Alexander Solzhenitsyn, com sua peculiar alma russa,
escreveu que “o desaparecimento das nações nos empobreceria tanto quanto se
todas as pessoas se tornassem iguais, com um único caráter e um só rosto. As
nações são a riqueza da humanidade, elas são suas diversas personalidades: a
menor delas tem suas cores particulares e representa uma faceta particular dos
desígnios de Deus”.
Essa gema literária nos estimula a procurar entender, ao
menos em parte, a onda nacionalista – não raramente xenófoba – que viceja no
mundo, especialmente nos países mais ricos.
A globalização econômica e cultural permite às populações
desfrutarem de um padrão de vida ascendente – e elevado, nos países
desenvolvidos –, mas também subtrai parte da soberania dos Estados nacionais e
reduz o raio de ação dos governos democraticamente eleitos. Mais ainda, a
hegemonia cultural que acompanha esse processo encolhe as diferenças e
particularidades que dão às pessoas o sentimento essencial de pertencimento.
A interconexão das economias nacionais e o avanço sem
precedentes da tecnologia têm um efeito dinamizador cuja potência e rapidez é
fácil de ilustrar. Nos anos 30, nos Estados Unidos, um rádio doméstico de
cabeceira, com seus chiados e interferências, custava o equivalente a US$ 670,
a preços de 2019. Isso é mais que o que se paga hoje por um smartphone
intermediário, cuja capacidade de processamento é maior que a do conjunto dos
computadores usados pela Nasa para levar o homem à Lua no final dos anos 60. E
a uma velocidade de processamento 120 milhões de vezes maior!
Mas nem só de pão – e celular – vive o homem. Observamos,
paralelamente a esse progresso, a persistência ou mesmo o aumento da
precarização das relações de trabalho e das desigualdades – não obstante a
disponibilidade mais elevada de bens e serviços. A maior fluidez das relações sociais
que decorrem de tal processo cria ansiedades que não têm sido devidamente
consideradas pelas elites políticas locais e internacionais. Em alguns casos,
chega a transparecer até um certo desprezo. Ficou célebre a infeliz referência
generalizante de Hillary Clinton aos eleitores de Trump como uma “cesta de
deploráveis”.
O historiador Victor Hanson abordou com veemência esse
estado de coisas – o divórcio cada vez mais litigioso entre o homem comum e “as
elites”: “Nós criamos uma riquíssima e influente casta senhorial que não se
sujeita às consequências negativas de suas próprias ideias”.
As eleições mais recentes na Europa e nos Estados Unidos
evidenciam que, por um lado, os partidos tradicionais e suas lideranças de
alguma maneira se afastaram dos problemas mais prementes do cidadão médio. Por
outro – e este é um componente paradoxal do processo –, a insatisfação do
cidadão comum se tornou politicamente mais organizada a partir da expansão
vertiginosa das redes sociais. As candidaturas de contestação aos partidos
tradicionais têm se valido da capilaridade dessas redes. As estruturas
políticas tradicionais e seus canais de difusão de ideias têm se tornado, se
não obsoletos, bem menos efetivos.
Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, o partido do
Brexit, liderado pelo eurocético Nigel Farage e fundado um mês antes, foi o
mais votado no Reino Unido, deixando para trás os conservadores e os
trabalhistas. As redes sociais criaram instantaneamente uma estrutura política
competitiva, circunstância que seria impensável sem a difusão quase ubíqua da
internet e do smartphone nos últimos anos. O impacto da vitória do partido do
Brexit foi tamanho que liquidou definitivamente com o governo de Theresa May e
suas tentativas de contemporização. E provavelmente levará Boris Johnson, um
entusiasta da saída do Reino Unido da União Europeia, à liderança dos
Conservadores e ao cargo de primeiro-ministro. O fantasma de uma vitória de
Nigel Farage nas próximas eleições está conduzindo o Reino Unido para o
desligamento definitivo.
Seria equivocado equiparar os movimentos “antielitistas” ao
nacionalismo militarista e expansionista que caracterizou, por exemplo, o
fascismo. No caso norte-americano, boa parte do eleitorado de Trump anseia pela
completa renúncia dos Estados Unidos ao papel de polícia do mundo. Esse
eleitorado é francamente isolacionista, em contraste com o chamado pensamento
neoconservador que, no campo da ideologia, deu as cartas no governo Bush e era
entusiasta de uma ação “evangelizadora” dos Estados Unidos, a qual,
supostamente, deveria levar a democracia aos quatro cantos do mundo.
Simplificando, pode-se dizer que o saldo foram a Guerra do Iraque e o aumento
da instabilidade no Oriente Médio. Diante desse vetor isolacionista, é curioso
e surpreendente que os Democratas venham tentando associar o governo Trump a
Putin, investindo numa espécie de “russofobia” belicosa e antiquada, mais
condizente com os tempos da guerra fria.
Na Europa, os partidos nacionalistas são francamente hostis
à União Europeia e, longe de uma pauta militarista ou expansionista, propõem a
desconstituição do bloco e a diluição do poder de Bruxelas. E são
intransigentes com a imigração. O rechaço à União Europeia não decorre
simplesmente de preocupações econômicas, mas do senso de perda de soberania e
do medo – um tanto irracional – de enfraquecimento da “identidade nacional”.
São esses temores que impulsionam líderes como Matteo Salvini e Marine Le Pen.
Os movimentos nacionalistas se colocam como defensores da identidade nacional e
da democracia ante uma elite internacional cosmopolita, sem rosto e
inimputável.
Por isso tudo, o sucesso da globalização dependerá de sua
capacidade de reconciliar avanços econômicos com os profundos elementos
culturais e políticos que moldaram as nações nos últimos cinco séculos.
José Serra é senador (PSDB-SP)
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