Jair Bolsonaro é um fenômeno tecnopolítico. Ele é produto da
dinâmica das redes sociais, onde o brasileiro gasta boa parte do seu dia,
consumindo e compartilhando informações. O Brasil é a segunda nação a passar
mais tempo conectada, em média nove horas por dia. Não por acaso, o país foi de
certa forma pioneiro no uso da tecnologia em uma eleição, a ponto de invalidar
determinantes clássicos, como tempo de televisão, financiamento, estrutura
partidária, palanques estaduais ou memória eleitoral (experiência passada que
marcou o eleitorado). O candidato do PSL tinha míseros segundos, um partido
nanico, poucos recursos declarados, palanques frágeis e não havia governado
antes.
A tecnologia foi também determinante para eleger Donald Trump, sabemos disso.
Nesse caso, entretanto, outros fatores contribuíram para a vitória, como o fato
de o personagem ser uma celebridade televisiva e dispor da estrutura e da
capilaridade de um grande partido tradicional. Bolsonaro não tinha nada disso.
Ele precisou se construir nos últimos quatro anos como um digital influencer
poderoso para, em seguida, saltar à condição de candidato popular e vitorioso.
Agora, para manter-se no poder, Bolsonaro quer desafiar também outros
determinantes da ciência política – os da governabilidade.
Será possível governar sem negociar, pactuar ou respeitar as instituições? Será
possível se manter no poder recorrendo à sua capacidade extraordinária de
mobilização via redes sociais? Será que tudo o que foi determinante para
elegê-lo se torna agora um empecilho para poder governar?
A dimensão online foi fundamental para a vitória eleitoral, mas é na dimensão
offline que se governa. Como então conciliar o Bolsonaro vitorioso – o do
perfil nas redes sociais –, com o Bolsonaro empossado, presidente da República
– e que precisa governar? Manter-se constante e relevante nas redes sociais não
é algo que combina com a tarefa de governar um país atolado em múltiplas
crises. Para cada uma dessas atividades, são necessárias habilidades muito
diferentes, muitas vezes antagônicas. A chave do êxito do governo Bolsonaro
passa pelo equilíbrio entre a lógica do perfil virtual e a função de
presidente. Do contrário, ele deixará aberta uma avenida para a emergência de
uma oposição forte à direita.
Nos primeiros meses de governo ficou claro que a lógica do perfil nas redes
sociais está vencendo de goleada. Não à toa, pois ela explica o bolsonarismo em
todos os seus aspectos: o tipo de base social, os formatos de mobilização, a
formação ideológica, o perfil social de seus aliados. Tudo isso está
condicionado pelas novas formas de interação das redes sociais. Manter o perfil
ativo é fundamental para manter a base fiel conectada e motivada. Como explica
Marcos Nobre, em artigo publicado nesta revista (“A revolta conservadora”,
piauí_147, dezembro), o capitão reformado precisa do caos para poder governar,
pois sua estratégia é governar para “uma base social e eleitoral que não é
maioria, mas é grande o suficiente para sustentar um governo. Algo entre 30% e
40% do eleitorado. Tornar essa base fiel é fundamental para manter o poder”.
Vale complementar essa análise com os estudos de Paolo
Gerbaudo, professor do King’s College, de Londres, sobre populismo e redes
sociais. Segundo ele, a arquitetura das redes sociais – a maneira como são
desenhadas – propicia o desenvolvimento de lideranças populistas e de mensagens
sensacionalistas. A visualização da informação é prioritariamente definida pelo
número de interações que a publicação gerou nos primeiros minutos seguintes à
postagem. Ou seja, ela favorece o compartilhamento de conteúdo inflamável. Por
isso, muitas celebridades das redes são originalmente trolls: perfis que adotam
um comportamento que viola regras básicas de convivência. Um governante que
queira se manter “ultrarrelevante” nas redes sociais precisa gerar grande
número de reações às suas postagens.
