Em seu discurso na ONU, Bolsonaro foi ele mesmo. Em tom
quase belicoso confirmou, com orgulho, os desacertos das suas políticas
internas e externas. Mais um constrangimento que se junta à lista que marca sua
presidência. A lista é longa e ampla nos temas, do desrespeito aos direitos
humanos à negação da ciência, o festival é assustador. A começar pelo pouco
apreço à vida dos seus “inimigos” – dos esquerdistas aos presos comuns –,
refletido nas suas homenagens a ditadores e torturadores, e o aplauso à degola
em presídios.
Bolsonaro transforma em inimigos todos que divergem de suas
convicções. Há limitação à liberdade de expressão, abandono do compromisso com
um estado laico e demonização da mídia, nacional e internacional. Revela enorme
preconceito com sua obsessão com homossexualidade e questões de gênero. Na
cultura, ele ignora artistas reconhecidos, como fez com o prêmio Camões dado a
Chico Buarque, ou na indiferença com a morte de João Gilberto. Como o exemplo
vem de cima, o diretor da Funarte se sentiu à vontade para ofender Fernanda
Montenegro. Na sua visão, os comunistas estão por todos os lados, crescendo de
forma inversamente proporcional à piora da avaliação do governo.
O presidente vai radicalizando no discurso autoritário, se
recolhendo ao grupo que, quase religiosamente, ainda o apoia. Aos amigos, tudo.
Cargos são distribuídos sem critério além da fidelidade absoluta, gerando o que
se vê na condução dos Ministérios da Educação, Relações Exteriores e Meio
Ambiente. Para a família não há limites. A ocupação do governo com pautas
pessoais é evidente. A intervenção nos órgãos de fiscalização, como Coaf,
Receita e PGR, ou a tentativa de afastar o diretor-geral da Polícia Federal,
foram feitas quando tais instituições chegaram próximas dos seus. Não
enrubesceu ao indicar o filho como embaixador, apesar do seu despreparo,
confirmado pelas rotineiras postagens nas redes sociais.
O terraplanismo domina ações públicas implementadas com base
em achismos. Bolsonaro acaba, numa canetada, com anos de experiência acumulada
em diversas áreas, como o uso da cadeirinha para crianças nos carros e os
ataques ao Inpe. E o Brasil vai virando piada, isolado e retirado dos debates
mais relevantes na economia mundial, do acordo UE-Mercosul à Cúpula do Clima na
ONU. Seu discurso reforçou esse caminho.
O obscurantismo das ideias do presidente poderia ser apenas
tema de paródias, se ele fosse uma rainha da Inglaterra. O tratamento
dispensado a quem dele discorda é grave. Ameaças explícitas ou veladas levam à
autocensura em diversas instituições, consequência do um instinto de
preservação, ou covardia, de alguns funcionários públicos. Ninguém escapa, nem
mesmo o alto escalão ministerial, como mostra a passividade dos ministros Moro
e Guedes às intervenções nas suas áreas. Essa censura silenciosa que afeta a
Receita Federal ou a cultura, em tão pouco tempo de governo, é um retrocesso
democrático claro. Calar a divergência, a crítica, o debate é o caminho para o
autoritarismo.
Há quem ainda argumente que uma suposta agenda econômica
liberal compense tudo isso. Esse discurso não faz sentido algum. A economia vai
mal, com crescimento medíocre e desemprego elevado. O Executivo está confuso e
inoperante. A reforma da Previdência só andou porque a Câmara assumiu o
protagonismo, como vem fazendo com a reforma tributária.
A abertura comercial não veio e se resume a concessões de
ex-tarifários, regime em que a redução de tarifas se aplica a bens sem produção
nacional, e é continuidade de uma política que até Dilma praticava. A
privatização não existe para além do anúncio de uma lista tímida de empresas. A
reforma do Estado até o momento é um conjunto de ideias colocadas de forma
desorganizada na mídia. O novo pacto federativo é um mistério a ser desvendado.
Tendo entregue bem menos do que prometeu, nem mesmo Guedes
está protegido dos humores de Bolsonaro, que anda impaciente com a falta de
recursos para investir. Foi obrigado a demitir Marcos Cintra por conta da CPMF,
tributo de seu gosto e que, aliás, continua defendendo. As promessas já não
encontram o mesmo eco na sociedade. Como o menino pastor que gritava lobo, a
credibilidade vai sendo perdida.
Ainda que a economia estivesse indo de vento em popa, e uma
agenda verdadeiramente liberal estivesse em curso, nada justifica ignorar os
arroubos autoritários de Bolsonaro. Sem democracia não há liberalismo, que é
muito mais que uma receita econômica. Não existe a separação entre economia e o
resto. O chamado milagre econômico dos anos militares, que terminou com
hiperinflação e a pior distribuição de renda do mundo, não apaga as
monstruosidades cometidas, nem justifica o AI-5, como querem alguns.
*Economista e advogada
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