Leo Steinberg foi um grande crítico e historiador de arte
americano. Em 1983, ele publicou um livro que fez barulho, “The Sexuality of
Christ in Renaissance Art and in Modern Oblivion” (Random House) —a sexualidade
de Cristo na arte da Renascença e no esquecimento moderno.
Steinberg mostrava que havia, na arte renascentista, uma
certa ostentação (se não uma hipertrofia) dos genitais tanto de Jesus bebê
quanto de Jesus
adulto, no seu suplício.
Ele explicava que esse acento sobre os genitais de Cristo
tinha uma motivação teológica no quadro do debate que discutia, na época, a
encarnação.
Mostrar o sexo de Jesus era, segundo Steinberg, um jeito de
afirmar que ele fora, do nascimento até o fim, tão homem quanto qualquer homem,
se não mais.
Pensei, aliás, no livro de Steinberg alguns anos atrás,
quando, no pavilhão italiano da Bienal de Arte de Veneza, esbarrei nos genitais
imponentes de um crucifixo.
É provável que, no debate renascentista, o sexo
avantajado de Cristo também servisse para dizer que, se ele não se permitiu
paixões carnais, isso foi fruto de grande esforço, pois seu desejo e seu órgão
eram descomunais.
Nota, para evitar mal-entendidos: nada de tudo isso nos
informa quanto a Jesus e sua sexualidade. O que falamos sobre uma divindade, em
geral, só nos informa sobre nós mesmos. E o livro de Steinberg nos diz que a
Renascença gostava do ideal de um Cristo que saberia reprimir desejos fortes.
Durante anos, estudioso de filosofia medieval, fui um leitor
da “Patrologia” publicada por J.P. Migne no século 19. São mais de 400 volumes
reproduzindo os escritos latinos e gregos dos padres da Igreja, a partir de
Tertuliano (160-220 d.C.).
Em geral, quem estuda os padres da Igreja, desde Paulo de
Tarso (que viveu logo depois da morte de Cristo) até o ano 1.000, constata que
os cristãos se apropriaram do ideal greco-romano de autocontrole (de domínio de
cada um sobre suas paixões), mas o reduziram a um ideal de controle do desejo
sexual.
Esse empobrecimento foi a obra de um grupo de neuróticos
graves (do próprio Paulo de Tarso a Tertuliano, Agostinho, Clemente de
Alexandria, sem contar Orígenes, que se castrou mesmo): todos desgostosos
de seu corpo e de seu desejo sexual, eles conseguiram transformar seus
sintomas e sua necessidade de se reprimir num grande ideal coletivo.
Um corolário disso foi o surgimento, em nossa cultura, de um
extraordinário ódio pelas mulheres, sempre tentadoras e “portanto” responsáveis
pelos desmandos do desejo masculino.
Eu, aliás, não deveria me queixar da vitória cultural dos
padres neuróticos, pois eles prepararam o terreno da psicanálise freudiana:
graças a eles, o sexo se tornou o âmago escondido de cada indivíduo.
Voltemos a Cristo. Ele só se reprimiu, como mandaram seus seguidores mais ilustres? Ou amou carnalmente? E a quem? Maria Madalena ou João o apóstolo? Não há hipótese plausível sobre a sexualidade de Jesus.
Voltemos a Cristo. Ele só se reprimiu, como mandaram seus seguidores mais ilustres? Ou amou carnalmente? E a quem? Maria Madalena ou João o apóstolo? Não há hipótese plausível sobre a sexualidade de Jesus.
Só levanto a questão por causa do especial de Natal do
canal Porta
dos Fundos, “A Primeira Tentação de Cristo”, na Netflix —e, claro, por
causa das reações indignadas que o episódio do Porta provocou.
Sobre o filmado, me alinho com o texto de Reinaldo José Lopes, na Folha desta terça. Assisti e não consegui rir. Mas sejamos indulgentes, porque é Natal e porque a comédia é a arte mais difícil de todas.
Sobre o filmado, me alinho com o texto de Reinaldo José Lopes, na Folha desta terça. Assisti e não consegui rir. Mas sejamos indulgentes, porque é Natal e porque a comédia é a arte mais difícil de todas.
Resta que quero responder a uma pergunta: por que
tanta indignação
com Jesus gay, se, no especial de
Natal do ano passado, o Porta dos Fundos trazia um Jesus beberrão e mau caráter, e ninguém (ou quase) se indignou? É homofobia?
Natal do ano passado, o Porta dos Fundos trazia um Jesus beberrão e mau caráter, e ninguém (ou quase) se indignou? É homofobia?
Sim e não. Para os cristãos que acreditam nos padres
neuróticos dos primeiros séculos, a homossexualidade é o protótipo de um prazer
sexual sem desculpas, uma vergonha absoluta: “eles” transam sem a menor chance
de se reproduzir, ou seja, sem justificativa alguma. Nada de gay, então!
Agora, por isso mesmo, eu realmente gostaria que Jesus fosse
homossexual, ou seja, que fosse um exemplo da liberdade de quem se permite
gozar pelo prazer, sem desculpas. Talvez um Jesus gay bastasse para desmentir
os carrancudos que, em nome dele, promoveram a repressão sexual como
ideal.
Se Cristo fosse homossexual, o tal grupinho de padres
neuróticos talvez perdesse a batalha dos primeiros séculos. Com isso, o
cristianismo de hoje seria alegre e hedonista, como muitos cristãos tentaram
ser no primeiro milênio. Eles foram massacrados. Bom Natal.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas),
'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem
(Papirus)
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