Quando, em 13 de outubro, numa cerimônia do Vaticano,
o papa Francisco conferir o título de santa a quatro mulheres – entre elas, a
brasileira Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), a irmã Dulce –,
estará ajudando a reduzir o desequilíbrio de uma estatística desigual ao longo
dos séculos: a de mulheres canonizadas pela Igreja Católica. Levantamento
realizado pela piauí com base nos registros disponibilizados
pela Congregação das Causas do Santos, instância do Vaticano responsável pelos
processos de canonização, demonstra que apenas 21% dos santos oficialmente
aceitos pela Igreja são mulheres.
Para a pesquisa, foram consideradas as canonizações
ocorridas a partir de 1588. Foi nesse ano que o papa Sisto V (1521-1590)
determinou a criação da congregação, conferindo uniformidade criteriosa aos
processos de canonização. Desde então, foram reconhecidos como santos 835
homens e 226 mulheres de identidade conhecida – também constam dos arquivos
outros 812 santos de identidade desconhecida, homens e mulheres chamados de
“mártires de Otranto”, habitantes da cidade do Sul da Itália dizimados por
tropas otomanas em 14 de agosto de 1480 e acabaram canonizados em maio de 2013
pelo papa Francisco. Nos últimos séculos, ter a vida considerada “digna de
inspiração” pela Igreja Católica, instituição historicamente machista e
patriarcal, tem sido bem mais difícil para as mulheres.
“A Igreja Católica não é uma instituição fora do mundo.
Reflete as contradições, os problemas e o modo de pensar da sociedade onde está
inserida e da época da qual faz parte”, avalia o sociólogo Francisco Borba
Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). “Refletindo sobre esse cenário, eu diria até
que o número de santas mulheres dentro da história da Igreja é maior do que a
gente esperaria, já que estamos tratando de uma organização totalmente dominada
por homens, como foi a Igreja Católica ao longo dos séculos.”
A análise é corroborada pelo teólogo e filósofo Fernando
Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP. “A
instituição católica no último milênio reduziu as mulheres a funções
subalternas e, em muitos casos, à invisibilidade”, pontua. “Mesmo que a
catequese, o tesouro da fé, as tradições familiares estivessem em mãos,
corações e pensamentos das mães e mulheres, o reconhecimento público de
santidade e mesmo os processos passam pelo filtro do masculino. Em alguns casos
inclusive há marcas de misoginia entre bispos e clérigos, que impediram
mulheres de emergir como um exemplo de vida evangélica.”
Ribeiro Neto propõe uma analogia para outras áreas: na
história da humanidade, quantas personagens famosas mulheres ficaram
conhecidas, quando olhamos para o passado mais antigo? Quantas cientistas
mulheres? Quantas artistas mulheres estão representadas em museus de arte que
contemplam períodos anteriores ao século XX? “Essa proporção de santas
canonizadas pela Igreja Católica é semelhante, por exemplo, à de mulheres em
cargos parlamentares hoje em dia no mundo – mesmo com todas as políticas de
inclusão atuais”, compara o sociólogo. Dados recentes da União Interparlamentar
(IPU, sigla em inglês), organização sediada na Suíça, apontam que apenas 24,3%
dos postos em câmaras e parlamentos do mundo contemporâneo são ocupados por
pessoas do sexo feminino.
De qualquer forma, afirma, um erro não pode ser utilizado
para justificar o outro. “É importante reconhecer que, numa sociedade machista
e patriarcal, o número de mulheres reconhecidas como santas é muito menor do
que o de homens”, comenta Ribeiro Neto. “Mas isso é muito menos resultado de
uma seleção ou escolha dos padres e bispos que cuidam de tais processos na
Santa Sé do que resultado do problema da visibilidade da mulher na vida
pública.”
Ribeiro Neto lembra que o processo de canonização depende de
fatores sociais. No modelo instituído a partir de 1588, alguém só é elegível ao
livro dos santos depois de ter a vida analisada tanto em sua comunidade de
origem quanto, em seguida, por uma comissão instituída no Vaticano. Essa
investigação é aberta quando a Igreja – normalmente um padre ou um bispo da
região onde esse candidato a santo viveu – percebe que a história daquela
pessoa se tornou objeto de reconhecimento popular na localidade, geralmente em
decorrência de algum feito ou de sua personalidade e relevância em vida.
