Roberto Romano, O Estado de S.Paulo
O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.
“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.
O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.
A disciplina define a honra do soldado, na ordem e na promoção. Esta última responde à capacidade de um militar para ser movido pela ordem. Em cada ordem obedecida fica nele um espinho. Se é soldado raso, não pode desfazer-se dos espinhos. Para sair desse estado espera a promoção. No plano superior ele se desfaz – nos outros – dos espinhos/ordens. O alto comando é o que menos ordens recebe, mas é submetido à máxima autoridade estatal. É absurdo para o soldado que chega ao posto de general imaginar que suas próprias ordens não serão acatadas. Se o chefe supremo tolera ataques contra generais (mesmo os que deixaram a ativa), a instituição desliza para a indisciplina. Em prazo curto as Forças Armadas sentem que a dissolução da autoridade as leva ao ponto zero. Perde-se o controle do monopólio da força pelo Estado. A subversão vinda de cima cumpre o seu papel desagregador.
No relativo à norma jurídica, o presidente assume atitude subversora. Ao proclamar como seu candidato ao STF um “terrível evangélico”, ele põe abaixo a disciplina republicana. Esta exige dos candidatos aos postos oficiais “os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (Constituição, artigo 37). Em nenhum desses itens lemos “crença religiosa”. Ao optar por um candidato pela sua fé, algo subjetivo, o presidente objetivamente subtrai de todos os não evangélicos o direito de exercer cargos públicos. A subversão em favor de seitas leva os Estados às guerras civis, ao ódio desagregador.
Subversão da ordem pública vem na escolha de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador. Os mandamentos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência são estraçalhados num só golpe. Como as Forças Armadas, o Itamaraty segue a disciplina em ritos e regras de acesso à carreira e à promoção. Quebrado o comando surge a anomia em setor estratégico do Estado. Aristóteles indica a família como um passo na constituição política. Com o presidente do Brasil, a sua família paira sobre o Estado, gerando subversão. Nem o regime Vargas e menos ainda o de 1964 ousaram tal façanha.
No caso dos generais, poucos apoios notamos a eles quando humilhados pelos fiéis do presidente, dirigidos por seu filho vereador. No STF a ordem é agredida em detrimento da cidadania. A proclamação do candidato evangélico foi efetivada em culto religioso no edifício do Legislativo. Uso contrário à lei, próprio de subversivos.
No Itamaraty o feito mostra que a disciplina desaparece. Recordemos: foram tão lenientes os senadores de Roma diante dos abusos subversivos de César, que eles foram eliminados sem respeito algum, apesar de suas alvas togas. O mesmo acontece com as nossas togas verde-oliva ou negras.
Para finalizar, o presidente subverte o pacto federativo ao dizer que certos dirigentes de Estado devem ser excluídos dos benefício s a que têm direito. Juízes, militares, governadores, universidades: instituições fundadas na hierarquia e na autoridade. Se quem deve preservar tais valores os corrói, surge o caos. E do caos ninguém retorna.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
quarta-feira, 31 de julho de 2019
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