Dia sim, outro também, o meio ambiente tem sido um dos alvos
prediletos da verborragia de Jair Bolsonaro,
que parece se divertir deixando boa parte do mundo arrepiada com suas ideias —
exceto, é claro, a tropa radical de seguidores que enxerga em qualquer pessoa
dotada de alguma preocupação ecológica um comunista enrustido ou um inimigo do
progresso do Brasil. Implacável no discurso, o “Capitão Motosserra”, como ele
mesmo passou a se definir, vem distribuindo golpes contra o bom-senso, a
lógica e os interesses econômicos do país, que supostamente deveria preservar.
Para os que ousaram criticar sua ideia de transformar Angra dos Reis na “Cancún
brasileira”, por exemplo, o presidente disse que quem se importava com isso
eram “os veganos que comem só vegetais”. Sobre a fiscalização ambiental, já
falou em “segurar” multas ambientais e “fazer uma limpeza” no Ibama, o órgão de
controle no setor. Defrontado com evidências da aceleração do desmatamento da
Amazônia, como bom pupilo de Olavo de Carvalho, chamou os dados científicos de
mentirosos e ironizou as preocupações. No último dia 8, proferiu uma pérola
escatológica ao responder a um repórter como seria possível conciliar o
desenvolvimento econômico com a preservação do planeta: “É só fazer cocô dia
sim, dia não”, declarou.
Se ficassem apenas no campo da retórica, situações assim
teriam apenas o efeito de aumentar a extensa lista de declarações folclóricas
do presidente. O problema é que tais bravatas já se materializam em políticas
do governo. No caso de Angra dos Reis, iniciou-se um mapeamento para avaliar as
ações necessárias à criação da “Cancún brasileira”. A promessa de passar o
facão no Ibama também tem sido cumprida. De janeiro a abril deste ano, o número
de operações de fiscalização contra o desmatamento promovidas pelo órgão caiu
58% em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do
Observatório do Clima.
Nada disso, no entanto, repercutiu mais negativamente que o
episódio da demissão de Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe). Galvão foi o responsável pela produção de alertas e
divulgação de dados do sistema de monitoramento da Floresta Amazônica que
apontaram uma área desmatada 278% maior em julho de 2019 em comparação com o mesmo
mês de 2018. É uma diferença tão gritante que não permite questionamento sobre
o aumento do desmatamento da Amazônia. Indignado com a atitude, em sua opinião,
contrária aos interesses do Brasil, Bolsonaro atirou no mensageiro,
substituindo o renomado cientista pelo coronel Darcton Policarpo. Em suas
primeiras declarações como diretor interino do instituto, Policarpo afirmou que
o aquecimento global “não é minha praia”.
Delicada e tratada com toda a seriedade que o assunto
merece, a questão ambiental apavora a comunidade internacional. Na visão de
alguns analistas, a política atual de Bolsonaro para o setor pode transformar o
Brasil no novo inimigo ambiental do planeta (um título nada positivo). Até
mesmo a China, a atual vilã número 1, vai na direção contrária, pelo menos
tentando se comportar de forma mais responsável. Com o impulso das declarações
do presidente e o afrouxamento dos controles ambientais, o Brasil virou o novo
centro das preocupações no exterior. Em editorial recente, a revista inglesa The
Economistsugeriu que o desmatamento não autorizado da Amazônia poderia
prejudicar os fazendeiros brasileiros se levasse a um boicote estrangeiro de
produtos. A Foreign Policy, uma das mais respeitadas
publicações sobre relações internacionais no mundo, trouxe um artigo de Stephen
M. Walt, um professor da Harvard, cujo título original era o seguinte: “Quem
vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?”.
Exageros à parte, o boicote a produtos brasileiros é uma
ameaça real. Diplomatas do país relatam, em condição reservada, que já ouviram
o mesmo lobby sendo feito por diretores de ONGs em representações na Europa. A
questão chegou a ser debatida entre embaixadores do Velho Continente quando o
Brasil ameaçava deixar o Acordo do Clima de Paris antes do início do governo
Bolsonaro. A repercussão negativa nos bastidores fez com que o ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, adotasse postura mais comedida, indo na direção
contrária do próprio presidente e do chanceler Ernesto Araújo, que defendiam
expressamente o rompimento do pacto. O comportamento pode pôr em risco ainda o
esforço de duas décadas feito para desenhar o acordo de livre-comércio entre o
Mercosul e a União Europeia. O trabalho precisa ser ratificado pelo Poder
Legislativo de todos os países signatários, e o cumprimento de cláusulas
ambientais terá um peso grande.
