quarta-feira, 31 de julho de 2019

SENTIMENTOS PARA NINA SIMONE

Djamila Ribeiro, Folha de S.Paulo
“Olhe para você. Você é livre. Nada nem ninguém é obrigado a te salvar, só você mesma. Plante a sua própria terra. Você é moça e mulher, e as duas coisas têm sérias limitações, mas você é uma pessoa também. Não deixe a Lenore ou um namoradinho qualquer e com toda certeza nenhum médico do mal resolver quem você é. Isso é escravidão. Em algum lugar aí dentro de você está essa pessoa livre de que eu estou falando. Encontre-a e deixe que ela faça algum bem nesse mundo.”
Esse é um trecho do livro “Voltar para Casa”, (Companhia das Letras, 136 págs., R$ 44,90)
de Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura e minha escritora preferida.
Um conselho dado à personagem Ycidra, uma mulher odiada pela avó Lenore, enganada pelo marido e ansiosa para sair da pequena cidade em que nasceu. Um conselho que explicita o drama de pessoas de grupos oprimidos: o desejo por liberdade e transcendência em um mundo que impõe barreiras quase intransponíveis de acesso à humanidade. 
Fiquei refletindo por horas numa tarde em casa. Na sala, vi a almofada de Nina Simone. Na imagem ela está reflexiva, com o dedo indicador apoiando a sua testa. Seu olhar distante, para o lado, levando-me a imaginar o que ela estaria pensando quando foi retratada. Penso que ela viveu o conselho dado a Ycidra mesmo o livro tendo sido publicado após sua morte. 
Foi uma mulher muito injustiçada, que sofreu consequências graves na carreira por se posicionar politicamente com consciência racial. Uma história de discriminação durante toda a vida, de contra-ataque aos seus posicionamentos vindo de gravadoras e empresários, de esquecimento e violências dos seus próximos durante as dificuldades, de agressões domésticas vindas do companheiro, da genialidade fora de lugar e do sonho não realizado de uma mulher brilhante que queria ser pianista clássica. Apesar disso, uma mulher genial, cujas canções pulsam até hoje, deixando um legado de transformação na música, sob forte custo emocional.
Lembro-me da Bienal de Berlim, onde estive em 2018. No prédio principal, os visitantes encontravam uma exposição de Dineo Bopape, artista sul-africana, sobre as consequências destrutivas do colonialismo na sanidade das pessoas negras. 
O exemplo paradigmático era a apresentação de Nina no Festival de Montreal, em 1976, como o retrato da genialidade atormentada psiquicamente pelo racismo. Entre epifanias no piano e gritos com a plateia, percebia-se Nina totalmente abalada. Ela está cantando a canção “Feelings” de uma maneira visceral. Em vários momentos ela reclama com a plateia, reclama que eles não estão aplaudindo, mas nos primeiros minutos de apresentação, ela diz: “Eu não acredito nas condições que produzem uma situação que exigem uma canção como essa!”. O público reage tímido, até que ela exige: “Oras, aplaudam pelo amor de Deus!”. 
A primeira vez em que assisti a essa apresentação, disponível em canais na internet, eu achei linda. O modo como ela toca o piano com intensidade, a irritação com uma plateia morna que não entendia sua complexidade e profundidade me tocou. 
“Vamos atingir o clímax.” Entendi que ela desejava a entrega. Assim que termina a apresentação, ela se levanta e vai embora como quem entende que aquele público não a merecia. Lembro ter visto centenas de vezes e me emocionado em todas elas. 
Mas após ver a exposição de Bopape, um sentimento incômodo me tomou. Como eu não havia percebido que ali, por trás de toda a genialidade, havia uma mulher cansada e adoecida? Bopape me abriu os olhos. “Isn’t it a pity, Nina?”
Não é uma pena que tenhamos que viver sérias limitações para sermos pessoas? Há quem não se dê conta de como o racismo faz adoecer —dos traumas, discriminações e violências passados de geração em geração, culminando numa vida de exclusão dos espaços—, de como isso contribui para a tormenta psíquica. 
No caso de mulheres negras, que estão sob diversos vetores de opressão estrutural, o cenário é ainda mais complexo. 
Até hoje não assisti ao documentário que fizeram sobre a vida de Nina Simone. Não faz jus a ela um trabalho que a ponha no lugar da “louca raivosa”, em vez de se questionar o que a fez enlouquecer. 
Quem se entregou de maneira tão profunda, mesmo com todas as imposições, merecia mais. Em vez de “O que Aconteceu, Miss Simone?”, o documentário poderia se chamar “Aquela que, Apesar de Sérias Limitações, Tentou Ser uma Pessoa Livre”. Toni Morrison a teria entendido.
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais. 
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