Chama-se Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês).
Desconhecida até pouco tempo, ganhou notoriedade por parlamentares mais à
esquerda no Partido Democrata americano, como Ocasio-Cortez e Bernie Sanders.
Oferece a prescrição dos sonhos para qualquer político: em linhas gerais, o
governo poderia gastar sem precisar aumentar impostos. O lema é que governos
jamais vão quebrar, se imprimem a própria moeda.
É claro que a modinha já chegou aqui e na semana passada
desembarcou no Brasil Randall Wray, professor expoente da MMT. Criticou as
políticas do atual governo, mesmo trazido por um órgão federal (a Fiocruz, há
muito caixa de ressonância da pauta do funcionalismo). Também participou de
evento organizado por sindicatos de servidores.
O leitor pode se espantar com a autodenominação “moderna” da
teoria. Afinal, o teste da impressora é um pelo qual o País já passou diversas
vezes na tentativa de financiar o Estado de forma indolor. A emissão de moeda e
a hiperinflação desorganizava a economia e deixava os miseráveis mais
miseráveis. O próprio Wray admitiu no tour brasileiro que a MMT não traz nada
de novo e faz a ressalva de que a emissão pode ter como consequência a
inflação, mas é difícil conciliar os alertas tímidos com os slogans mais
animados do movimento.
Wray veio ensinar a missa ao padre. Vá lá, a simpatia pela
MMT na política americana é compreensível para o país que emite dólar, tem
histórico de juros baixos e não viveu em décadas recentes episódios de
hiperinflação. Aqui, não faz sentido ignorar o problema fiscal e cair no conto
de que a impressora resolva os problemas.
De fato, recebeu críticas da esquerda nesse sentido. Na
revista Jacobin, o jornalista Doug Henwood apontou neste ano que a MMT está
enraizada em um contexto de país rico e na noção do excepcionalismo americano:
“Seria triste ver a esquerda socialista, que parece mais forte do que esteve em
décadas, cair nesse óleo de serpente. É um fantasma, um sonho febril e
imperial, não uma política econômica séria”.
Veja: a Teoria Monetária Moderna pode ser usada justamente
contra a agenda de tributação progressiva cara à esquerda. Por que uma reforma
tributária com foco nos mais ricos, se o problema fiscal não existe de fato? A
MMT é usada politicamente para dirimir preocupações sobre efeitos da despesa na
dívida, mas pode da mesma forma ser usada contra alta de impostos.
Aliás, o tema já foi abordado recentemente por Stephanie
Kelton, a economista de Bernie Sanders, e tão expoente do movimento quanto o
nosso visitante Wray. Ela ironiza a esquerda que quer tributar os mais ricos,
afirmando que eles não devem ser tratados como “cofrinhos”. Defende a
superioridade da política prescrita pelo seu movimento: a emissão de moeda
teria a vantagem de melhorar a vida de todos, enquanto a tributação progressiva
com gasto pró-pobre melhoraria a vida só dos pobres, piorando a dos ricos.
É exatamente esse o apelo da MMT, a versão nutella do
inflacionismo que a América Latina conhece tão bem: a promessa de solução
indolor, que não exige sacrifícios de ninguém.
É gancho para falarmos do homem da hora: Pedro Souza, do
Ipea, ganhou dois Jabutis com sua tese-livro sobre a história da desigualdade
no Brasil – incluindo o prêmio de livro do ano. O trabalho documenta com dados
a evolução da parcela retida pelo 1% mais rico do Brasil. Os picos de
concentração de renda desde a década de 20 foram três: nos anos subsequentes à
ditadura de Vargas e à ditadura militar, e na hiperinflação dos anos 80.
Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações
financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da
“ditadura” da hiperinflação. A concentração de renda piora.
Um economista brasileiro entusiasta da MMT confessa
reservadamente: “Mais do que uma teoria, é uma bandeira”. Em suas palavras, a
MMT seria sensacionalista, exagerada, mas serviria para chamar a atenção e
estimular cidadãos a não se conformarem com a situação de elevado desemprego, e
demandarem mais do Estado.
Mas os dias atuais não são só de inflacionismo nutella.
Também na semana passada foram divulgados mais detalhes do Plan Verano, que
Alberto Fernández ameaça cometer depois de tomar posse na Argentina. Prevê
aumento da emissão de moeda para pagar aumentos a aposentados e trabalhadores.
Sua equipe acredita que há capacidade ociosa suficiente para
que a impressão de dinheiro não resulte em aumento de preços. Mas a inflação
acumulada em 12 meses já é de 50%, fechando outubro em 3,6% – mais do que o
Brasil terá em todo 2019. O presidente eleito explicou: “Temos de voltar a
fabricar, dar crédito para que se reative a produção, dar dinheiro aos
aposentados para que consumam. Temos de fazer o que aqui se chama de
peronismo”.
O inflacionismo raiz respira.
* Doutor em economia.
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