Uma primeira sinalização dos riscos que o Brasil corre veio
nesta semana, com o congelamento de um financiamento de 155 milhões de reais
que a Alemanha destinava a projetos de preservação da Amazônia, em protesto
contra o avanço do desmatamento. Após Bolsonaro dizer que não precisava do
aporte alemão, a ministra do Meio Ambiente do país europeu, Svenja Schulze,
afirmou que a declaração era um indicativo de que sua Pasta havia atuado de forma
correta. Ricardo Salles entrou em campo para tentar reverter o mal-estar e
recuperar o investimento (veja a
entrevista). Na última quarta, 14, porém, o Capitão Motosserra
desferiu outro golpe, sugerindo que a chanceler alemã, Angela Merkel, utilize a
verba negada ao Brasil para “reflorestar a Alemanha”. Na quinta 15, foi a vez
de a Noruega congelar o repasse de 133 milhões de reais para o Fundo Amazônia.
Até aqui, os únicos que estão no lucro com o descaso
ambiental são os garimpeiros e madeireiros que atuam na ilegalidade. “Eles
estão se sentindo empoderados”, relatou a VEJA um dos agentes do Ibama. Em
abril, Bolsonaro desautorizou uma ação do órgão, que, conforme manda a lei,
incendiou dois caminhões e um trator de desmatadores ilegais na floresta de
Jamari, em Rondônia. “Não é para queimar nada”, afirmou o presidente,
acrescentando que mandaria abrir procedimento administrativo contra os
funcionários envolvidos. Em julho, fiscais foram cercados por parte da população
ligada às serrarias de Placas, no Pará, onde havia uma área de derrubada
ilegal. Uma ponte da Transamazônica chegou a ser incendiada com pneus, e os
funcionários tiveram de procurar abrigo em uma delegacia. No mesmo mês, Ricardo
Salles visitou a região de Espigão do Oeste, em Rondônia, dias após uma
ocorrência gravíssima. Homens encapuzados e armados pararam um caminhão-tanque
do Ibama, espancaram o motorista e atearam fogo ao veículo. “O que acontece
hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos de uma
política pública da produção de leis, regras, regulamentos, que nem sempre
guardam relação com o mundo real. O que estamos fazendo agora é justamente
aproximar a parte legal do mundo real”, declarou Salles na ocasião, aplaudido
pelos madeireiros.
Em meio à ação, os agentes do Ibama descobriram 10 000
metros quadrados de toras de madeira sem origem — ou seja, ilegais. O lote
encontra-se até hoje sob embargo do órgão. No último dia 8, o vice-prefeito da
cidade, Waltinho Lara (PSDB), que é ligado aos madeireiros locais, tentou
liberar o material. “Foi acordado com o ministro. Está parecendo uma afronta
muito grande”, disse ele a uma fiscal, referindo-se a Ricardo Salles, em uma
gravação obtida por VEJA. Como a agente não cedeu ao apelo, Lara elevou o tom:
“Pode acontecer algo pior, estou avisando”. Até a quinta 15, as madeiras
continuavam no mesmo lugar. Servidores do Ibama estão movendo um processo de
assédio moral contra o ministro do Meio Ambiente, acusando-o de criar um
retrocesso ambiental e dificultar o bom funcionamento da fiscalização. Salles
diz que tudo não passa de um complô dos funcionários que não querem trabalhar
direito. Com base em documentos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação,
uma reportagem publicada no dia 14 pelo jornal O Globo mostrou
que, desde que assumiu o posto, o ministro deu carona a dez deputados e
senadores da bancada ruralista em voos de aeronaves da FAB. Nenhum parlamentar
ambientalista recebeu o mesmo agrado no período. Entre os caronas de Salles, o
mais proeminente é o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente
Parlamentar da Agropecuária (não exatamente o lado mais moderno e iluminado do
agronegócio). Em janeiro, ele entregou ao ministro um texto com treze pontos de
interesse. Os principais eram projetos de lei para flexibilizar o licenciamento
e as multas ambientais. Um deles — a criação de núcleos de conciliação para
reduzir o número de infrações aplicadas — entrou em vigor nesta semana.
Não é de hoje que a política ambientalista do Brasil tem
problemas. Enquanto se faz vista grossa a ações de madeireiros e garimpeiros,
há um cipoal burocrático que dificulta a vida de quem tem a intenção de
produzir legalmente ou aposta no crescimento do país. Não raro, importantes
obras de infraestrutura ficam paradas para que os ambientalistas decidam o que
fazer com espécies raras encontradas no meio do caminho. A questão é que nem
todos os casos de defesa do meio ambiente são exageros de “esquerdistas”. Em
muitas situações, as acusações de agressão também exageram na histeria. No mês
passado, por exemplo, o Brasil foi colocado nas cordas novamente, pois teria
permitido que garimpeiros invadissem uma reserva indígena em Roraima e
assassinassem um cacique. Como de hábito, o caso ganhou rapidamente manchetes
internacionais. Parecia uma consequência lógica da política de Bolsonaro. O
presidente já manifestou a intenção de abrir esses territórios à exploração de
mineradoras internacionais para criar “mini-Serras Peladas”. Ocorre que, até
agora, não se sabe exatamente a causa da morte do cacique. A investigação
também não conseguiu encontrar vestígios de invasores. O que se sabe, como
alertou o colunista Elio Gaspari em artigo em O Globo e
na Folha de S.Paulo, é que nenhuma mineradora internacional
colocará dinheiro no Brasil se sonhar com uma manifestação de índios em frente
a sua mina. As grandes corporações, que obedecem às leis de compliance de
organismos e fundos internacionais (dos quais recebem recursos), não arriscam
sua reputação — e investimentos — em situações dessa natureza.
