HÁ 31 ANOS, CHICO MENDES ERA BRUTALMENTE ASSASSINADO
Aos olhos dos poderosos locais, Xapuri anoitecia em
resistência pelos direitos e pela vida, nem que a última custasse a primeira.
Era 22 de dezembro de 1988 e um de seus maiores inimigos entrava de tocaia no
quintal do líder da região. Já passava das 18h e um tiro de espingarda calibre
20 ecoou pelo pequeno vilarejo do Acre.
Do lado direito do peito, 42 balas de chumbo atingiam
Francisco Alves Mendes Filho, o popular Chico Mendes. Naquela noite, enquanto
seringueiras sangravam látex, seu mais célebre defensor sangrava as
consequências. A causa da conservação ambiental da Amazônia e da sobrevivência
dos povos da floresta perdia uma de suas maiores lideranças.
Apesar da grande comoção, seu assassinato já era anunciado.
Em diversas palestras, o seringueiro comunicava as constantes ameaças que
recebia dos fazendeiros da região. Em maio de 1988, durante um evento
organizado pela Associação dos Geógrafos Brasileiros na USP, em São
Paulo, Chico Mendes comentou sobre as intimidações dos fazendeiros locais.
“Vários pistoleiros estão sendo espalhados na região para
eliminar a nossa resistência. A minha casa e o Sindicato estão cercados. Mas
não adianta mais matar só um de nós, porque a nossa liderança já está muito
grande”, disse em um de seus últimos atos públicos. “Se matam um Chico Mendes
hoje, têm outros Chicos para dar continuidade à luta.”
Brasil remoto
Nesse mesmo encontro, na USP, o ativista fazia um de seus
últimos apelos para o país olhar com mais atenção para sua região. Chico já era
internacionalmente reconhecido, mas ainda precisava garantir apoio da sociedade
como um todo.
“Sou seringueiro e tenho uma participação direta na selva.
Tive que sair do extrativismo para procurar apoio para minha categoria. Hoje,
meu trabalho é diretamente ligado aos povos da floresta.” Após se apresentar,
lembrou da histórica disputa por terras na região e das péssimas condições de
trabalho dos seringueiros.
Chico nasceu em 15 de dezembro de 1944, em Xapuri, um dos
lugares mais longínquos do centro do país. O local, por sua vez, já era
considerado de conflito muito antes dessa época. No final do século 19, a
indústria automobilística nos Estados Unidos passou a demandar a borracha
brasileira e um contingente muito grande de nordestinos foi para a região,
ainda boliviana, ganhar a vida nos seringais.
Ao contrário do que muitos imaginavam, ali não era um vazio
demográfico e muitas tribos indígenas moravam nos arredores. A invasão dos não
indígenas, portanto, deu início aos processos de grilagem e às constantes
brigas por territórios.
Nos seringais, migrantes do resto do país, principalmente do
Nordeste, trabalhavam por vezes em condições análogas à escravidão,
aprisionados por dívidas. A mão de obra foi determinante para impulsionar a
economia do Brasil e favorecer a anexação do Acre, em 1903. Mas era um negócio
condenado.
Adquirido da Bolívia num processo que envolveu violência e
do qual o país reclama ainda hoje, o território do Acre passou ao prejuízo já
no início do século 20. As sementes das seringueiras foram adquiridas por
britânicos e levadas para suas colônias na Ásia, onde, diferente de seu Brasil
nativo, com suas pragas, podiam ser plantadas industrialmente.
Na Segunda Guerra Mundial, a participação do Brasil no lado
aliado fez renascer a indústria, para sustentar as indústrias de tanques e
aviões. O mercado cresceu, mas em pouco tempo as terras recuaram para o
esquecimento. Foi nessa hora, por sobrevivência, que os extrativistas tiveram
que se reinventar.
Amigos na floresta
Daí em diante, comunidades dos seringais estabeleceram uma
relação muito mais íntima com a floresta. Os costumes, as tradições e até certa
visão mística da floresta foram incorporados pelos seringueiros, que, de
invasores, tornariam-se aliados dos índios, criando uma união entre os povos da
região.
