Em conferência recentemente feita em Valparaíso, no Chile,
Manuel Castells voltou a caracterizar as manifestações populares contemporâneas
(como já o fizera em seu livro Rupturas) como “explosões”, mais do que como
movimentos sociais. Parece que a irritação contra “los que mandam” se
generaliza.
Castells, que há muito estuda as “sociedades em rede”,
mostra que estas são fruto da comunicação interpessoal via internet. Os novos
meios de comunicação tornam-se não só propiciadores da expansão de movimentos
sociais, como também facilitadores de súbitas expressões coletivas de repúdio.
Estas chegam a dar a sensação de serem capazes de abalar as estruturas de
poder, o que às vezes de fato se verifica.
Desde que mostrou os efeitos do uso de telefones celulares
para explicar como se deu a reação na Espanha contra as explicações
inaceitáveis do governo sobre o caso famoso do atentado na estação de metrô
madrilenha de Atocha, nosso autor escreveu vários trabalhos que confirmavam
suas análises sobre as sociedades da “informação”.
Pois bem, novamente o caso do Chile chama a atenção: país
exemplo de crescimento econômico e estabilidade institucional, de repente surge
no noticiário mundial como mais um caso de revolta popular e reação policial
violenta.
Convém repetir o dito por Castells na conferência de
Valparaíso: o Chile é mais um caso de uma série de manifestações com dinâmicas
semelhantes. Ou nos esquecemos do ano de 2013 no Brasil? Ou da primavera árabe?
E por que não acrescentar o Occupy americano ou os coletes amarelos franceses?
E em nossa América Latina, a vizinha Bolívia agora mesmo, ou pouco antes o
Equador? E acaso o que tem ocorrido no Iraque nas últimas semanas será
diferente?
Sim e não. Há algo em comum: mudanças tecnológicas e
culturais que põem em xeque as estruturas de poder em todo o mundo. Nos países
em que há eleições e liberdade, a reação popular, contraditoriamente, é maior e
mais visível. Nos autoritários, o controle da informação e as restrições
políticas, por ora, contêm os ímpetos populares. A diferença se nota mesmo onde
a liberdade não é plena: basta comparar Hong Kong com a China continental.
O certo é que as explosões sociais se tornaram quase o “novo
normal”, quando antes eram um ponto fora da curva. Nos anos 60 e 70 surgiram
ondas de protesto social. A origem do mal-estar estava nas universidades, mas
ele só se irradiava quando se fundia com as reivindicações tradicionais “de
classe”. Aí, sim, parecia que o sistema pegaria fogo.
Eu vi de perto o que aconteceu em 1968 em Nanterre – onde
Castells era jovem professor assistente. O movimento estudantil ultrapassou os
limites da universidade, mas só se tornou um fato político nacional quando
ganhou a adesão dos sindicatos, confluência que levou a uma greve geral de
grandes proporções. No conjunto, o movimento apareceu como uma revolução
cultural, ainda sem símbolos claros para se expressar.
As explosões contemporâneas não se orientam por grandes
projetos utópicos. No Chile, o protesto se passa num país que cresceu
economicamente e ampliou muito o acesso à educação superior. Não é decorrência
do empobrecimento, mas da frustração de expectativas que se foram elevando ao
longo de 30 anos de crescimento acelerado, ainda que mais lento no período mais
recente.
A onda de protestos no Chile mostra que uma economia de
mercado não dispensa, e sim requer, mecanismos de promoção e proteção social
que só o Estado é capaz de manter. Prova também que, se já não há lugar para as
utopias igualitaristas, a igualdade de direitos continua a ser uma aspiração
forte das sociedades democráticas.
O presidente Piñera fez o que se espera de um chefe de
Estado em momentos de crise: apelou ao conjunto dos partidos políticos em
defesa da democracia. O efeito foi positivo, a maioria deles se engajou num
acordo para responder aos protestos.
As forças políticas, da direita ao centro-esquerda,
convergiram em torno da proposta que simboliza o desejo de mudança expresso nas
ruas: uma nova Constituição. A atual ainda carrega parte das suas marcas de
origem, na ditadura do general Pinochet, embora tenha sido reformada em vários
pontos ao longo dos 30 anos de democracia.
Com exceção de partidos menores de esquerda, as lideranças
políticas juntaram-se em torno de uma saída democrática. À diferença do caso
brasileiro, em que coube ao Congresso essa tarefa, no Chile a nova Constituição
será obra de uma assembleia constituinte exclusivamente eleita para essa
finalidade.
Em abril o povo decidirá em plebiscito se a assembleia
constituinte terá representantes dos partidos políticos (no máximo, metade) ou
será integralmente formada por constituintes eleitos por outras formas de
representação da sociedade. A nova Constituição será submetida a referendo
popular.
Que o presidente eleito e os partidos tenham construído em
poucos dias um acordo pelo qual cedem poder em favor de um processo
deliberativo que produzirá a nova Constituição do país mostra a consciência das
lideranças políticas chilenas sobre a necessidade de assumir riscos para
restabelecer a legitimidade das instituições políticas e da autoridade pública.
Sob pressão, agiram com coragem: ampliaram significativamente os canais de
participação política da sociedade e assumiram o compromisso, governo e
oposição, de apurar as violações de direitos humanos na repressão aos
protestos.
Pesa agora sobre as forças sociais e políticas que não
aderiram ao acordo a responsabilidade de cooperar para que a normalidade se
restabeleça nas ruas. Protesto político é legítimo. Depredações ao patrimônio
público e privado são crime. Estas precisam ter fim para que o processo
constituinte possa avançar sem sobressaltos.
Só o caminho da política democrática levará o Chile a bom
porto. Confio que o Chile saberá consolidar-se como uma comunidade nacional em
que a cidadania tem vez e voz na definição do presente e na construção do
futuro.
*Sociólogo, foi presidente da República
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