Espremidos entre essas posições radicais, os produtores
responsáveis do agronegócio começam a se preocupar seriamente com os prejuízos
que podem aparecer no campo. “Imagine o que pensa o sujeito que mora em Nova
York, acorda no domingo de manhã e vê uma foto na capa do jornal sobre a
Amazônia pegando fogo. É um choque tremendo”, afirma Roberto Brant, presidente
do Instituto CNA, braço da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). Aos
poucos, começam a surgir sinais do setor para se descolar do radicalismo. A
Marfrig, gigante do mercado de proteína animal, tem veiculado anúncios em que
se diz preocupada com a preservação da floresta e que rechaça fornecedores que
não respeitam áreas protegidas. Presidente da Suzano, a maior produtora de
celulose do mundo, Walter Schalka foi aplaudido em um evento nesta semana ao
dizer que o empresariado precisa aumentar a voz e não permitir o desmatamento
da Amazônia.
São tentativas de evitar que a postura do governo federal
destrua a imagem positiva que o setor construiu ao longo dos últimos quinze
anos no exterior. O respeito à floresta, o uso intensivo de tecnologia e o
aprimoramento das técnicas elevaram substancialmente a produtividade nos últimos
quarenta anos — seu crescimento foi de 412% no período, enquanto a área
plantada aumentou apenas 68%. O compromisso com práticas de boa conduta
ambiental também evoluiu. Uma das iniciativas foi a formação da Coalizão Brasil
Clima, Florestas e Agricultura, que estabelece uma parceria do setor privado
com entidades do terceiro setor para garantir o cumprimento do Código
Florestal, sobretudo no que diz respeito ao começo da execução dos programas de
recuperação ambiental previstos desde a aprovação da lei, em 2012. “Qualquer
país que se afaste do compromisso de um meio ambiente saudável estará dando um
tiro no pé”, afirma Carlos Nobre, pesquisador do IEA-USP.
Tal raciocínio baseia-se fundamentalmente na questão
econômica. Estudos conduzidos por Bernardo Strassburg, do Instituto
Internacional para Sustentabilidade, mostram que as áreas de conservação geram
lucro consideravelmente maior do que se fossem aproveitadas como terras de
plantio ou pasto. De acordo com os cálculos, cada hectare preservado da Amazônia
garante 3 500 reais por ano. Se o mesmo terreno virar pasto, o valor cairá para
uma faixa entre 60 e 100 reais. A conta é baseada nos serviços ecossistêmicos
que as áreas prestam à própria sociedade brasileira, como o fornecimento de
água, a polinização e as capacidades do solo preservado. “Não adianta se fechar
num casulo e brigar com os números”, alerta Brant, da CNA. “A preocupação
mundial com a Amazônia existe, e não vamos poder calar isso. Temos de agir
diante do que estamos vendo.”
A ação precisa ser mesmo imediata, pois, em um piscar de
olhos, os tratores abrem caminho de forma ilegal. É o caso de uma área de quase
500 hectares (5 quilômetros quadrados) em Rio Sono, no Tocantins, que foi
desmatada sem autorização entre janeiro e março deste ano. A região da cidade,
caracterizada pelo cerrado, está localizada nas cercanias do Parque do Jalapão
e era considerada uma das mais bem preservadas de todo o estado. Imagens de
satélite mostram que a área registrou um dos maiores alertas consolidados neste
ano pela plataforma MapBiomas, que cruza dados do Deter, o sistema de
monitoramento utilizado pelo Inpe, com informações fundiárias e de
fiscalização. “Historicamente essa região apresentava pouco desmatamento, mas
parece estar despontando como uma nova fronteira”, diz a diretora de ciência do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar. Pela análise
das imagens, captadas em quatro propriedades, Alencar afirma que a vegetação
foi convertida em uma área para o agronegócio, mas que ainda não ocorreu
plantio no local. “Pelo tipo, parece ser soja”, explica. VEJA mostrou as
imagens a outro especialista na região, que, em anonimato, chamou atenção para
as leiras de limpeza características de plantações de soja. No município, há
aumento na procura de terras para o cultivo de grãos. Os preços baixos, de
15 000 a 18 000 reais por alqueire, têm atraído produtores de fora. Enquanto
poucos vão lucrar, o Brasil inteiro sai perdendo. Está na hora de o governo
escolher o lado certo nessa luta — o da racionalidade.
Colaborou Leonardo Lellis
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648
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