Foi com o intuito de manter a capacidade de digital influencer que Bolsonaro
criou uma nova categoria de ministros: os ministrolls. Abraham Weintraub,
Damares Alves e Ernesto Araújo cumprem essa função, assim como outras figuras
paraministeriais, como Filipe Martins, Olavo de Carvalho, Carlos e Eduardo
Bolsonaro. Quanto mais barbaridades eles dizem, mais interações geram e maior é
a relevância cibernética do governo. A nomeação dos ministros ditos mais
“ideológicos” atende eficientemente às necessidades do perfil virtual, ao mesmo
tempo que compromete a execução de políticas públicas.
Donald Trump conseguiu equacionar o dilema entre as figuras do perfil virtual e
do presidente graças ao Partido Republicano, que ofereceu a ele quadros e
capacidade de governar. Como disse Marcos Nobre (“O caos como método”,
piauí_151, abril), aqui são as Forças Armadas que cumprem a função de vertebrar
o governo. O cientista político Sergio Fausto escreveu algo parecido nesta
revista (“O ponto a que chegamos” piauí_149, fevereiro), ao dizer que o governo
atual é composto por duas forças – a do “liberalismo econômico e da
racionalidade burocrático-militar”, ou seja, Paulo Guedes e os militares, de um
lado, e “o conservadorismo militante e não raro insensato”, de outro. A tensão
entre “olavetes” e militares, tão citada na mídia, seria, portanto, o reflexo
da tensão essencial entre o perfil das redes sociais e o presidente.
Os analistas argumentam que a capacidade de governar será conferida por essa
combinação de técnicos liberais e militares. Mas um olhar mais atento revela
que apenas as pastas da Agricultura, Infraestrutura e Saúde são comandadas por
ministros com alguma capacidade de ação e experiência na gestão pública.
Até mesmo na escolha dos nomes ditos “técnicos”, a lógica do perfil virtual
predomina sobre a do presidente. O principal nome do governo Bolsonaro é um
empresário bem-sucedido sem nenhuma experiência no setor público, mas que
manteve uma colaboração regular, como colunista, no jornal O Globo. O ministro
da Economia não foi escolhido por aquilo que fez como quadro técnico, mas por
sua capacidade de expressar e articular sua opinião.
Opiniões são importantes, mas para fazer política pública é preciso ação. Na era digital, contudo, a opinião predomina sobre a ação. Passamos a viver no reino das opiniões: todos têm alguma opinião formada sobre tudo e se sentem na obrigação de opinar sobre qualquer coisa. Esse fenômeno é consequência direta da hiperconectividade e, em particular, do modelo de negócios das empresas detentoras de redes sociais: a venda de dados de usuários para marketing. A fim de obter um perfil completo e apurado de cada usuário, é preciso estimulá-lo a revelar suas preferências sobre o maior número possível de temas. Ao opinar sobre tudo, do nazismo à Fórmula 1, o usuário contribui para a captura mais precisa de dados pelas empresas.
Com isso, tudo se tornou opinião e se confunde com ela, numa arena em que não existem hierarquias. A análise política de um especialista equivale à opinião de qualquer pessoa que nunca abriu um livro sobre política. Trata-se de uma perversão do direito à liberdade de expressão: muito embora cada um tenha o direito de opinar sobre o que quiser, e uma opinião não se sobreponha à outra, nem tudo é da ordem da opinião. Análises, pesquisas e evidências são de outra esfera. Não se questiona o resultado de uma pesquisa científica dizendo simplesmente que não se concorda com ela, mas analisando sua metodologia ou apresentando uma pesquisa sobre o mesmo tema que possa colocar em xeque as conclusões.
Na era do Facebook, entretanto, é como se isso não fosse necessário, pois basta concordar ou discordar, clicar like ou dislike. A ação, o trabalho, a especialidade, tudo perde lugar para a opinião. No reino da opinião não existe mais espaço para a autoridade. No perfil do papa no Twitter, internautas brasileiros se sentem no direito de contradizer as análises teológicas dele. As redes sociais tornam o dono de botequim um especialista em exegese bíblica do mesmo quilate que o chefe da Igreja Católica.
