No último artigo do
ano, não queria fazer uma resenha. Apenas me ater a uns traços mais gerais para
explicar como chegamos até aqui e para onde, possivelmente, estamos nos
dirigindo.
Tentei a forma
clássica de explicar o que vejo aqui pesquisando os analistas mais amplos que
tentam entender o mundo, os fenômenos que repercutem em muitos lugares,
inclusive no Brasil.
Ao ler um deles, o
sociólogo Ulrich Beck, autor de A Metamorfose do Mundo, deparei-me com o
seguinte argumento que considera o ritmo das mudanças atuais muito mais rápido
que os efeitos, por exemplo, da Revolução Francesa: A metamorfose do mundo
ocorre com uma velocidade realmente inconcebível: em consequência, está
ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas instituições. É por isso que a
metamorfose que acontece nesse momento, diante de nossos olhos, está quase fora
da conceituação da teoria social. Por isso que muitas pessoas têm a impressão
de que o mundo está louco.
Modestamente, o que
me resta é descobrir alguns pontos em que a loucura mundial se entrelaça com a
brasileira e que tipo de iguana nasce desse cruzamento.
A novidade do ano de
2019 foi a mudança de governo, início de uma nova etapa. Ela apresentou
inúmeros pontos de contato com os Estados Unidos, expressando um divórcio quase
hostil entre as pessoas comuns e os intelectuais e acadêmicos. Elas parecem
cansadas de ter alguém pensando por elas, indicando caminhos, dizendo o que
pode ou não ser feito.
A frustração
econômica e o desencanto com a política estenderam-se também à elite
intelectual, considerada uma parte do sistema.
A internet teve um
peso decisivo ao dar voz a milhões de pessoas. O avanço tecnológico não apenas
favoreceu a democracia, mas tem também suas consequências negativas. Pessoas
que, como lembra Umberto Eco, destilavam seu ódio ou suas bobagens num botequim
agora o fazem em cena aberta.
No caso brasileiro,
a desconfiança em relação aos intelectuais estendeu-se também aos cientistas,
questionados por novos interlocutores, que vão desde quem nega o aquecimento
global até quem crê no terraplanismo.
Apesar desses
elementos perturbadores, a experiência do primeiro ano de Bolsonaro pode ser
comparada ao governo Margaret Thatcher, ambos liberais dispostos a soltar as
amarras do mercado. No plano político, o principal objetivo de Thatcher era
impedir a volta dos trabalhistas ao poder; o de Bolsonaro, impedir a volta do
PT. Thatcher começou por enfraquecer os sindicatos, questionando os acordos
salariais coletivos, um dos seus instrumentos, segundo a visão liberal. Bolsonaro
já encontrou uma reforma trabalhista quando assumiu. No caso brasileiro, ela
continha um elemento também duro para os sindicatos: o fim do imposto sindical,
algo que até o PT aceitava nos seus primeiros anos.
A julgar pelos
primeiros passos este ano, a política liberal vai se impondo. A de Thatcher
foi, de certa forma, vitoriosa, com mudanças irreversíveis na economia inglesa.
Um outro ponto de
contato entre Bolsonaro e Thatcher se dá nas suas expectativas sobre os
costumes. Em janeiro de 1983, Thatcher declarou numa entrevista de televisão
sua crença nos princípios vitorianos e uma esperança de que fossem revividos na
Inglaterra.
Ela não imaginava
que o movimento de soltar as amarras do mercado iria levá-lo muito distante do
passado idílico que pensava reviver. Na verdade, o avanço do capitalismo ajudou
a sepultar os traços dos tempos que sonhava reencontrar. Thatcher talvez
tivesse os instrumentos intelectuais para perceber esse rumo histórico. Tenho
dúvidas sobre Bolsonaro.
E aqui acaba a
comparação.
Bolsonaro quer
voltar a valores que muitos sonham reviver. Mas ele vive a ilusão de uma forma
especial e com estilo grosseiro, atacando a imprensa, trazendo a mãe dos outros
para a conversa e ofendendo homossexuais – enfim, o arauto de um novo horizonte
moral é, na verdade, um ator obsceno, não apenas nas suas palavras, como nas
postagens.
Imaginem o espanto
da vitoriana sra. Thatcher diante de um vídeo do golden shower.
Um aspecto singular
do governo Bolsonaro é ter usado a bandeira da anticorrupção. Neste ponto, a
experiência do ano o aproximou mais de Collor. Ambos desfraldaram a mesma
bandeira, ambos se viram às voltas com denúncias que os desmascaravam.
Bolsonaro enfrenta o
caso do filho Flávio e do amigo Queiroz. É caso que envolve família,
funcionários fantasmas, rachadinhas. Suas grosserias na entrevista na porta do
Palácio da Alvorada indicam para o observador que sentiu o golpe.
Diante destes traços
gerais, destaco uma variável que potencialmente pode definir o futuro. A tensão
entre uma política econômica que, com alguma sensibilidade, pode vingar e o
comportamento disruptivo de Bolsonaro.
Surge uma pergunta
que pode ser feita de duas formas: até que ponto os erros de Bolsonaro vão
emperrar o projeto econômico? Ou: até que ponto o avanço da política econômica
consegue amortizar o desgaste de Bolsonaro, tornando tolerável um comportamento
agressivo e desrespeitoso, ou mesmo a revelação conclusiva de um esquema de
desvio de verbas públicas?
A política liberal
conta com o apoio do Congresso. Mas ali as coisas costumam mudar muito ao sabor
dos acontecimentos políticos.
Por fim, um foco de
tensão entre o econômico e o político está na questão ambiental. Estamos diante
de um mundo que dá importância a isso. Até que ponto um liberalismo econômico
ainda tenro se sustenta num mundo globalizado hostilizando o consenso
científico e político internacional sobre as mudanças climáticas e ironizando a
preocupação planetária com a Amazônia?
Não sei se entendi
bem o ano que acaba, tudo o que tenho são algumas ideias gerais para não perder
completamente o ano que entra.
Artigo publicado no
Estadão em 27/12/2019
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