O vídeo de Guido Manini Ríos circulou no dia do segundo
turno, 24 de novembro. Nele, o general aposentado, que obteve 10% dos votos no
turno inicial, invectivava contra a esquerda em linguagem exaltada para chamar
integrantes das Forças Armadas a votar em Luis Lacalle Pou, barrando um novo
mandato à Frente Ampla. A mais notável reação partiu do próprio Lacalle Pou:
“Esse tipo de coisa não pode ocorrer no Uruguai”. Enquanto
ele falava, a apuração registrava empate técnico, o órgão eleitoral adiava o
anúncio do resultado para permitir uma contagem rigorosa dos votos restantes e
os apoiadores dos candidatos rivais confraternizavam nas ruas.
Não —o Uruguai não é uma nação civilizada por natureza. O
país viveu uma ditadura de 12 anos, entre 1973 e 1985, com raízes fincadas nas
ações de um esquadrão da morte de extrema-direita e nos sequestros e atentados
cometidos pelos Tupamaros, de extrema-esquerda. Durante a ditadura, cerca de
20% dos cidadãos foram presos em algum momento e 10% da população emigrou, num
movimento que se refletiu na paisagem de casas abandonadas em Montevidéu e em
forte desvio da morfologia da pirâmide etária. A civilidade uruguaia emanou da
história recente: eles aprenderam as lições da ditadura.
O primeiro segredo situa-se à esquerda, na Frente Ampla. “É
uma ditadura, nada mais que isso”, definiu Pepe Mujica, referindo-se à
Venezuela. O ex-presidente, antigo líder dos Tupamaros, que ainda mantém
relações afetivas com o grupo, fala uma linguagem incompreensível para o PT. Os
Tupamaros nasceram em 1963, sob a influência da Revolução Cubana. Hoje, porém,
quase toda a esquerda uruguaia saiu da caverna do castrismo, abraçando a ideia
de pluralidade política. O “inimigo do povo”, tão caro à esquerda brasileira (e
argentina), não tem lugar no discurso político uruguaio.
Mais: a Frente Ampla, ao contrário do PT, não é o veículo de
um projeto de poder personalista, semicaudilhesco. Tem, por esse motivo,
capacidade para rever seus erros e evoluir. Isso não é tudo. A esquerda
uruguaia não está presa às âncoras do populismo e do estatismo: no pequeno país
vizinho, nunca houve algo parecido como o varguismo ou o peronismo. Os 15 anos
de governos da Frente Ampla consolidaram uma economia aberta, um liberalismo
temperado por políticas sociais.
O segundo segredo situa-se à direita, nos partidos Nacional
e Colorado. Diferente da Argentina, do Chile e do Brasil, a ditadura uruguaia
só colocou um general na Presidência durante a etapa derradeira, a transição
iniciada em 1981. Gregorio Álvarez, o general-presidente, comandou de facto
oregime desde o início. Mas a fachada civil foi providenciada por líderes dos
dois partidos históricos. A ignomínia propiciou o aprendizado: enquanto a
esquerda renunciava à ditadura revolucionária do futuro, a direita fazia o
mea-culpa pela ditadura contrarrevolucionária do passado.
A expressão “ditadura cívico-militar” aplica-se, em graus
variados, aos casos do Brasil, do Chile e da Argentina —mas, no Uruguai, o colaboracionismo
civil traçou uma fronteira no interior da elite política histórica. No
referendo constitucional de 1980, quando a ditadura pretendia institucionalizar
uma “democracia autoritária”, as correntes majoritárias dos dois partidos
tradicionais escolheram o lado do “Não”. A redenção começou ali, pela
marginalização dos sócios civis de Álvarez. Os uruguaios que acabam de eleger a
coalizão de centro-direita não nutrem nenhuma saudade dos tempos da ditadura.
Luis Alberto Lacalle, presidente entre 1990 e 1995, foi
preso em 1973 e militou, na clandestinidade, contra a ditadura. Ele disse “Não”
em 1980. Seu filho, Lacalle Pou, repetiu o mesmo “Não”, por duas vezes. Uma,
semanas atrás, quando recusou o apoio de Jair Bolsonaro à sua candidatura à
Presidência; outra, na jornada do segundo turno, quando rejeitou o vídeo de
Manini Ríos.
Bolsonaro prometeu comparecer à posse do novo presidente
uruguaio. Nessa viagem, ele será o homem mais solitário do mundo. O Uruguai de
hoje é uma nação educada, civilizada. Vá cortar o cabelo, presidente.
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