Opiniões são importantes, mas para fazer política pública é preciso ação. Na era digital, contudo, a opinião predomina sobre a ação. Passamos a viver no reino das opiniões: todos têm alguma opinião formada sobre tudo e se sentem na obrigação de opinar sobre qualquer coisa. Esse fenômeno é consequência direta da hiperconectividade e, em particular, do modelo de negócios das empresas detentoras de redes sociais: a venda de dados de usuários para marketing. A fim de obter um perfil completo e apurado de cada usuário, é preciso estimulá-lo a revelar suas preferências sobre o maior número possível de temas. Ao opinar sobre tudo, do nazismo à Fórmula 1, o usuário contribui para a captura mais precisa de dados pelas empresas.
Com isso, tudo se tornou opinião e se confunde com ela, numa arena em que não existem hierarquias. A análise política de um especialista equivale à opinião de qualquer pessoa que nunca abriu um livro sobre política. Trata-se de uma perversão do direito à liberdade de expressão: muito embora cada um tenha o direito de opinar sobre o que quiser, e uma opinião não se sobreponha à outra, nem tudo é da ordem da opinião. Análises, pesquisas e evidências são de outra esfera. Não se questiona o resultado de uma pesquisa científica dizendo simplesmente que não se concorda com ela, mas analisando sua metodologia ou apresentando uma pesquisa sobre o mesmo tema que possa colocar em xeque as conclusões.
Na era do Facebook, entretanto, é como se isso não fosse necessário, pois basta concordar ou discordar, clicar like ou dislike. A ação, o trabalho, a especialidade, tudo perde lugar para a opinião. No reino da opinião não existe mais espaço para a autoridade. No perfil do papa no Twitter, internautas brasileiros se sentem no direito de contradizer as análises teológicas dele. As redes sociais tornam o dono de botequim um especialista em exegese bíblica do mesmo quilate que o chefe da Igreja Católica.
Ao tornar equivalente a opinião de todas as pessoas, a rede social demonstra
sua extraordinária vocação anti-establishment. Os marcadores de certeza, os
filtros de qualidade, as certificações construídas ao longo de séculos pela
civilização são dissolvidos pelo algoritmo equalizador. Diplomas
universitários, pesquisas científicas, títulos honoríficos são substituídos por
opiniões, likes e seguidores. Abrese, portanto, uma extraordinária brecha para
a ascensão social de pessoas descartadas pelos filtros analógicos. Esse
potencial gerado pela dinâmica das redes vai de par com o que Marcos Nobre
escreveu sobre a base do candidato do PSL: “Uma revolta de quem frequenta a
igreja contra seus pastores, de militares de patentes mais baixas contra as
altas patentes, do baixo clero contra o alto clero do Congresso Nacional, de
pequenos comerciantes, produtores rurais e industriais contra suas entidades
representativas e contra os ‘campeões nacionais’, da base de primeira instância
do Judiciário contra suas instâncias superiores, do baixo clero do mercado
financeiro contra os porta-vozes dos bancões.”
Aqui, não se trata dos excluídos do sistema, dos pobres, mas dos incluídos que
perderam: os perdedores da meritocracia. Não daqueles que, por causa do racismo
e do classismo estruturais do Brasil, não puderam sequer sonhar em competir.
Mas daqueles que, em um país desigual, tinham o privilégio de poder competir, e
ainda assim perderam. É a essa franja da população que a nova extrema direita
se dirige. O americano Steve Bannon, estrategista dessa corrente ideológica,
resume bem esse sentimento quando define o capitalismo global como um regime
socialista para ricos e pobres. Segundo ele, os mais ricos e os mais pobres,
além de não pagarem imposto (o que é uma falácia, pelo menos no que diz
respeito aos mais pobres), são subsidiados pelo Estado, seja por meio de
políticas redistributivas (no caso dos pobres), seja via auxílio direto em caso
de falência (no dos ricos), segundo a máxima do too big to fail [grande demais
para quebrar]. Enquanto isso, a franja média, chamada por Bannon de little
people [povinho], que trabalha e paga seus impostos, não teria apoio algum do
Estado.
