Jair Bolsonaro e o PT desnudaram-se, quase simultaneamente,
em fiéis autorretratos. No Brasil, o presidente asqueroso festejou uma ditadura
do passado, comemorando o assassinato de Estado de Fernando Santa Cruz, pai do
presidente da OAB. Horas antes, em Caracas, na reunião do Foro de São Paulo,
representantes do partido de Lula festejaram uma ditadura do presente que já
tem, em Fernando Albán e no capitão Rafael Acosta, seus próprios Santa Cruz.
Tão diferentes, tão iguais: quando se olham no espelho, cada um vê, refletida,
a imagem do outro.
“O presidente da OAB declarou guerra à gestão Bolsonaro,
protegendo criminosos contra o governo. Assim como os terroristas comunistas
haviam declarado guerra aos governos militares. E não há guerra sem que haja
efeitos colaterais.” Na carta raivosa de um bolsonarista, emergem os signos de
uma lógica compartilhada: a política como guerra permanente, o impulso do
extermínio físico do “inimigo”.
Troque as senhas ocas de um discurso ritual —“terroristas comunistas”
por “agentes do imperialismo”, “governos militares” por “poder bolivariano”— e,
mágica!, agora quem fala é Mônica Valente, a representante oficial petista no
ato de solidariedade a Nicolás Maduro. Quando Bolsonaro ergue um brinde aos
torturadores do DOI-Codi, como ignorar o brinde petista aos seviciadores do
Sebin? Almas gêmeas: Bolsonaro inveja a tortura que, por um acidente da
história, não infligiu; o PT inveja a tortura que, por um acaso da geografia,
não aplicou.
A guerra pode ser interpretada como continuação da política
(Clausewitz), mas o inverso só é verdadeiro nas ditaduras. Nas democracias, o
pluralismo assenta-se na crença de que ninguém —nenhuma corrente política—
possui o monopólio da verdade ou da virtude. Daí, as convicções democráticas de
que a oposição cumpre papel positivo, apontando alternativas às ações do
governo, e de que a crítica veiculada pela imprensa ajuda a limitar o exercício
excessivo do poder pelas autoridades. Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina
o pluralismo —e o suprimiria, se pudesse.
Os populismos nascem no chão da democracia, pelo voto
popular, mas desencadeiam insurreições autoritárias que almejam destruí-la.
“Nós” contra “eles”: o “inimigo do povo”, na narrativa do PT, converte-se no
“inimigo da pátria”, na versão de Bolsonaro. Quem não recordou, ao ouvir
Bolsonaro sobre Glenn Greenwald, as palavras de Lula sobre Larry Rohter? De uma
pulsão exterminista à outra, giramos em círculos sem sair do lugar.
Pepe Mujica descobriu que o regime de Maduro “é uma ditadura,
nada além disso”. O raio esclarecedor tocou-o, finalmente, com a publicação do
relatório da ex-presidente chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU
para direitos humanos, que descreve as prisões arbitrárias, as torturas e os
assassinatos extrajudiciais cometidos sistematicamente na Venezuela. Mas, para
interditar a hipótese de repúdio diplomático uruguaio à tirania chavista, o
líder da facção dos ex-tupamaros na aliança governista acrescentou que ela, a
ditadura, “pertence a eles”, os venezuelanos.
À luz da democracia, o adendo tático de Mujica está errado.
As ditaduras, inclusive as “estrangeiras” e as “do passado”, pertencem a todos
nós. Isso é o que está escrito nas leis nacionais e nos tratados internacionais
de direitos humanos. Os corpos mortos, mutilados, de Albán e do capitão Acosta,
assim como o cadáver desaparecido de Fernando Santa Cruz e de tantos outros,
são parte de nós, da aventura humana no mundo. Hoje, no Brasil, são algo mais:
pertencem ao presente e demarcam uma encruzilhada civilizatória.
As celebrações paralelas do terror de Estado —a do PT, em
Caracas; a de Bolsonaro, em Brasília— explicitam projetos políticos simétricos.
Inimigos-irmãos, eles se merecem. Nós os merecemos?
Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue:
História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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