quinta-feira, 28 de novembro de 2019

FOGO NA CASA PARA ASSAR O LEITÃO

José Serra, O Estado de S.Paulo
O governo apresentou propostas de emenda à Constituição (PECs) para atacar o desequilíbrio das contas públicas. Uma delas prevê a extinção dos chamados fundos públicos, que geralmente contam com receita carimbada para financiar determinados gastos. Há algumas ineficiências nessa matéria, mas virar a mesa não parece ser o caminho mais sensato. Em meio à estagnação da economia brasileira, o papel do Estado é central e decisivo.
Seguramente, há fundos desnecessários. Alguns deles se transformaram em feudos controlados por grupos que se acham donos de fatias do orçamento público. Contudo existem fundos importantes para a sociedade e para a economia, que muitas vezes não estão associados a vinculações orçamentárias. Na verdade, são instrumentos para canalizar recursos para parcerias público-privadas (PPPs), exportações e agronegócio, dentre outras áreas.
É preciso avaliar caso a caso antes de sacar recursos desses fundos, como pretende o governo. Alega-se que o saldo acumulado seria utilizado para pagar dívida pública. No entanto, esses pagamentos representariam, em última instância, aumento do dinheiro em circulação na economia. O Banco Central (BC), por sua vez, teria de enxugar esse possível excesso de liquidez com títulos – as tais operações compromissadas. No fim das contas, a queda inicial da dívida seria neutralizada por esse aumento das operações do BC. Elas por elas.
A OCDE recomendou aos líderes europeus ações para aumentar os investimentos públicos, com vista a reverter a desaceleração econômica na região. Na Europa, o Plano Junker segue essa diretriz. Seu objetivo é garantir assistência técnica e recursos para estruturar projetos de investimento. Um dos pilares do plano é o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, criado em 2015 para prover recursos nas áreas de concessões e PPPs.
A ideia desse fundo europeu é simples: atrair as instituições financeiras para projetos essenciais ofertando garantias com dinheiro do orçamento da União Europeia. Em tempos de taxas de juros negativas e de escassez dos recursos públicos, é uma saída inteligente. As garantias ajudam a mitigar os riscos associados a financiamentos de projetos com potencial para elevar as taxas de crescimento econômico. Assim, recupera-se a confiança e são estimulados os investimentos, cuja míngua aprofundou a crise por lá.
Para ter claro, o fundo europeu apoia investimentos estratégicos nas áreas de infraestrutura, eficiência energética, agricultura, educação, saúde e microempresas. O fundo já pôs à disposição ¤ 21 bilhões somente para garantir projetos de infraestrutura. Destes, ¤ 16 bilhões vieram do orçamento europeu e ¤ 5 bilhões, do Banco Europeu. Esses recursos foram suficientes para garantir investimentos privados no valor de ¤ 315 bilhões. Até o mais liberal dos economistas vai defender a ideia de que projetos com externalidades positivas elevadas devem ser apoiados com dinheiro público. A dose faz o veneno.
Aqui, como lá, também cabem medidas dessa natureza. Mas as ações recentemente anunciadas pelo governo parecem seguir rumo diferente. A PEC dos fundos públicos pretende reduzir a zero o funding público para investimentos, propondo até mesmo o fim de fundos que oferecem garantias nas operações de financiamento às exportações. Os problemas que existem nas vinculações, nos fundos e nas despesas obrigatórias precisam ser discutidos com clareza e cautela. A rigidez orçamentária é elevada, mas não será desfeita facilmente.
A proposta do governo é genérica, mas tem erros. Compreenda-se o contexto em que surgiu. O Orçamento enviado pelo governo ao Congresso contém apenas R$ 19 bilhões de investimentos para 2020. É o menor patamar da História recente, reflexo do avanço dos gastos obrigatórios e da queda de receitas. Sem crescimento econômico e controle adequado da despesa pública, segue-se à espera do ajuste fiscal para valer.
Uma radiografia dos gastos obrigatórios revela que 93% correspondem a gastos sociais e folha de pessoal – 69% e 24%, respectivamente. Metade das despesas com servidores refere-se a aposentadorias, que não podem ser reduzidas. Dos que estão na ativa, boa parte atua em áreas sensíveis, como defesa nacional, segurança, educação e saúde. Por isso a contenção do gasto com pessoal precisa ser feita a partir de um diagnóstico adequado e minucioso do serviço público. É necessário um rearranjo profundo das despesas obrigatórias.
Enquanto isso não é feito, os recursos para investimentos públicos ou para ofertar garantias em investimentos privados de alto risco diminuem dramaticamente. Acabar com todos os fundos públicos numa canetada aceleraria esse processo de desmonte do Estado brasileiro. A crença é que o mercado poderia, sozinho, resolver a questão do financiamento do desenvolvimento econômico nacional. Infelizmente, não pode.
A escassez de recursos públicos é um dado da realidade. O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço. A solução passa por adotar uma estratégia de contenção de despesas com base em revisões periódicas dos gastos públicos (spending reviews, em inglês), como já foi proposto em projeto de lei aprovado no Senado em 2017. A partir da elaboração de cenários econômicos e fiscais, calcularíamos o espaço orçamentário prospectivo e decidiríamos como distribuí-lo entre as diferentes prioridades do País. O futuro seria menos turvo. A alocação de dinheiro público, mais racional.
O ajuste fiscal linear, quase sem pensar, é temerário. As ineficiências existentes no processo orçamentário e na distribuição de recursos públicos precisam ser digeridas primeiro, para depois serem devidamente enfrentadas. Não é tarefa para resolver com propostas apressadas de alterações constitucionais. Menos ainda quando desacompanhadas de diagnóstico detalhado. Acabar com todos os fundos públicos – até mesmo os que funcionam bem – seria como botar fogo na casa para assar o leitão.
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