As aparências não enganam: Quando você vê um presidente da
República comportando-se de forma autoritária, provavelmente ele é autoritário.
Desde que assumiu, o atual inquilino do Planalto tenta conciliar duas
necessidades conflitantes: ser Jair Bolsonaro e manter a compostura exigida
pelo cargo.
Ao excluir a Folha de uma licitação governamental e incitar
um boicote aos anunciantes do jornal, o presidente potencializou a impressão de
que Bolsonaro e compostura são realmente coisas inconciliáveis.
"Eu não quero ler a Folha mais. E ponto
final. E nenhum ministro meu", disse Bolsonaro. "Recomendo a todo
Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem
que tem uma passagem bíblica, a João 8:32. A imprensa tem a obrigação de
publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também".
Para Ayres Britto, ex-presidente do STF, o Planalto não realiza uma licitação, mas uma "ilícita ação". Como leitor, Bolsonaro
tem todo o direito de não gostar da Folha. Como consumidor, pode se abster de
comprar o jornal. Como presidente, comete uma ilegalidade ao excluir um dos principais
jornais do país de uma licitação pública para a aquisição de acesso digital ao
noticiário de veículos de imprensa.
A decisão de Bolsonaro viola os "princípios
constitucionais da impessoalidade, isonomia, motivação e moralidade",
anotou o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas
da União, Lucas Furtado, em representação protocolada na última sexta-feira.
No trecho predileto de Bolsonaro, o Evangelho de João anota:
"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." O problema é que
o capitão opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. O defeito
não está na liberdade de expressão da imprensa, mas na dificuldade do
presidente de se exprimir.
Bolsonaro chama a Folha de mentirosa e, na sequência, acusa
Leonardo DiCaprio de financiar incêndios na selva amazônica. Desmantela o
aparato ambiental e confraterniza-se com desmatadores. Depois, diz que o
problema são as ONGs, os cientistas do Inpe e as doações feitas pelos governos
da Noruega e da Alemanha.
Na sua concepção de verdade, Bolsonaro considera-se um
político avesso à corrupção e aos maus costumes. Na versão verdadeira, convive
doce e fraternalmente com ministros indiciados, denunciados e até um condenado.
O presidente bate
bumbo pela transparência, mas esconde o amigo Fabrício Queiroz e as relações
dele, que vão da assessoria tóxica ao primogênito Flávio aos vínculos com
milicianos. Alardeia que Luciano Bivar, do PSL, está "queimado pra
caramba" e não repara nas pesquisas que o colocam na frigideira.
Não é que Bolsonaro não goste da imprensa. A questão é que
ele só aprecia três tipos de imprensa: a que não tem nada a dizer, a que
prefere não dizer e a que deseja dizer coisas deliciosamente favoráveis.
A imprensa que tem o incômodo hábito de imprensar não serve.
Por uma razão simples: ajusta as aparências de Bolsonaro à realidade em vez
adaptar a realidade às aparências do Brasil ficcional que o capitão escolheu
para governar.
Além do versículo bíblico, Bolsonaro guia-se na presidência
por um slogan: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Nem
acima, nem à direita. O desapreço de Bolsonaro pela liturgia democrática joga o
Brasil para baixo.
A julgar pela aversão do presidente à imprensa livre, embora
Deus esteja em toda parte, é o Tinhoso quem ocupa a mente baldia de Bolsonaro.
A escassez de reações ao desatino presidencial revela que o capitão pratica
suas exorbitâncias num cenário em que o absurdo vai adquirindo uma doce e
persuasiva naturalidade.
Pouca gente se deu conta. Mas Bolsonaro acaba de editar o
seu Ato Institucional Número Um: "Folha não!". Fez isso num instante
em que o AI-5 escorre tanto de lábios aloprados como os de Eduardo Bolsonaro
quanto de bocas improváveis como a de Paulo Guedes.
Com honrosas exceções, políticos, autoridades e
personalidades não fizeram a concessão de uma surpresa. Aos pouquinhos, o país
vai suprimindo dos seus hábitos o ponto de exclamação. Se Bolsonaro servir, num
banquete, mentira desossada, a maioria engolirá com gosto. É mentira? Pois que
seja mentira! E com abóbora.
Quando vier a indigestão, será tarde.
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