corrupção.
Renan Santos reclamou do chanceler Ernesto Araújo e do ex-ministro Vélez, que ele definiu como “ideológicos”. Elogiou os ministros “pragmáticos” como Paulo Guedes (Economia), Tereza Cristina (Agricultura) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), fazendo votos para que Sergio Moro (Justiça) chegasse ao mesmo patamar destes. E cobrou do governo ações pragmáticas, com resultados políticos concretos, bem como uma relação saudável e republicana com o Congresso. Em outra peça, mais longa, de 16 minutos, criticou o vídeo comemorativo de 1964 veiculado pelo Planalto, fez sua exposição sobre os acontecimentos e concluiu o óbvio: João Goulart foi deposto por um golpe militar. Aproveitou para recordar as críticas à ditadura feitas por Carlos Lacerda, a quem chamou de “o maior nome da direita do Brasil”. Além disso, declarou apoio à reforma da Previdência, embora tenha criticado a proposta de aposentadoria dos militares.
Os pontos fracos de Bolsonaro são a falta de liderança política e a incapacidade técnica. Não à toa, o discurso do MBL está focado na falta de planejamento, qualidade operacional e execução de políticas públicas. Ao nomear um ministro para atender mais as necessidades do perfil virtual do que as da nação, Bolsonaro deixa claro como falta ao presidente o mínimo de capacidade executiva. Não haverá mágica que o perfil virtual possa fazer para manter fiel uma base tão ampla e diversa, se o presidente não oferecer ao país uma boa governança. Aquilo que parecia uma brecha vai ganhando contornos de avenida para aqueles que estão de olho na formação de um novo polo político de direita.
Ao normalizar a extrema direita e pautar os principais debates do país a partir dessa perspectiva, Bolsonaro contribui para o deslocamento do centro de gravidade da política. A extrema direita purista se torna direita, a direita mais contundente se torna centro, e o centro se torna esquerda. Esse deslocamento favorece a direita bonapartista, que se torna mais palatável a um eleitorado que antes certamente a rejeitaria – o eleitorado de centro-direita. Em resumo, o radicalismo de Bolsonaro contribui para dar aparência de moderação e pragmatismo a um grupo profundamente ideológico como o MBL. A fim de parecer razoável, não é preciso fazer concessões ao centro, mas apenas marcar a diferença com relação aos mais sectários: não endossar as loucuras e devaneios do núcleo duro do Planalto (“nazismo de esquerda”, “1964 não foi golpe” etc.) e cobrar um pouco de competência política e técnica. Desse modo, o MBL e congêneres podem disputar parte do eleitorado de Bolsonaro, mas também parte do eleitorado clássico do psdb, habilitando-se para dominar o campo das diversas direitas: liberal, conservadora, populista e extremista.
O inimigo dos bonapartistas não é a esquerda, e sim o centro. O MBL sabe disso e se mobilizou contra a nomeação de Ilona Szabó – uma das lideranças do Agora!, um movimento de renovação política nitidamente de centro – para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A hashtag #IlonaNão atingiu o primeiro lugar nos trending topics do Twitter em 27 de fevereiro último, e chamava a cientista social de “comunista” e “esquerdista”. Jogar qualquer formação de centro para a esquerda é estratégia para poder conquistar a direita liberal e a direita moderada.
O governador de São Paulo, João Doria, é, dentre todas as lideranças políticas, o mais bem-posicionado para nadar de braçada na avenida que Bolsonaro vai abrindo e que o mbl enuncia. Doria mantém ativo o vínculo com o discurso de extrema direita, que ajudou a elegê-lo. Em sua entrevista ao programa Roda Viva, em meados de abril, deu mostras disso. Defendeu a atuação brutal da Polícia Militar, ao mesmo tempo que condenou o armamento da população. Exibiu um antipetismo visceral e violento e também marcou sua diferença com relação a Bolsonaro, afirmando o óbvio ululante: houve um golpe militar em 1964, e o que se seguiu foi uma ditadura. De quebra, fez acenos ao centro, elogiando Fernando Henrique Cardoso. Sua atuação como governante reflete esse deslocamento: montou um secretariado com vários técnicos. Apesar de não ser um digital influencer como Bolsonaro, tem grande familiaridade com as redes e cerca de 5 milhões de seguidores nas três principais plataformas. Doria sabe manejar seu lado perfil virtual e seu lado governador.
Por enquanto, o jogo de Doria e do MBL tem sido apoiar o presidente de maneira crítica, mas já existe uma narrativa construída para abandonarem o barco, caso Paulo Guedes e/ou Sergio Moro saiam do governo – ou, ainda, se a reforma da Previdência não for aprovada. A oposição dessa nova direita tem muito mais chances de fazer o governo sangrar do que hoje são capazes a esquerda e o centro.
Se vivêssemos num mundo analógico, apostaria todas as minhas fichas na vitória da nova direita sobre o capitão reformado. Mas na era da hiperconectividade tudo pode acontecer – e não seria impossível que Bolsonaro inaugurasse com sucesso uma nova forma de governar, na qual a lógica de perfil virtual fosse mais importante que a de presidente.
MIGUEL LAGO
Miguel Lago é cientista político, cofundador da rede Meu Rio e diretor da ONG Nossas
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