Cena 1. Dúvidas no lugar da fé. Ainda é cedo para saber se o
papa Francisco terá sido o Gorbachev do Vaticano. Ainda é cedo para saber se o
atual pontífice, em nome de purificá-lo, não vai ferir de morte o organismo que
o destino o encarregou de conduzir. O líder soviético de nome Mikhail Gorbachev
fez algo assim quando escancarou os males do stalinismo com suas glasnost e
perestroika. Inadvertidamente, ou mesmo de propósito, abriu chagas que mataram
de hemorragia o império comunista. Talvez Gorbachev estivesse certo. Talvez não
houvesse nada ali para preservar. Ou talvez estivesse errado. Não sabemos
ainda. Sabemos apenas que o legado de Lenin se estilhaçou no dia em que um
líder se prontificou a exorcizá-lo de seus defeitos mais atrozes. E quanto ao
Vaticano? Estará o papa Francisco entregue à mesma sina? Suas tentativas –
tíbias – de punir prelados pedófilos trará mais fraqueza do que força para a
sua igreja? Há católicos, deveras conservadores, que temem esse desfecho. Não o
declaram, porém. Ainda é cedo para saber. A incerteza cala fundo.
Cena 2. Dia desses, coisa de um mês atrás, o ministro da
Justiça, Sergio Moro, deu de comparecer ao um estádio de futebol em Brasília.
Na tribuna, ao lado do presidente da República, ficou de pé e vestiu uma camisa
do Flamengo sobre seu uniforme social de autoridade pública. Moro esboçou um
sorrisinho. Populares logo abaixo aplaudiram. Festejos futebolísticos. Por um
instante, ou mesmo dois, soou ali um fundo musical inaudível, mas real. Era
possível pressentir a voz de Jorge Benjor, uma voz antiga, ainda do tempo em
que Jorge Benjor era apenas Jorge Ben, interpretando a música País Tropical.
Mas há uma mudança de sentido. Agora, na letra, o verbo morar, de “moro num patropi”,
soa como sobrenome: “Moro num patropi”. A canção que celebrava a malandragem e
zombava da oficialidade se inverte por inteiro. O ministro e seu poder se
entronizam no estádio de futebol, enquanto os “camaradinhas” de Jorge Ben, sem
“jor”, talvez ouçam a canção com travos de desconfiança.
Cena 3. Agora é Maracanã. Maracanã na veia. Não faz nem duas
semanas. Final de jogo. Brasil campeão da Copa América. O chefe de Estado se
escarrapacha no gramado, segura a taça com as duas mãos, emoldurado pelo escrete
canarinho em peso, aos gritos, em júbilo. Repórteres presentes registraram ter
ouvido vozes, de jogadores ou de gente da comissão técnica, chamando o
governante de “mito”. No chocante e inaudito congraçamento entre o ludopédio
bilionário e o bonapartismo da era digital, algo de uma explicitude obscena, em
que o suor dos atletas manchava o terno do presidente, outra pérola do
cancioneiro ecoou – imaginariamente – e, de novo, com os sinais invertidos. Há
décadas e décadas Chico Buarque entoava o verso “minha cabeça rolado no
Maracanã” e ia por aí. “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/ Eu achei
que era ela puxando o cordão”. Naquelas eras, deveras priscas, tinha havido uma
campanha de rua, com passeatas e comícios, pedindo eleições diretas para presidente
da República. A cor símbolo da campanha era o amarelo.
Era amarelo pelas diretas. Era amarelo contra a ditadura
militar. O tempo passou, o tempo rolou pelas estribeiras e o amarelo mudou de
lado, veja você.
Cena 4. Evocações de outro naipe ao conservadorismo católico
supramencionado. Tradicionalistas apostólicos romanos se deixam empolgar com o
novo governo. Um ajeita o nó da gravata amarronzada e sedosa enquanto posa para
o fotógrafo do jornal. Paredes de lambri. Uma fagulha nos olhos. Ou mesmo duas.
Ele crê, pois crer é da essência do ser, que o poder estabelecido no Planalto
vai propulsionar os valores que contam: casamento, família, castidade, sem
aborto, sem socialismo, sem modernices. Em seu êxtase – meio místico, meio
político –, ele não nota que o trio elétrico do tele-evangelismo
neopentecostalíssimo atropela, como tanque de guerra, os umbrais de Pedro. O
neofascismo alegadamente cristão vai reduzir os templos católicos a peças de
museu – e vai glorificar as frenéticas marchas bíblico-carnavalescas e seus
pregadores trilhardários. Mirando a lente do fotógrafo, o conservador
apostólico romano tenta sorrir, mas não acerta.
Cena 5. Esquerda sem discurso. A trajetória do socialismo em
terras brasileiras descreve um arco prosódico, pontuado de tiros aqui e ali. A
esquerda fala. Sempre foi assim. Deu-se, contudo, esse mutismo, essa
consternação silente e acabrunhada. Qual a proposta dos partidos de esquerda
para a reforma da Previdência? Ninguém foi informado. Votaram contra por quê?
Ninguém entendeu. Mutismo não é de esquerda. Esquerda apática não é esquerda.
Esquerda deprimida não é revolucionária. Esquerda intimidada pela euforia do
boçalismo é a negação da negação da negação de Rosa Luxemburgo. Num país em que
só os boçalistas falam, só os boçalistas falam alto, a esquerda balbucia “Lula
livre”. Quem sabe ele saiba o que dizer.
Cena 6. Mais um presságio musical. Uma vez, os compositores
Diogo Mulero, conhecido por Palmeira, e Zairo Marinoso de Carvalho entregaram
ao cantor Francisco Petrônio o Baile da Saudade. Quando o século 20 ainda era
sinônimo de futurismo, a valsa embalou casais de cabelos tingidos em salões
que, só por isso, acabaram merecendo uma segunda chance sobre a Terra. A letra
idealizava os tempos idos: “Ai que saudade eu tenho dos bailes de outrora”. Os
brucutus que hoje governam também têm saudades de bailes de outrora. “America
great again”, diz Donald Trump. Great como antigamente. Vai aí mais um traço de
fascismo: a ideia fixa de ressuscitar um passado mítico que jamais existiu de
fato. Em seu Baile, Francisco Petrônio cantava que tinha “saudade das varandas
e dos coronéis”. O boçalismo que aí está tem nostalgia do coronelismo e já toma
providências para restaurá-lo, com as milícias e outras armas.
Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP
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