terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O ANO EM FIGURINHAS

Claudia Tajes, Folha de S.Paulo
Se fosse preciso escolher um jeito de traduzir 2019, não o faria em imagens, palavras ou gestos —a arminha vem de outros Carnavais. Seria por stickers, as figurinhas que tomaram conta do WhatsApp tanto quanto as fake news no ano passado.
No começo, eram uma espécie de dialeto “xóvem”, com chihuahuas estropiados, gatos empoderados, ex-celebridades de segunda linha e uma galeria de anônimos com expressões e legendas para todas as ocasiões. Que mãe não perguntou ao filho onde ele andava e levou uma figurinha do Queiroz como resposta? Não demorou para os stickers caírem no gosto geral. Zoeira pura, elas falaram pelo Brasil em 2019.
Em vez de desculpas furadas, uma figurinha da Gretchen. Para cortar um assunto chato, uma figurinha da Gretchen. Para mostrar vergonha alheia, uma figurinha da Gretchen. Para o crush, uma figurinha da Gretchen. Gretchen foi a ministra da Comunicação moral de 2019.
Para comentar as bombas políticas e econômicas do ano, uma figurinha da Dilma —plena, pleníssima. Agora tem a do Chico Buarque num jogo de futebol: “passa pro Lula, ele tá livre”. A do Paulo Guedes, meiga: “gostei de vc, vô te privatizá por último”. E DiCaprio com ar enigmático: adivinha quem ensaboou o banheiro?
As figurinhas seguem suas próprias regras gramaticais, e todas estão erradas. Mesmo assim, a gente as salva porque sabe que um dia serão úteis. Acompanhando os piores closes e os ângulos mais toscos de tudo e de todos, legendas que dispensam pontos, vírgulas e outros caprichos da língua. Que Deus lhe guarde e se esqueça onde.
Como cabe tanto feladaputa nesse planeta? E eu lá quero sua amizade caraio. Disse pouco mas disse bosta. Pago até um Uber pra vc ir sifudê. Cortella, Karnal e Pondé brilharam em 2019, mas nada superou a filosofia das figurinhas.
Curiosamente, mas nem tanto, até Flávio Bolsonaro —não esqueçamos o sobrenome para deixar bem claro de que Flávio falamos— atolar no chocolate e ter sua cara de pau inserida no corpo do Willy Wonka, a família do barulho não virou figurinha. Nem poderia. Piada sem o mínimo de inteligência não vale a viagem.
Que 2020 traga motivos para a gente rir de verdade, e não de nervoso. De sem graça já basta tudo, e o atentado ao Porta dos Fundos fecha o ano com chave de nióbio. Figurinha da Gretchen encerra: “ceis tão pensando que aqui é bagunça kct?”.
Claudia Tajes
Escritora e roteirista, tem 11 livros publicados. Autora de "Macha".
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