Mas ainda assim os anos áureos da borracha deixaram como
herança a intensa disputa entre fazendeiros e posseiros. O local era carente de
qualquer política pública que garantisse a sobrevida daquela população. Nesse
contexto, sem nenhuma perspectiva, só restava a Chico Mendes sangrar as árvores
ao lado do pai no Seringal Cachoeira, em Xapuri.
Foi na década de 1960 que o jovem seringueiro conheceu
Euclides Távora, um velho comunista que havia participado da Intentona de 1935
e decidiu se refugiar na floresta. Com ele, se alfabetizou. Nas letras e em sua
visão política.
Durante o regime militar, a terra esquecida ganhou novo
enfoque. A partir da década de 1970, o Governo Federal criou um plano econômico
voltado para o desenvolvimento da Amazônia – torná-la mais parecida com o resto
do país. A ideia de levar infraestrutura (como rodovias) à região – e trazer
novos imigrantes – punha em xeque o modo de vida dos seringueiros e índios. A
própria Amazônia estava visada pelo fogo e pela motosserra.
“Chico e seus companheiros receberam a notícia do plano
desenvolvimentista de uma forma muito violenta. Muitos deles foram encurralados
e a partir daí começaram a se organizar pela permanência em suas terras”,
explica Pietra Perez, pesquisadora da USP e mestra em geografia humana.
Os primeiros atos de resistência começaram a surgir e, em
1975, é formado o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia. “Nesse
momento, eu entro na luta, porque lá atrás eu consegui colocar algo na minha
cabeça com a experiência desse homem que viveu a Intentona”, recordou Chico.
Como se temia, o desmatamento foi certeiro na redução da
arrecadação da atividade extrativista, aumentando a miséria e o desemprego no
local.
Sem saída, o grupo se organizou e criou os empates, formas
pacíficas de resistência, formando correntes para impedir o corte das árvores
com o próprio corpo. Não aceitando o diálogo, o grupo de proprietários rurais
recorreu à Justiça e conseguiu aval para desmatar e fortalecer a atividade
agropecuária. A repressão aumentou, mas não diminuiu a luta pela terra.
Mensagem ao mundo
Num primeiro momento, a luta desse povo não era motivada
pela preservação ambiental, mas pela permanência das famílias na floresta.
Quando o então presidente do Sindicato é assassinado, Chico
assume a liderança do movimento. Nesse período, o ativista já tinha participado
da formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e dado início a uma
vida sem sucesso na política.
Enquanto isso, longe do Brasil e seus planos de integração
nacional, começava uma discussão sobre um possível colapso ecológico na
Amazônia. “Nos anos 1980, surgiram pesquisas que apontaram que regiões de
conservação ambiental que excluíam suas populações tinham queda dramática da
biodiversidade”, afirma a pesquisadora da USP.
Agora, sim, usando a pauta ambientalista, em 1985, o grupo
decidiu criar em Brasília o Encontro Nacional de Seringueiros, onde foi
apresentada a proposta de criação de Reservas Extrativistas.
“Chico Mendes conseguiu traduzir a mensagem de um grupo
sindical do interior do Acre para uma linguagem universal. Com as reservas
extrativistas, a natureza e as comunidades estariam protegidas”, explica
Cláudio Maretti, diretor de ações socioambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio).
Na ocasião, também é criado o Conselho Nacional dos
Seringueiros (CNS), com o intuito de mostrar que, embora isolada e pouco
rentável, a atividade extrativista ainda existia e era o principal meio de
subsistência daquelas famílias.
Em março de 1987, Chico Mendes foi convidado para uma
comitiva da ONU, em Miami. Durante o evento, o ativista denunciou as políticas
desenvolvimentistas da Amazônia e condenou os investimentos de bancos
internacionais na região. O discurso, com repercussão mundial, deu a ele
prêmios globais de preservação ambiental. E um alvo pintado em suas costas.