Os arautos dessa nova extrema direita por aqui também são os perdedores da meritocracia. Assim ocorreu com Olavo de Carvalho, que não conseguiu nem fazer o ensino médio, mas hoje é chamado de “filósofo”. E também com o ministroll Ernesto Araújo, cujo perfil publicado na piauí_151, abril (“O chanceler do regresso”) revela uma personalidade profundamente ressentida, disposta a mudar oitenta anos de uma política de Estado contínua para provar algum ponto a seus colegas. Não por acaso, a obsessão em lutar contra o “globalismo” – conceito inexistente na teoria política, mas onipresente nas redes de extrema direita – reflete o complexo de inferioridade dessas pessoas em relação aos vencedores da globalização e o seu ressentimento com o burguês cosmopolita, formado em uma boa universidade e com diálogo internacional. Nesse sentido, a trajetória de Bolsonaro – de militar de baixa patente que não progrediu na carreira, saiu do Exército, entrou para a política e se tornou chefe de todos os generais – serve de inspiração e encarna o sonho de quebra de hierarquia, de trampolim social e de fim da meritocracia.
Os arautos dessa nova extrema direita por aqui também são os perdedores da meritocracia. Assim ocorreu com Olavo de Carvalho, que não conseguiu nem fazer o ensino médio, mas hoje é chamado de “filósofo”. E também com o ministroll Ernesto Araújo, cujo perfil publicado na piauí_151, abril (“O chanceler do regresso”) revela uma personalidade profundamente ressentida, disposta a mudar oitenta anos de uma política de Estado contínua para provar algum ponto a seus colegas. Não por acaso, a obsessão em lutar contra o “globalismo” – conceito inexistente na teoria política, mas onipresente nas redes de extrema direita – reflete o complexo de inferioridade dessas pessoas em relação aos vencedores da globalização e o seu ressentimento com o burguês cosmopolita, formado em uma boa universidade e com diálogo internacional. Nesse sentido, a trajetória de Bolsonaro – de militar de baixa patente que não progrediu na carreira, saiu do Exército, entrou para a política e se tornou chefe de todos os generais – serve de inspiração e encarna o sonho de quebra de hierarquia, de trampolim social e de fim da meritocracia.
Se, de um lado, a hiperconectividade equaliza todos na
opinião e abre uma brecha para a ascensão social dos perdedores da
meritocracia, por outro molda a ideologia ainda em formação. Talvez por prezar
a honra da direita e do conservadorismo, eu não consiga concordar com os
analistas que qualificam o governo e o movimento que o elegeu “de direita” ou
“conservador”. O conservadorismo de verdade zela pelo fortalecimento da
autoridade, da hierarquia, da excelência e da tradição. E basta olhar
atentamente para as propostas políticas do bolsonarismo para ver que ele é
anticonservador.
Tomemos, por exemplo, o movimento Escola sem Partido, que parte da premissa de
que professores de esquerda estão doutrinando alunos em sala de aula. Para
combater essa pretensa prática, alunos foram incentivados a filmar seus
professores e a constrangê-los. Caso isso de fato ocorresse, a figura de
autoridade e a relação hierárquica entre mestre/aluno seria imediatamente
quebrada. Uma política de educação conservadora, ao contrário, estaria focada
em fortalecer a figura de autoridade do professor dentro da sala de aula,
eventualmente autorizando a palmada como forma de disciplina. Além disso, a
própria figura de Bolsonaro é anticonservadora: como seria possível um eleitor
conservador escolher um líder que não valoriza o sacramento do casamento, que
usa termos grosseiros como “comer gente” e, pior, se faz batizar evangélico,
sem renunciar previamente ao catolicismo? O discurso pretensamente conservador
encobre a quebra de hierarquia, a erosão das figuras de autoridade e a
utilização da máquina pública como catapulta social para os amigos do baixo
clero e os “alunos” de Olavo de Carvalho.
