As revoltas recentes na América Latina, sobretudo no Chile,
têm servido como desculpa para justificar tanto o ímpeto autocrático do
bolsonarismo — o recrudescimento, por exemplo, do discurso que legitima algo
como um novo AI-5 caso evento parecido ocorresse no Brasil — quanto as
dificuldades do governo Bolsonaro, especialmente em matéria econômica.
Diga-se que ninguém se valeu mais deste recurso — da muleta
do quebra-quebra chileno —do que Paulo Guedes.
As rebeliões no continente, aliás, iluminaram o que havia
muito estava nu: que o ministro jamais poderia ser agente educador-moderador do
presidente-imperador, e pelo fato de que o Posto Ipiranga sempre esteve muito
mais próximo da mentalidade bolsonarista, com sua vocação para o conflito e a
ruptura, que do lugar de equilíbrio institucional fetichizado por empresariado
e mercado financeiro.
As rebeliões no continente — à luz do que manifestam nossos
governantes — deveriam nos lembrar de que não há uma tradição democrática no
Brasil, e que os limites definidos pela democracia tendem mais a incomodar que
confortar. Guedes está irritado. Reage não se opondo — não raro oferecendo
tortuosos argumentos — aos que surfam a tentação de atribuir os percalços da
agenda reformista liberal ao que seriam excessos da democracia. Seria mais
fácil com menos — já nos ensinou Carlos Bolsonaro.
Nas palavras de Guedes, somente na semana passada, as
convulsões na América Latina tentaram autorizar uma aberração inconstitucional
— excludente de ilicitude em operação de Garantia da Lei e da Ordem — e aliviar
a carga de uma constatação: a de que seu programa de reformas estruturais
parou. Por ordem do presidente: parou.
Guedes está irritado. Talvez pense em Moro — o ex-Moro.
Talvez já não se sinta um superministro. É natural que procure uma narrativa em
que se escorar. (Que se utilize de uma fundamentada em instrumento de exceção:
aí é quando as circunstâncias expõem os indivíduos.) A versão escolhida
depositou sua credibilidade nas mãos de Bolsonaro; em até quando o presidente
endossará o texto segundo o qual a “bagunça” no continente seria o motivo por
que mandou travar a reforma administrativa.
Guedes prometeu demais. Anunciar metas ambiciosas, sob a
lógica do setor privado, costuma cobrar preço alto na administração pública. A
expectativa política, gerada desde dentro, era imensa. O país zeraria — neste
2019 — o déficit das contas públicas. Havia outras promessas para já.
Sublinhe-se: não cumpridas. O pacote de privatizações — reconhecidamente —
avança com mais agruras que o previsto. A reforma tributária foi entregue a um
secretário inepto, que tudo centralizava, e cuja queda impôs ao ministério que
iniciasse o trabalho do zero. E a da Previdência, tocada sob a tal nova
política que encanta Guedes, chegou a bom termo tanto quanto fez envelhecer
prematuramente o governo. Ainda não se recuperou o ar, e já vem outro ano
eleitoral…
A frustração é evidente. A irritação, materializada em
praguejamento autoritário, é consequência. O caldo entornou. Mas ninguém —nem
no governo nem em grande parte da imprensa — quer se encontrar com o problema
de que Guedes se alavancou em excesso (para curtíssimo prazo), subiu o sarrafo
à altura inalcançável; e não entregou.
É óbvio que isso faz aumentar a pressão e alimenta os
adversários, inclusive os internos. É óbvio que faz subir o fogo em que o
populismo bolsonarista cozinha o liberalismo econômico que supôs ser possível
prosperar sem liberalismo político e reformar um Estado ora tocado por um
projeto autocrático de poder.
Talvez se queira desfilar com a fantasia de que está tudo
bem, tudo sob controle, até o carnaval. Depois de a Mangueira passar, porém,
será necessário voltar à claríssima entrevista que o ministro deu à repórter
Ana Clara Costa, publicada neste GLOBO , no último domingo, para enfrentar a
dor, a ardência, da mensagem.
Guedes, transparente, fala no risco de o Brasil reproduzir a
Argentina; nisto contidas uma real possibilidade — a de seu plano, sem a célere
implementação das reformas, não resultar em crescimento sustentável e, pois,
fracassar — e uma ameaça (ou não seria um bolsonarista): o de a esquerda
voltar, como o kirchnerismo no país vizinho.
Não há como ler a entrevista — um longo lamento — senão com
pessimismo. É esquisito. Seus melhores momentos se desdobram numa superfície
temporal impossível, indefinível. O ministro coloca sua gestão da economia num
tempo inexistente, espécie de limbo em que estaríamos sempre atrasados. Isto
porque o triunfo de sua agenda — conforme expressa o próprio Guedes —
dependeria de rapidez no avanço das reformas. E esta rapidez já não veio. É ele
quem diz. A projeção de crescimento que faz —1% em 2019, 2% em 2020, 3% em 2021
e 4% em 2022 — configura Inês morta , dado que ancorada em aceleração que não
houve. É angustiante.
Guedes está irritado. Terá cansado?
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