A influência de uma morte
A luta em território nacional ainda continuava e, só em
1988, o governo federal começou a organizar o modelo de reserva extrativista.
As ameaças ao líder aumentavam, e Darli Alves, então proprietário do Seringal
Cachoeira e representante local de uma entidade formada por grandes
proprietários, se torna o maior inimigo dos ativistas de Xapuri.
O sindicalista passou a prever sua morte ainda naquele ano.
“Todo mundo sabia que o meu pai estava sendo perseguido. O assassinato não foi
novidade para ninguém, porque isso já tinha acontecido com outras lideranças.
Nós sabíamos que era só questão de tempo, mas mesmo assim foi muito duro”,
lembra Angela Mendes, primeira filha de Chico.
O assassinato, ainda que previsto, ganhou força na imprensa
internacional e a pressão em cima do governo brasileiro aumentou. Após o
episódio, aliados do movimento organizaram o Comitê Chico Mendes para criar uma
mobilização em prol do julgamento dos assassinos.
Entre suspeitos, o crime fora atribuído a Darli Alves e ao
seu filho, Darci. Ambos foram julgados em 1990 e condenados a 19 anos de
prisão. Nesse mesmo ano, o governo decretou por lei que mais de 1 milhão de
hectares em Cachoeira seriam protegidos do desmatamento, de derrubadas e
queimadas, levando o nome de Reserva Extrativista Chico Mendes.
“Hoje, temos cerca de 70 mil famílias que vivem em
diferentes tipos de reservas extrativistas, a maioria na Amazônia e no litoral.
Chico virou herói nacional porque teve a capacidade de projetar sua luta a
nível global”, ressalta Cláudio Maretti, do ICMBio, instituição responsável por
implantar, gerir e monitorar as Unidades de Conservação do país.
O movimento não só garantiu a permanência de inúmeras
famílias em suas terras como também assegurou minimamente políticas públicas
para a região. Joaquim Belo, o atual presidente do CNS, comenta que a passagem
do acreano na luta é reproduzida de diferentes formas.
“É difícil medir o legado de Chico, porque ele está nas
pessoas, nas universidades, em nomes de instituições, em filmes, em livros.
Mas, para nós do movimento, o seu maior feito foi garantir o direito às nossas
terras”, completou. “Hoje, o defunto é mais caro em nosso território.”
Desafios pelas décadas
Apesar de limitada, a produção da borracha ainda é
extremamente importante para muitas famílias do Acre. Por mais que 50% do
estado seja destinado a áreas de conservação, ainda existe muita disputa por
terra nos entornos das fazendas.
Para isso, o Comitê Chico Mendes realiza anualmente, em
dezembro, a Semana Chico Mendes entre os dias 15 (seu aniversário) e 22 (sua
morte) para resgatar os ideais do líder e continuar a discussão do movimento.
A filha mais velha, Angela, membro do grupo e do CNS,
comenta que é necessário denunciar que “outros Chicos” continuam ameaçados na
região. Hoje, a luta é fazer com que não se perca o que o nome de seu pai
conquistou.
“Eu era adolescente quando ele morreu. Por isso, ao longo da
minha vida fui construindo um Chico através das outras pessoas. Mas acho que o
sangue e o DNA não negam a minha luta por justiça e igualdade.”
Ela lembra que recentemente uma área próxima a Xapuri foi
foco de ameaças e algumas casas foram derrubadas. “Não sabemos de nenhuma
morte, por enquanto”, disse.
Além do Acre, ainda há outros registros de conflitos entre
jagunços e trabalhadores rurais. No sul do Pará, por exemplo, o chamado
massacre de Pau-D’Arco tirou a vida de dez trabalhadores rurais em maio de
2017. Os assassinatos aconteceram durante uma ação de reintegração de posse em
um acampamento da região.
“Esses territórios continuam em disputa permanente, porque
terra não perde valor. São áreas muito ricas, com muita madeira e muitos
minérios”, completa o presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros.
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