Eliane Cantanhêde, O
Estado de S.Paulo
Ao se transformar em Infernópolis, Paraisópolis confirma
várias certezas num momento em que os governos e um lado doentio da sociedade
aprovam e estimulam armas, polícias violentas e matanças de criminosos a
qualquer custo. Não faltam “cidadãos do bem” pregando, sem um pingo de pudor,
que “bandido bom é bandido morto”. Mas não são os bandidos, ou não só eles, que
estão morrendo.
A palavra de ordem vem do próprio presidente da República e
dos seus filhos, vai descendo para os governadores, atinge as secretarias de
Segurança e, claro, chegam à ponta: os próprios policiais, que são pagos para
defender vidas humanas e acabam virando ameaças à sociedade. Não raro, cidadãos
e cidadãs acabam tendo tanto medo do policial fardado quanto do bandido que
surge do nada.
As investigações continuam para estabelecer
responsabilidades e circunstâncias, mas o fato nu, cru e cruel em Paraisópolis
é que nove jovens, entre 14 e 23 anos, morreram de maneira estúpida e
inadmissível numa invasão policial num baile funk de fim de semana. Mais uma
vez, como já é corriqueiro no Rio, por exemplo, nove famílias, uma comunidade,
uma cidade, um Estado e um país sofrem a dor da morte, da violência, do descaso
com a vida. E por quem? Por agentes do Estado, pagos inclusive pelos pais,
mães, amigos e vizinhos das vítimas de Paraisópolis.
Os mesmos policiais ocupariam um show de rock nos Jardins,
ou no Leblon, ou em Boa Viagem da mesma forma e com a mesma agressividade com
que invadiram um baile funk da periferia com 5 mil jovens se divertindo num
domingo à noite? E tratariam com socos e cassetetes os filhos da elite branca
como fizeram com os filhos mulatos e negros de Paraisópolis?
Se a ordem para “meter o pau” vem de cima, é natural também
que policiais de Pelotas (RS) espanquem dois garotos pobres com a mesma
“eficiência” com que os de São Paulo atacaram a juventude de Paraisópolis. É
como se houvesse uma licença para bater, para matar. “Mira a cabecinha e…
fogo!”, como disse o governador do Rio, Wilson Witzel, aquele que comemorou com
pulinhos e socos no ar – como se fosse um gol, uma festa – a morte de um
sequestrador. A “cabecinha” de quem?
Num país tão injusto e tão desigual como o Brasil, o
endurecimento contra os bandidos corresponde a uma espécie de pacto: é chato
ter uma, duas, três, 20 crianças mortas pisoteadas ou por balas perdidas, mas,
bem, esse é o preço para garantir a ordem e reduzir a criminalidade. Perverso?
Mas real.
A morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, com um
tiro de fuzil disparado por um policial, comoveu o Brasil. De onde Ágatha era?
Do Complexo do Alemão, equivalente ao Complexo do Chapadão, Comunidade da Chatuba,
Bairro de Triagem e Bangu, todos no Rio, todos pobres, onde outras crianças
também foram assassinadas brutalmente por balas perdidas.
Em resumo, o assassinato de crianças pobres, negras e
mulatas é contabilizado como uma fatalidade, um efeito colateral do combate à
criminalidade. A morte delas é o custo a pagar para que famílias brancas e
ricas possam ter mais segurança…
Quanto menos direito à vida as comunidades, as crianças e os
jovens pobres têm, mais o presidente Jair Bolsonaro defende o “excludente de
ilicitude”, para livrar a cara de policiais que matam. Segundo ele, os bandidos
“vão morrer na rua igual barata”.
O problema, presidente, é que nas democracias se matam
bandidos apenas no último caso. E, na realidade brasileira, quem já está
“morrendo igual barata” não são os bandidos, mas os filhos e filhas de
pedreiros, empregadas domésticas, garis, pintores de parede. E sem o excludente
de ilicitude… Com ele, a coisa vai ficar ainda mais macabra.
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