Se existe um governo anticonservador e anárquico é justamente esse. A ideologia
que ele prega não é exatamente a da defesa da ordem, da hierarquia, da
disciplina e da família: é a da defesa da violência. Sua aversão à legalização
do aborto não tem a ver com a proteção da vida, como ocorre com os
conservadores católicos, mas com a conservação da submissão da mulher ao homem.
Ele se opõe às cotas raciais não porque defenda a meritocracia e a disciplina –
mesmo porque no seu grupo político poucos passaram no vestibular de uma
universidade de qualidade –, mas porque insiste na manutenção da subalternidade
da população negra em relação à branca. Dessa violência, Bolsonaro deu mais uma
prova no final de abril, ao afirmar que “quem quiser vir aqui fazer sexo com
uma mulher, fique à vontade. Agora, [o Brasil] não pode ficar conhecido como
paraíso do mundo gay aqui dentro”. A frase não expressa uma defesa da família,
mas apenas a homofobia pura e simples. Se fosse um conservador, ele teria
condenado toda forma de turismo sexual. Ao contrário, faz apologia.
Tampouco acho que se possa chamar esse governo de “fascista”. O fascismo tinha
como base pilares racistas e foi o responsável pelas maiores barbaridades do
século XX. Mas até nele havia construção de uma ideia de sociedade – ideia
abominável, diga-se de passagem. No bolsonarismo, não há nem isso; trata-se de
esvaziar o fascismo de todo conteúdo inteligível e conservar apenas sua forma e
primitivismo: a violência contra a minoria.
Uma ideologia baseada na violência e na opressão reverbera no contexto da
hiperconectividade. A arquitetura das redes, como vimos, estimula as pessoas a se
expressarem sobre absolutamente tudo, e o conteúdo difundido aparecerá
prioritariamente para aqueles que tendem a concordar com elas. É dessa maneira
que a rede social se torna uma acumulação de câmaras de eco, de filter bubbles,
para usar a expressão do ativista político da internet Eli Pariser. Cada um tem
um perfil e nele pode se expressar livremente como se escrevesse para uma
coluna de jornal. Mas uma coluna cujos leitores praticamente só concordam e
aplaudem. Quanto mais agressivo o comentário, mais interações ele gera,
potencializando o seu alcance. Essa ideologia da violência pura, da violência
como fim e não como meio, está vinculada à hiperindividualização das redes
sociais, onde as pessoas colecionam “joinhas” e acreditam sempre ter razão. Se
há um problema no mundo, a culpa é do outro, sempre dele, nunca é minha. No
ensaio “Anotações sobre uma pichação” (piauí_139, abril 2018), João Moreira
Salles examinou uma característica atual do brasileiro, que é se eximir de
qualquer responsabilidade – característica que ganhou expressão sintética em um
grafite pintado nos muros da cidade do Rio que dizia: “Não fui eu.” Bruno
Carvalho, no artigo “Não foi você” (piauí_142, julho 2018), conectou a lógica
do “não fui eu” à ascensão de Bolsonaro.
A sociedade hiperconectada é parte fundamental do perfil
Bolsonaro: é daí que provêm argumentos, ideias, informações, apoios e alianças
dele. Por essa razão, Bolsonaro estará sempre condenado a priorizar o perfil,
em detrimento da função de presidente. E é nessa brecha – que o capitão
reformado não consegue tapar – que emerge gradualmente uma oposição latente mas
vigorosa ao seu governo.
Em outras partes do mundo, a ideologia da violência da hiperconectividade vem
funcionando de maneira mais sofisticada e inteligente, visando articular as
diferentes correntes de direita. O professor René Rémond, um dos maiores
estudiosos da direita francesa, identificou três famílias dentro desse campo
político: a direita legitimista e contrarrevolucionária (na origem, inimiga da
Revolução Francesa e defensora da restauração da monarquia; portanto, de perfil
conservador), a orleanista (na origem, partidária de uma monarquia
parlamentarista; ou seja, de perfil liberal) e a bonapartista (populista e
autoritária). As três correntes compuseram o partido de direita hoje chamado
Républicains. Rémond exclui de sua análise o partido Front National por não
considerar a extrema direita como parte do campo político das diversas
direitas.
