“Olhe para você.
Você é livre. Nada nem ninguém é obrigado a te salvar, só você mesma. Plante a
sua própria terra. Você é moça e mulher, e as duas coisas têm sérias
limitações, mas você é uma pessoa também. Não deixe a Lenore ou um namoradinho
qualquer e com toda certeza nenhum médico do mal resolver quem você é. Isso é
escravidão. Em algum lugar aí dentro de você está essa pessoa livre de que eu
estou falando. Encontre-a e deixe que ela faça algum bem nesse mundo.”
Esse é um trecho do
livro “Voltar para Casa”, (Companhia das Letras, 136 págs., R$ 44,90)
de Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura e minha escritora preferida.
de Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura e minha escritora preferida.
Um conselho dado à
personagem Ycidra, uma mulher odiada pela avó Lenore, enganada pelo marido e
ansiosa para sair da pequena cidade em que nasceu. Um conselho que explicita o
drama de pessoas de grupos oprimidos: o desejo por liberdade e transcendência
em um mundo que impõe barreiras quase intransponíveis de acesso à
humanidade.
Fiquei refletindo
por horas numa tarde em casa. Na sala, vi a almofada de Nina
Simone. Na imagem ela está reflexiva, com o dedo indicador apoiando a sua
testa. Seu olhar distante, para o lado, levando-me a imaginar o que ela estaria
pensando quando foi retratada. Penso que ela viveu o conselho dado a Ycidra
mesmo o livro tendo sido publicado após sua morte.
Foi
uma mulher muito injustiçada, que sofreu consequências graves na carreira
por se posicionar politicamente com consciência racial. Uma história de
discriminação durante toda a vida, de contra-ataque aos seus posicionamentos
vindo de gravadoras e empresários, de esquecimento e violências dos seus
próximos durante as dificuldades, de agressões domésticas vindas do
companheiro, da genialidade fora de lugar e do sonho não realizado de uma
mulher brilhante que queria ser pianista clássica. Apesar disso, uma mulher
genial, cujas canções pulsam até hoje, deixando um legado de transformação na
música, sob forte custo emocional.
Lembro-me da Bienal
de Berlim, onde estive em 2018. No prédio principal, os visitantes encontravam
uma exposição de Dineo Bopape, artista sul-africana, sobre as consequências
destrutivas do colonialismo na sanidade das pessoas negras.
O exemplo
paradigmático era a apresentação de Nina no Festival de Montreal, em 1976, como
o retrato da genialidade atormentada psiquicamente pelo racismo. Entre
epifanias no piano e gritos com a plateia, percebia-se Nina totalmente abalada.
Ela está cantando a canção “Feelings” de uma maneira visceral. Em vários
momentos ela reclama com a plateia, reclama que eles não estão aplaudindo, mas
nos primeiros minutos de apresentação, ela diz: “Eu não acredito nas condições
que produzem uma situação que exigem uma canção como essa!”. O público reage
tímido, até que ela exige: “Oras, aplaudam pelo amor de Deus!”.
A primeira vez em
que assisti a essa apresentação, disponível em canais na internet, eu achei
linda. O modo como ela toca o piano com intensidade, a irritação com uma
plateia morna que não entendia sua complexidade e profundidade me tocou.
“Vamos atingir o
clímax.” Entendi que ela desejava a entrega. Assim que termina a apresentação,
ela se levanta e vai embora como quem entende que aquele público não a
merecia. Lembro ter visto centenas de vezes e me emocionado em todas
elas.
Mas após ver a
exposição de Bopape, um sentimento incômodo me tomou. Como eu não havia
percebido que ali, por trás de toda a genialidade, havia uma mulher cansada e
adoecida? Bopape me abriu os olhos. “Isn’t it a pity, Nina?”
Não é uma pena que
tenhamos que viver sérias limitações para sermos pessoas? Há quem não se dê
conta de como o racismo faz adoecer —dos traumas, discriminações e violências
passados de geração em geração, culminando numa vida de exclusão dos espaços—,
de como isso contribui para a tormenta psíquica.
No caso de mulheres
negras, que estão sob diversos vetores de opressão estrutural, o cenário é ainda
mais complexo.
Até hoje não assisti
ao documentário que fizeram sobre a vida de Nina Simone. Não faz jus a ela um
trabalho que a ponha no lugar da “louca raivosa”, em vez de se questionar o que
a fez enlouquecer.
Quem se entregou de
maneira tão profunda, mesmo com todas as imposições, merecia mais. Em vez
de “O
que Aconteceu, Miss Simone?”, o documentário poderia se chamar “Aquela que,
Apesar de Sérias Limitações, Tentou Ser uma Pessoa Livre”. Toni Morrison a
teria entendido.
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia
política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.
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