O episódio da fala do ministro Paulo Guedes de que não seria
surpresa caso alguém voltasse a falar de AI-5 é emblemático porque mostra uma
distinção cada vez mais difícil de ser feita: a daqueles que apoiam as medidas
econômicas do titular da Economia e, por isso, fecham os olhos para os
sistemáticos e cada vez mais graves abusos do seu chefe, o presidente Jair
Bolsonaro. Guedes mesmo flertou com isso em sua declaração, embora não ache que
o fez.
O mercado, os conservadores, setores da imprensa, partidos
como o Novo, outros ministros de Estado, eleitores que não se enquadram na
categoria “mínions”, deputados e senadores estão no mesmo barco. Até quando
será possível entoar o discurso de que a agenda reformista é boa e necessária e
condescender com o inadmissível?
É incompatível com o estado democrático de direito aceitar
excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para
a atuação de militares na contenção de protestos de rua – que, por sinal, ainda
existem apenas na mente paranoica do presidente e de seus acólitos.
É incompatível com o estado democrático de direito um
presidente decidir quais veículos de comunicação podem ser lidos, assinados e
entrar em licitações em órgãos públicos. É inconstitucional, é grave, é imoral,
é inadmissível. Nenhum democrata pode aceitar isso, sob nenhuma justificativa.
É um limite rígido, que quem aceitar ultrapassar pode não perceber agora, mas
passou para o lado dos que aceitam transigir com a democracia.
É inadmissível que o presidente invista de forma deliberada
contra a sociedade civil organizada, nomeando para cargos públicos – portanto
aparelhando, assim como acusava a esquerda de fazer – pessoas imbuídas única e
exclusivamente do espírito de promover revanche e retaliar uma parte do povo
brasileiro. Um presidente não pode escolher para quem vai governar nem lançar
instrumentos de Estado para perseguir aqueles a quem abdicou de representar.
Isso o tira dos trilhos delimitados pela Constituição, e
deveria ser razão para que os demais Poderes, a OAB, a imprensa, a população e
os partidos responsáveis usassem os mecanismos de freios e contrapesos
disponíveis no mesmo ordenamento jurídico que vem sendo sistematicamente
aviltado para pará-lo. Já. Independentemente da agenda de reformas, e até para
que ela não seja rapidamente deslegitimada, colocada em segundo plano como já
vem sendo colocada pelo próprio presidente aprendiz de autocrata, que resolveu
rasgar a fantasia liberal e partir em marcha batida para a supressão
sistemática de direitos e garantias que não são deles, mas nossos. Foram
conquistados duramente, ao longo de décadas de uma volta à democracia que a
ditadura que ele nega e apoia nos tirou ao longo de mais de duas décadas. Vamos
deixar? Por que motivo?
Deputados e senadores, os senhores foram tão eleitos quanto
o presidente. Engavetem logo essas tentativas de usar excludente de ilicitude
como se fosse band-aid. Não é. É instrumento excepcional. Não sejam cúmplices
desse atentado gradual e diário à democracia, pois a próxima vítima podem ser
os senhores. Vale para veículos de imprensa, que olham acovardados para as
investidas contra seus congêneres sem se dar conta de que estão no mesmo
balaio.
E vale para os ministros do Supremo. Parem de investir vocês
também contra a segurança jurídica do País e se assenhorem do seu papel de
guardiões da Constituição.
Um ministro me disse nesta semana que se Bolsonaro insistir
no caminho do arbítrio haverá demissão coletiva. Será? Senhores civis e
militares, examinem suas consciências: com quanto de abusos os senhores estão
dispostos a transigir? Porque um tanto vocês já engoliram em meio a risos
nervosos e declarações bizarras.
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