A nova direita que emerge no mundo é personalista, autoritária, violenta, tem
forte grau de adesão popular, alguma capacidade de entrega em termos de
política pública, e é defensora das instituições no discurso. É uma direita
vigorosa, mas não revolucionária, como a extrema direita se propõe a ser. Está
à esquerda da extrema direita e à direita dos conservadores e liberais. Tomando
emprestado os termos de Rémond, seria uma direita bonapartista. Até mesmo
líderes de extrema direita estão estrategicamente tentando se deslocar para
essa nova direita. O aparecimento na Hungria de uma extrema direita ainda mais
radical que a do primeiro ministro do país, Viktor Orbán, permitiu que ele
deixasse de ser o exemplo máximo de intolerância. Nos Estados Unidos, ocorre o
mesmo fenômeno: movimentos como o alt-right (direita alternativa) e o dos
supremacistas brancos fazem Donald Trump parecer um pouco menos alucinado.
No artigo “Dois caminhos para a direita francesa”
(piauí_149, fevereiro), Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, faz uma
análise detalhada de todo o ecossistema conservador que surgiu na França nos
últimos cinco anos. As manifestações maciças, em 2012 e 2013, contra uma lei
que autorizava o casamento gay ressuscitaram a direita legitimista (conforme a
definição de Rémond), que, em seguida, se organizou em movimento político – o
Sens Commun [Senso Comum]. O movimento se tornaria determinante para que, nas
primárias do partido Républicains para as eleições presidenciais de 2017,
François Fillon, o candidato conservador, derrotasse de maneira surpreendente o
postulante liberal (Alain Juppé) e o liberal-populista (Nicolas Sarkozy).
Caso essa nova direita legitimista não eleja o próximo presidente francês, é
muito provável que alguém que se posicione entre ela e a extrema direita chegue
lá. Para Lilla, Marion Maréchal, ex-deputada e neta do polêmico político de
extrema direita Jean-Marie Le Pen, é a mais bem-posicionada para ocupar esse
lugar. A extrema direita na França é tradicionalmente antielitista e
anticlerical. Maréchal tem se aproximado dos católicos e é muito mais amável
com as elites tradicionais, diferentemente de sua tia, Marine Le Pen.
Já no Brasil, ninguém é mais sectário do que Bolsonaro,
sentado na extrema direita com seus filhos e o astrólogo Olavo de Carvalho. Sua
estratégia é extremamente arriscada e atende mais uma vez à lógica do perfil
virtual. O digital influencer Bolsonaro pretende ter hegemonia completa sobre
suas hordas cibernéticas e não quer dividir atenção ou pactuar com possíveis
concorrentes. Ele busca fidelizar os 30% do eleitorado, uma base em si mesma
diversa, como apontou Marcos Nobre: “Nunca antes tinham confluído para uma
única candidatura presidencial, como ocorreu com a do capitão reformado do
Exército, as figuras do ‘lava-jatismo’, do antipetismo, do antissistema, do
voto nulo, do abstencionismo, do conservadorismo de costumes, do desejo de ‘lei
& ordem’.” O perfil virtual quer converter em likes e seguidores os votos
recebidos pelo presidente no primeiro turno das eleições de 2018. Pretende com
isso estabelecer contato direto com sua base social ampliada e servir como
única fonte de informação, como único validador da verdade.