Considerando a estrutura do catolicismo, a hegemonia masculina
na Igreja já se apresenta a partir daí: quão mais conhecido e popular costuma
ser um padre da paróquia se comparado a um freira em seu claustro ou projeto
social? Uma instituição que só permite homens celebrando suas missas
automaticamente reduz a visibilidade das mulheres. Em seguida, o processo de
canonização exige a comprovação de milagres – tanto para o título de beato
quanto para o reconhecimento como santo. “Um homem ou uma mulher, para ser
tornado santo, tem de ser reconhecido como tal pela sociedade. Tem de haver um
processo no qual as pessoas rezam e pedem milagres para ele ou ela, e assim por
diante”, explica o sociólogo Ribeiro Neto. “Como em épocas passadas as mulheres
eram relegadas à margem da vida pública, mesmo que fossem muito boas era mais
difícil de que adquirissem reconhecimento da sociedade.”
Pesquisadora da Universidade de São Paulo, a historiadora
Maíra Rosin ressalta que o machismo está na formação histórica do cristianismo.
“Santos, apóstolos e a maior parte das pessoas que estão na Bíblia são homens.
Os protagonistas são homens”, exemplifica ela. “Quem são as mulheres? A
prostituta, Maria Madalena, que só depois é santificada. E Maria, a mãe de
Jesus, porque as mães sempre mereceram seu espaço – as demais mulheres, não.”
“As santas acabam aparecendo tardiamente na religião cristã. Porque as mulheres
não ocupavam papéis de destaque na sociedade”, contextualiza Rosin. A
historiadora Mary Del Priore, autora de História das Mulheres no Brasil,
corrobora: “Jesus não escolheu apóstolo mulher, embora as santas mulheres
Madalena e Betânia estivessem aos pés da cruz. Eram chamadas discípulas. As
santas escrituras são formais: não é permitido à mulher ensinar ou ter
autoridade sobre o homem. Ora, a Santa Madre Igreja é instituição fundada por homens
de viés patriarcal. Daí talvez ser lento o reconhecimento do papel das mulheres
no passado.”
Alguns pontificados foram mais atentos à santidade de
mulheres. A primeira figura feminina canonizada desde a formalização do
processo eclesiástico foi Santa Francisca Romana (1384-1440), religiosa
italiana fundadora da fraternidade Oblatas de Maria. Ela foi declarada santa em
9 de maio de 1608 pelo papa Paulo V (1552-1621). Durante os quinze anos à
frente da Igreja Católica, o sumo pontífice fez apenas dois santos – o que o
deixa bem, estatisticamente, em questões de gênero.
Clemente IX (1600-1669) também declarou santos um homem e
uma mulher – no caso, a freira carmelita Maria Madalena de Pazzi (1566-1607).
Inocêncio XII (1615-1700) foi o primeiro a canonizar mais pessoas do sexo
feminino do que masculino: duas santas e nenhum santo. Na sequência, Clemente
XI (1649-1721) manteve a primazia feminina: quatro a três. Os papas Clemente
XII (1652-1740) e Pio VII (1742-1823) fizeram meio a meio, respectivamente dois
e três para cada lado.
Altemeyer Júnior avalia que esses momentos correspondem ao
empenho de freiras e monjas de diversas congregações. “Com o passar do tempo, a
organização das mulheres religiosas no mundo adquiriu força pública
reconhecida, o que ajuda a, simbolicamente, promover a canonização da madre
fundadora ou de uma de suas abadessas ou religiosas”, comenta ele. “Isso se
torna uma ação eficaz.”
O papa Bento XV (1854-1922) foi o último cujo pontificado
teve uma preponderância de santas sobre santos: duas a um. Foi ele que, em
1920, inseriu no Martirológio Romano o nome de Joana d’Arc, a
francesa queimada viva como herege e feiticeira em 1431. Heroína, feiticeira
condenada à morte, cultuada por aqueles que a conheceram e, depois, pelos que
dela ouviram falar, Joana foi reabilitada depois da morte. Uma comissão no
papado de Calisto III (1378-1458) reconheceu a nulidade de seu julgamento.
Joana d’Arc tornou-se alvo da devoção popular e, em 1909, o papa Pio X
(1835-1914) a beatificou. Dona de uma biografia que transcende o catolicismo –
personagem de literatura, do cinema, figura popular e ícone do feminismo –,
Joana d’Arc integra o rol dos santos padroeiros da França.
De 1920 para cá, o predomínio masculino entre as “vidas
consideradas dignas de inspiração” segue longe de ser alterado, e nem a
emancipação feminina ao longo do século XX mudou muito essa conta. Nos três
últimos pontificados, as mulheres foram melhor representadas do que a média
histórica. Grande fazedor de santos, João Paulo II (1920-2005) canonizou 357
homens e 125 mulheres em seu longo papado de 26 anos. As mulheres representaram
26% do total, portanto. Seu sucessor, Bento XVI, inscreveu 26 homens e 19
mulheres no Martirológio Romano – 42% do sexo feminino. Na
avaliação da historiadora Rosin, merece destaque o aumento da
representatividade feminina entre os canonizados pelos últimos três
papados. “Desde os anos 1950 e 1960 a mulher passou a ter um destaque social
mais importante. A Igreja não tem como ignorar essa emancipação social da mulher”,
afirma a historiadora.