A tarefa é hercúlea. Ela implicaria arregimentar todas as direitas – a liberal,
a tradicional e a conservadora – para uma extrema direita purista e sectária,
submissa à visão de mundo de Bolsonaro e Olavo de Carvalho. Trata-se de uma
verdadeira cruzada nas redes sociais contra plataformas formadoras de opinião
da mesma base de eleitores, sobre as quais não tem controle – como observou
Celso de Rocha Barros (“A queda”, piauí_150, março). Além de ter comprado briga
com toda a imprensa tradicional, o presidente enfrenta veículos declaradamente
de direita, como o site O Antagonista e a rádio Jovem Pan. Articulistas de
direita, como Reinaldo Azevedo, Marco Antonio Villa ou Augusto Nunes, são alvos
das milícias digitais do perfil virtual. No vídeo intitulado “Destruam Felipe
Moura Brasil!!!”, Renan Santos, o mais preparado dos meninos do Movimento
Brasil Livre (MBL), ironiza o processo de expurgos e perseguições feito pelos
seguidores do capitão reformado contra personalidades de direita, como o
próprio Santos e o MBL, o editor Carlos Andreazza, a jornalista Vera Magalhães
e o Partido Novo, classificando todos, jocosamente, de “comunistas”. A
conclusão de Renan é que para os radicais de extrema direita “não há caminho
algum na direita se não houver concordância total e absoluta. Senão você será
um grandissíssimo comunista”. O vídeo tem mais de 250 mil visualizações.
Em cem dias de governo, Bolsonaro não se deslocou para o que chamamos de
direita bonapartista. Construir uma eventual direita desse tipo seria muito
mais realista e factível do que a estratégia adotada até o momento por
Bolsonaro. A direita bonapartista teria muito mais chances de atrair para si a
direita conservadora evangélica, a direita liberal e as forças da direita
tradicional (o antigo PFL), assim como uma parcela da extrema direita. Mas
Bolsonaro simplesmente se recusa a fazer isso. Com o vácuo por ele criado, já
existe quem queira ocupar esse lugar. Penso, por exemplo, no Movimento Brasil
Livre, protagonista das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, que
foi se radicalizando e caminhou na direção da extrema direita, mobilizando-se
em peso pela eleição de Bolsonaro. Neste ano, entretanto, uma vez que alguns de
seus membros agora ocupam cargos legislativos, a entidade reduziu seus flertes
com Bolsonaro para se posicionar cada vez mais nesse terreno vago entre a
direita tradicional e a extrema direita. O MBL continua apoiando o governo, mas
vai construindo pouco a pouco uma narrativa de diferenciação importante.
Em janeiro, Kim Kataguiri, uma das principais lideranças do movimento, eleito
deputado federal, divulgou um vídeo – intitulado “A culpa de Flávio Bolsonaro”,
com mais de 1 milhão de visualizações – em que elogia a imprensa tradicional
(com a qual o movimento brigou ferrenhamente nos últimos quatro anos), afirma
não existir desculpa plausível no caso Fabrício Queiroz e pede a punição,
inclusive com pena de prisão, para o filho do presidente. Em fevereiro e março,
o distanciamento se ampliou, com a difusão pelo MBL de vídeos e textos críticos
à forma de relacionamento do Executivo com o Congresso Nacional, à atuação de
alguns ministrolls e a casos de corrupção.
Renan Santos reclamou do chanceler Ernesto Araújo e do ex-ministro Vélez, que
ele definiu como “ideológicos”. Elogiou os ministros “pragmáticos” como Paulo
Guedes (Economia), Tereza Cristina (Agricultura) e Tarcísio Gomes de Freitas
(Infraestrutura), fazendo votos para que Sergio Moro (Justiça) chegasse ao
mesmo patamar destes. E cobrou do governo ações pragmáticas, com resultados
políticos concretos, bem como uma relação saudável e republicana com o
Congresso. Em outra peça, mais longa, de 16 minutos, criticou o vídeo
comemorativo de 1964 veiculado pelo Planalto, fez sua exposição sobre os
acontecimentos e concluiu o óbvio: João Goulart foi deposto por um golpe
militar. Aproveitou para recordar as críticas à ditadura feitas por Carlos
Lacerda, a quem chamou de “o maior nome da direita do Brasil”. Além disso,
declarou apoio à reforma da Previdência, embora tenha criticado a proposta de
aposentadoria dos militares.
Os pontos fracos de Bolsonaro são a falta de liderança política e a
incapacidade técnica. Não à toa, o discurso do MBL está focado na falta de
planejamento, qualidade operacional e execução de políticas públicas. Ao nomear
um ministro para atender mais as necessidades do perfil virtual do que as da
nação, Bolsonaro deixa claro como falta ao presidente o mínimo de capacidade
executiva. Não haverá mágica que o perfil virtual possa fazer para manter fiel
uma base tão ampla e diversa, se o presidente não oferecer ao país uma boa
governança. Aquilo que parecia uma brecha vai ganhando contornos de avenida
para aqueles que estão de olho na formação de um novo polo político de direita.