Observador atento dos movimentos políticos do Vaticano,
Altemeyer vê um estilo próprio de Bento XVI que pode justificar essa atenção às
mulheres santas. “Creio que podemos dizer que sua sensibilidade ao feminino
advém de sua criação, influenciado por sua mãe, Maria.” Entre as canonizadas
por Bento XVI, está uma figura importante para a história do feminismo: a monja
beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179), uma intelectual que trafegou por
áreas que vão da medicina à dramaturgia. “Certamente uma feminista muito antes
de Simone de Beauvoir”, pontua Altemeyer. “Ela inventou um idioma artificial
com alfabeto específico e letras distintas, que seria como código secreto para
comunicação das monjas na presença de estranho ou autoridades eclesiásticas
masculinas.” O sociólogo Ribeiro Neto acrescenta que a monja foi “um modelo de
feminista em uma época na qual as mulheres costumavam ter uma posição muito
subalterna”.
Com a canonização de quatro mulheres e um homem no
próximo outubro, o papa Francisco terá em seu pontificado 60 santos e 25
santas, levando as mulheres a responderem por 29% do total. Dentre os santos
brasileiros, madre Paulina (1865-1942) – nascida na Itália, mas que viveu e
deixou sua obra no país – era o único exemplo feminino. Foi canonizada em 2002,
por João Paulo II. Além da já anunciada irmã Dulce, há uma lista de mulheres
que despontam como fortes candidatas ao altar. Entre elas, a médica Zilda Arns
(1934-2010), a “santa de Baependi” Nhá Chica (1810-1895) e a religiosa
ítalo-brasileira Alberta Girardi (1921-2018).
Doutora em ciências da religião pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), professora do Museu de Arte Sacra de São Paulo
e integrante da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, a pesquisadora
Wilma Steagall De Tommaso diz que é preciso tempo para que a proporção entre
homens e mulheres seja mais equilibrada nos altares. “Em dois mil anos e com as
mudanças culturais e de mentalidade, houve progressivamente um maior
envolvimento do povo leigo, homens e mulheres”, contextualiza. De Tommaso
enfatiza que, a despeito da discrepância nas canonizações, as mulheres sempre
tiveram papel importante no cristianismo – desde o início, com Maria Madalena,
primeira testemunha da ressurreição de Cristo, pontua, citando a passagem do
Evangelho Segundo Mateus. “No início do cristianismo, só os mártires eram
santos. E houve mulheres martirizadas, como Santa Luzia, Santa Águeda, Santa
Cecília, e outras.”
Entre as mulheres canonizadas recentemente, De Tommaso
destacou a religiosa de origem albanesa Madre Teresa de Calcutá (1910-1997),
canonizada em 4 de setembro de 2016 pelo papa Francisco, e Santa Teresa
Benedita da Cruz, nome religioso da filósofa e teóloga alemã Edith Stein
(1891-1942), tornada santa em 11 de outubro de 1998, pelo papa João Paulo II.
“Estão entre as mais conhecidas, sem dúvida”, comenta a pesquisadora. De
Tommaso afirma que, com o avanço do papel da mulher na sociedade, esta
visibilidade também deve seguir se refletindo nas canonizações. “Desde o
início, os cristãos eram homens e mulheres, indistintamente. E a história da
Igreja destaca mulheres que fizeram a diferença como exemplo para a santidade”,
avalia.
Dentro do catolicismo, as correntes mais progressistas veem
como fundamental que o número de mulheres canonizadas cresça. “A revolução
feminista, emergente de forma pujante desde os anos 1950, é um sinal dos tempos
que a Igreja deve ouvir, acompanhar e assumir. Ficar atento ao fenômeno é a
pedra de toque da Igreja: saberá se converter e reconhecer a força da mulher?
Saberá mirar para as lutas e testemunhos de santidade no cotidiano das
mulheres?”, provoca Altemeyer. De Tommaso acrescenta: “A Igreja Católica é a
instituição mais antiga da Terra, brinco que é o CNPJ mais longevo que se conhece”,
comenta. “Não é uma organização que se moderniza, mas, como previsto no
Concílio Vaticano II, há o aggiornamento, ou seja, ela acompanha o
tempo com a inspiração do Espírito Santo.”
EDISON VEIGA É
jornalista e escritor, mora em Bled (Eslovênia)
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