Ao normalizar a extrema direita e pautar os principais debates do país a partir
dessa perspectiva, Bolsonaro contribui para o deslocamento do centro de
gravidade da política. A extrema direita purista se torna direita, a direita
mais contundente se torna centro, e o centro se torna esquerda. Esse
deslocamento favorece a direita bonapartista, que se torna mais palatável a um
eleitorado que antes certamente a rejeitaria – o eleitorado de centro-direita.
Em resumo, o radicalismo de Bolsonaro contribui para dar aparência de moderação
e pragmatismo a um grupo profundamente ideológico como o MBL. A fim de parecer
razoável, não é preciso fazer concessões ao centro, mas apenas marcar a
diferença com relação aos mais sectários: não endossar as loucuras e devaneios
do núcleo duro do Planalto (“nazismo de esquerda”, “1964 não foi golpe” etc.) e
cobrar um pouco de competência política e técnica. Desse modo, o MBL e
congêneres podem disputar parte do eleitorado de Bolsonaro, mas também parte do
eleitorado clássico do psdb, habilitando-se para dominar o campo das diversas
direitas: liberal, conservadora, populista e extremista.
O inimigo dos bonapartistas não é a esquerda, e sim o centro. O MBL sabe disso
e se mobilizou contra a nomeação de Ilona Szabó – uma das lideranças do Agora!,
um movimento de renovação política nitidamente de centro – para o Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A hashtag #IlonaNão atingiu
o primeiro lugar nos trending topics do Twitter em 27 de fevereiro último, e
chamava a cientista social de “comunista” e “esquerdista”. Jogar qualquer
formação de centro para a esquerda é estratégia para poder conquistar a direita
liberal e a direita moderada.
O governador de São Paulo, João Doria, é, dentre todas as
lideranças políticas, o mais bem-posicionado para nadar de braçada na avenida
que Bolsonaro vai abrindo e que o mbl enuncia. Doria mantém ativo o vínculo com
o discurso de extrema direita, que ajudou a elegê-lo. Em sua entrevista ao
programa Roda Viva, em meados de abril, deu mostras disso. Defendeu a atuação
brutal da Polícia Militar, ao mesmo tempo que condenou o armamento da
população. Exibiu um antipetismo visceral e violento e também marcou sua diferença
com relação a Bolsonaro, afirmando o óbvio ululante: houve um golpe militar em
1964, e o que se seguiu foi uma ditadura. De quebra, fez acenos ao centro,
elogiando Fernando Henrique Cardoso. Sua atuação como governante reflete esse
deslocamento: montou um secretariado com vários técnicos. Apesar de não ser um
digital influencer como Bolsonaro, tem grande familiaridade com as redes e
cerca de 5 milhões de seguidores nas três principais plataformas. Doria sabe
manejar seu lado perfil virtual e seu lado governador.
Por enquanto, o jogo de Doria e do MBL tem sido apoiar o presidente de maneira
crítica, mas já existe uma narrativa construída para abandonarem o barco, caso
Paulo Guedes e/ou Sergio Moro saiam do governo – ou, ainda, se a reforma da
Previdência não for aprovada. A oposição dessa nova direita tem muito mais
chances de fazer o governo sangrar do que hoje são capazes a esquerda e o
centro.
Se vivêssemos num mundo analógico, apostaria todas as minhas fichas na vitória
da nova direita sobre o capitão reformado. Mas na era da hiperconectividade
tudo pode acontecer – e não seria impossível que Bolsonaro inaugurasse com
sucesso uma nova forma de governar, na qual a lógica de perfil virtual fosse
mais importante que a de presidente.
MIGUEL LAGO
Miguel Lago é cientista político, cofundador da rede Meu Rio
e diretor da ONG Nossas
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